As conversas deixam transparecer todos os medos e
pouca esperança. Respira-se com outra intensidade pois cada instante é vivido
como se fosse o último. O escritor agradece a lição ao amigo invisível. As
viagens efectuadas às cidades que habitam na sua janela têm-no enriquecido. Rui
foi transformado por essas visitas e pelas experiências vividas em cada urbe.
- As cidades do holocausto, as várias cidades onde a
humanidade se pulverizou, jamais irão desaparecer. Trouxe-te até aqui pois a
janela da tua sala mostrou as vistas desta triste história que muitos gostariam
de apagar de todas as memórias. O tempo parece ser um inimigo da razão, pois
envolve-a com teias finas mas poderosas. Teias fortemente emaranhadas,
poeirentas e sombrias. Nada do que aqui se passa, do que aqui se passou, pode
ser esquecido.
Milhares de judeus formam grandes filas indianas e
perfilam-se na grande praça central, obedecendo às ordens dos militares
alemães. Mais um comboio acaba de chegar e os prisioneiros obedecem a tudo o
que lhes é comunicado sem abrir a boca, sem resistir, sem quase ousar respirar.
As lágrimas descem, silenciosas, pelos rostos, ao contrário da chuva gelada que
cai sonora dos céus e os encharca sem piedade.
Quatro corpos são arrastados para fora de uma das
carruagens, já sem vida, já sem cor. Os homens escolhidos para a empreitada
estão tão magros e tão ausentes que a lentidão com que a realizam acaba de
assinar-lhes sentença de morte. Caíram com o rosto virado para o chão
enlameado, abatidos pela Luger do Obersturmbannführer que os vigiava. Nem assim as lágrimas dos que assistem se tornaram menos
silenciosas. As vozes de comando escutam-se por todo o recinto e as filas
avançam, ordenadas, até que a mais que provável morte os venha reclamar.
- Aqui tudo
está errado! O facto de tudo estar a preto-e-branco é aquilo que menos choca
nesta cidade. A cor, a única cor visível é o vermelho que escorre para o chão,
o mesmo vermelho que empapa os parcos agasalhos, que pinta os rostos e adorna
as feridas e que coagula depressa com a ajuda da temperatura negativa que já se
faz sentir.
A chuva dá
lugar à primeira neve do Outono que começa agora a cair. Passa
meia hora e o nevão ganha força suficiente para que a neve pegue. Aos mais
cansados e derrotados o frio traz a morte embrulhada no sono. A companheira
visita-os de madrugada e acabam por não acordar.
- Vais dormir
aqui, terás de pernoitar nestas casernas do desalento. Obedece a todas as
ordens, cumpre fielmente todas as rotinas, não penses, não reajas, não
sufoques. Disseram-me para aqui te trazer e para aqui te abandonar. Perderás a
cor, ficarás preto-e-branco como estes camaradas de infortúnio. Os
dias e as noites que aqui passares irão moldar-te. É evidente que não serás o mesmo
após esta experiência, isso, claro, se fores capaz de sair com vida desta
cidade.
Rui sabe que
assim tem de acontecer. O sol desapareceu, os perfumes são outros, a realidade aqui
parece ficção. Falam-se tantas línguas como em Babel, falam-se e escutam-se
palavras em hebraico, em checo, palavras neerlandesas, búlgaras, italianas,
romenas, espanholas, húngaras, francesas, russas, gregas, albanesas e portuguesas. Agora, neste comboio,
chegaram também vozes portuguesas. São registadas nos livros, catalogadas para
sempre. Num futuro distante, menos inquieto, menos negro, dilacerado e
desumanizado, recordar-se-á tudo o que hoje aqui aconteceu.
- A tua obra
vai ter de ficar parada por mais algum tempo. Quando quiseres, assim que te
sentires apto a regressar, chama por mim, mas nunca antes de terem passado sete
dias e sete noites. Essa é a cláusula que não podes quebrar, mas após esse
período chama-me a qualquer instante para regressarmos à Lisboa que conhecemos.
Olhos negros,
muito negros e profundos, todos os olhos negros e cansados e profundos viram-se
para o escritor arrependido.
Esta noite
está a ser gelada e incolor. Sussurros, lamentos, tímidas lágrimas vão dando sinais
das muitas nações que aqui se encontram. Todos esperam que a morte os venha
buscar de madrugada.
As fortes
luzes dos holofotes do campo de concentração pintam sombras negras nas paredes
de madeira da camarata 72. Entram por entre as frinchas e as janelas despidas.
Juntam-se às sirenes, à escuridão da noite branca, da noite cada vez mais fria
e branca e longa. Esta é a noite mais longa de todas as noites que o escritor
viveu.
Agora chegou a
hora de dormir.
Da janela da
camarata Rui avista uma cidade doente, fria, branca, cinzenta, cruel e tão real
como reais são os vermelhos que os seus companheiros de infortúnio trazem pintado
nos frágeis farrapos que os cobrem.
- Faltam sete
dias e sete noites para que eu possa regressar! – pensa o escritor numa imensa aflição.
Agora chegou a
hora de dormir!