O tempo não estava para viagens. O inverno frio e particularmente chuvoso carregava os campos de tristeza e os aldeões de desespero. Não se via nem sentia um inverno assim tão rigoroso havia décadas.
Sua Eminência não teve outra alternativa, e deu a
ordem. Anacleto jura ter sentido o coração gritar dentro do peito. Se pudesse
declarar o que a alma lhe dizia, clamaria palavras de homem, e não de cónego. A
transferência para a paróquia de Vila Nova de São Bento, em Moura, chegou no
dia do seu trigésimo aniversário. As beatas devotas bordaram-lhe a oferenda e
as lágrimas correram-lhe pelo rosto. Mulheres linguareiras e maldizentes que
não resistiram à tentação de acrescentar pormenores fantasiosos e mordazes à
história acontecida.
A vida, como a conhecia, transfigurou-se. O vinho do
Senhor serviu de consolação até Anacleto começar a vislumbrar fantasmas
fascinantes que atacavam o senhor bispo e o assustavam de morte. Acabou a
vomitar o chão sagrado que lhe servira de cama e de aconchego naquele distante
primeiro sábado. Encontrou a pessoa certa, na vida errada, no tempo errado, num
país tão errado, num universo errado erigido para os decapitar.
Isilda chamava-o com palavras feitas de ternura, e
beijava-o com amor e carinho. O mundo todo existia naqueles beijos e abraços, e
sábado passou a ser o nome com que batizou todos os dias. Mas o seu amor e
amante não era um homem como os outros.
Após os anúncios das beatas, a terra mudou para
Anacleto Ferreira Aires da Cunha, a terra mudou e ele transformou-se num homem
intangível. Moura tinha cinco letras como a morte, e Vila Nova de São Bento
ficava bem para lá do Guadiana, paredes meias com as terras da vizinha Espanha.
As ordens eram para que se apresentasse na diocese de Beja antes do final da
semana, que procurasse o bispo auxiliar e lhe entregasse a carta e outros
documentos, e que não fizesse pergunta alguma, apenas escutasse, não
interrompesse, e obedecesse.
Anacleto mal conseguia respirar tal foi a rapidez
com que se deu solução ao embaraço. Sente-se refém do Senhor, mas a
reconciliação chegou ligeira, as graças regressaram, mas não Isilda. A cabeça
do prior rodava num imenso turbilhão, desejava estar do lado de Deus e da
mulher, mas essa realidade impossível acabara de o engolir como um voraz buraco
negro.
- Olhe bem para si, Anacleto, tem os erros desenhados
na face. Limite-se a combater as trevas que o levaram ao caminho da tentação. O
Alentejo far-lhe-á bem, quem sabe se os dois não foram feitos um para o outro.
Assim que chegar a Beja, entregue a carta e estes documentos a Dom António
Cardoso Cunha. Lisboa quase o destruiu, e causou-lhe um imenso desconcerto. Mas
que triste história esta, e olhe que se não fosse o senhor seu pai, esperá-lo-ia
um futuro calamitoso. Adeus, meu caro Anacleto, vá em paz e que o Senhor o acompanhe.
Que ironia o céu naquele dia estar carregado de nuvens
negras e sombrias. Não podia falar com Isilda, não a podia ver, nem comunicar-lhe
o seu destino. Estava sob vigilância apertada, a sua vida já não lhe pertencia.
O padre deixou de escutar, e as imagens ficaram desfocadas e difusas.
- O melhor dos homens é aquele incapaz de viver uma vida
de mentiras! Deus meu, fiquei sozinho com as marcas que Isilda me gravou no peito.
Nele ficarão para sempre arrecadados todos os sinais do nosso amor impossível.
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