sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

O REGRESSO DOS SONS


Um bem, que bom seria ser capaz de escrever, sem pausas, dez capítulos num só dia. Sem respirar, de um só fôlego. Tudo seria invadido por uma dormência. Todas as questões seriam resolvidas por essa espécie de instinto, uma arte, pura magia que tudo mudaria. Seria a rebelião dos sentidos e da forma.
Pegar na caneta e escrever o que diz o mundo, é natural, e os pedaços incompletos da obra ficariam concluídos, as saudades, as melancolias, todos os pedaços incompletos avançariam com essas letras novas pelas palavras coladas às linhas, pelas folhas outrora brancas, ajudariam o escritor, e as personagens continuariam a crescem.
Era melhor que o mundo parasse para escutar.
A melodia de Helen é o princípio da solução para todas as histórias. A pianista toca, as suas mãos estão em brasa, e o fogo ateia as notas mais estranhas que agora saltam do piano ardente, incendiando-o, e à lua, e ao mundo mágico que a escuta e agradece. Helen dá vida aos sons, deseja-os cada vez mais, e mais, e mais, cerra os olhos e ataca as negras e as brancas, acima e abaixo, com fúria, paixão e complacência. Segue, depois, voluntariosa e iluminada, amante e amada, acima e abaixo, com clareza, com precisão. Recomeça, começa, recupera o fôlego que não pode extinguir-se, não hoje, por favor, hoje não, detém-te um pouco, hoje não pode ser, porque o mundo secou, mas o amor acontece nesta música que o inunda, nua, crua, que galga, conquista e avança, harmoniosa melodia quente e colorida. Arde o piano, o sol, ficaram suspensas as nuvens e o mar e as estrelas. Helen acaba de acarinhar o regresso dos sons, dos seus sons esquecidos que, maravilhosos, fazem vibrar o ar ao dar eco às almas deste mundo, ao ressuscitar as palavras dos que já não estão. A melodia ganha forma e Helen vive. A pianista irlandesa existe agora e aqui, nua, despida, encontra o que necessita para se salvar, para convocar as notas que bailam. Os seus dedos brancos e longos não param, imaginam, fogem para todos os lados, e ela, de olhos fechados, toca sons imaculados, sem peso, que chispam e se escapam pela janela aberta. É verdade, tudo é verdade, tudo é demasiado verdadeiro para ter fim. Ela existe, ela toca, logo existe, sente e existe, e o piano é a folha, o sal e a pimenta da sua vida, o riacho para a sua sede, é a sua filosofia, é a criança que adora abraçar, que mima e que ama, é o doce e o brinde, e a obra cresce, mas faltam-lhe as notas mais importantes. As da surpresa do final, simples e perfeitas.
A irlandesa mora aqui, misteriosa pianista, a mulher vai-se revelando no passado e no presente da cidade que elegeu para se salvar. Este é o momento exato, o agora, ela sabe-o e toca sem parar. A obra necessitava deste dia infinito, e irá necessitar de outros assim iguais para avançar. Moldam-na os dedos esguios, alvos, mágicos, alongam-se e retraem-se, pressionam, afagam os negros e os brancos lugares quentes que respondem mais seguros, imaculados, e amigos. Parou este dia, nesta hora, o que é bom. A irlandesa sabe que lhe faltam muitos capítulos para concluir a obra, e segue tocando notas sonantes cheias de melodia, carregadas de determinação e de amor. Quer dar-se a conhecer através deste mágico poema musical que tudo fecunda. Ninguém ali está para escutar, só Helen e o tempo parado, imóvel como o universo, esse cosmos infinito que está suspenso, expectante, à escuta, para a conhecer. Exausta, nua, Helen descansou o corpo lânguido em cima das teclas. Os seus poros transpirados ensinam o piano a sonhar  e ele pensou, fez-se homem, e tocou sem ela, tocou sozinho entregue à recordação das mãos quentes, seguras, da mulher. O piano pessoa. Helen transformou-o em gente, uma sonata inimaginável derrotou o sério e pintou a obra com o acontecimento surreal.
A culpa é dos sonhos.
Helen sonhou, tocou, e soube que fez o que tinha de ser feito.
O piano é o seu amante mágico, é o seu mundo, o domínio que controla.
A obra cresce, avança e seduz.
Depois de descansar, Helen não consegue resistir e entrega-se de novo ao piano, desta feita para tocar por mais quatro horas e meia. Dedos doridos cansados, desorientados e felizes. A música, sempre a embrenhar-se nos espaços mais inóspitos, a viajar no tempo, a segredar os passados. É impossível, é quase impossível, mas ela sabe-o, imagina-o, acredita, e nua toca sem parar. Tem dez capítulos para terminar, todos hoje, ainda hoje.
Helen sabe que tem de continuar ali escondida, sentada ao piano que por ela se apaixonou e se transformou num amante impossível improvável. E que melodia, que espantosa obra Helen está a compor. Os sons saem, devagar, sentidos, pétalas de flores a esvoaçar, os dedos pressionam e o adagio chora, não envelhece, é eterno, Helen sabe-o e toca. Primeiro, surge Mozart e o adagio do concerto para piano, e a pianista sonha, a seguir, surge Brahms, com o vento e a chuva batida, e Helen reflete, e voa, e as teclas gemem e o tempo e o ar vibram. É difícil adivinhar para que lado fazer escorregar os dedos para expressar toda a intensidade dos sentimentos, para melhor descrever as paisagens, para que tudo faça sentido.
Helen organiza as emoções, por último, surge Ravel, o vento forte, uma luta, uma montanha, os verdes da relva, o céu, as pedras na paisagem. Helen escolhe, a obra avança, e ela escreve um novo capítulo.
A irlandesa resolve pegar no telemóvel que está abandonado no chão da sala e envia uma curta mensagem ao escritor. Mais logo, talvez mais logo, que agora tem de continuar a compor. Está atrasada dez capítulos na sua obra. A mão direita baila, repete as notas da melodia, e depois regressa ao céu, às nuvens, às estrelas. Um sonho, a obra está cada vez mais um sonho, e corre, corre pelos campos infinitos da inspiração. Helen está frenética nessa solidão necessária para a obra acontecer. Mozart surge, de novo, regressa alegre, uma pérola de humor inusitado é assim acrescentada à obra que avança e corre. O austríaco passou por ali, já lá não está, só Helen e o piano que toca sem descanso.
Chuva, cai a chuva morna melodiosa, tessitura fina em pérolas de ébano e marfim. Os sons saltam desenfreados, galgam os longos dedos, jovens dedos desassossegados que os deixam voar.
A obra avança.
Helen toca nua a tarde inteira, e já de manhã tinha sido assim.
Ardem os braços.
Doem os braços.
A janela aberta deixa ver os pássaros a aplaudir.
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