terça-feira, 24 de dezembro de 2013

ENTRE O SONHO E O PESADELO




Falta-lhe tudo, mas o pior é a terrível falta de inspiração que o tem levado até às portas da demência. Há quase uma semana que ninguém o vê. O escritor sempre foi algo misterioso e é um homem solitário. Poucos são os que lhe conhecem a voz ou as amizades. A única exceção é o Lopes que muito de vez em quando se desloca ao apartamento. Rui tem por hábito sair cedo para o seu passeio da manhã e regressa pouco antes da hora de almoço. Depois aproveita a tarde e a noite para escrever, ou melhor, para escutar as histórias que habitam na sua cabeça, como nunca se esquece de salientar.
O escritor não tem família, é filho único de pais filhos únicos já falecidos. Ficou órfão ao entrar na idade adulta, e as vozes chegaram devagarinho para o resgatar da solidão. Tornou-se um eremita das palavras, fechou-se ainda mais nos mundos por elas construídos até que nesta obra, realidade e ficção envolveram-se de tal forma que deixou de as distinguir. Passou a escutar a voz dos mortos, de fantasmas, passou a acreditar na existência das almas. Os seus dias passaram a ser marcados por estranhos acontecimentos que não podiam ser apenas meras coincidências, e aí se deu início a uma espécie de alienação pouco condizente com o seu estatuto de homem culto e inteligente. A sua criatividade levou-o por caminhos únicos tão expressivos e surreais que os seus romances ganharam fama inesperada.
A janela da sala mostra-lhe a cidade, uma Lisboa luminosa de perfumes ímpares. Já não conseguiria viver sem ela, sem as suas ruas, vielas, calçadas, becos e avenidas, sem as tascas, os cafés e a paisagem única que o Tejo embeleza. As suas histórias tornaram-se tão reais como os lagos do parque onde costuma passear. Tornaram-se tão reais que ele deixou de conseguir explicar o seu processo de criação. Mas esta última obra não tem crescido assim, e os vizinhos, que já não o veem há quase uma semana, começam a dar sinais de alguma preocupação. Onde se terá ele metido? Todo este tempo sem sair de casa? Estará doente? O que raio lhe terá acontecido?
A obra avança atraída por um gigantesco buraco negro que a deseja engolir.
- Comunico os meus sonhos e pesadelos, os desejos e tudo mais que me empurrou para esta cidade, para este gueto. Tenho de apelar ao silêncio, calar estas vozes que me trouxeram até aqui. Escuto-as, a obra não avança, roubaram-me a esperança, a alma e a vontade.
Rui está cada vez mais perdido e incomodado pela ausência das vozes que lhe contam as histórias. Os pesadelos levaram-no até à cidade da camarata 72, ou terá sido o companheiro invisível a transportá-lo até ali?
Ele imagina que talvez o cosmos não o engula de vez.
- O imenso buraco negro vomitou esta gente desinteressante, de olhos pequenos, gente invejosa e pequena em pensamento. Estes soldados de rostos fechados dão a conhecer uma gritante falta de imaginação e criatividade, aliada a vontades inócuas carregadas de inveja e pequenez. O buraco negro vomitou esta gente que não sabe raciocinar, que não sabe amar nem procura a beleza nas coisas. Vomitou estes soldados violentos, apáticos, gastos e cansados que avançam pela vida como animais sujos e viscosos. É o horror que os alimenta, é o horror que os veste e define. Soltam urros enquanto falam, soltam urros grotescos e estão sempre prontos a atacar como cascavéis. O que lhes vai na alma é uma desconcertante desumanidade. O tempo passa por eles com indiferença, com total indiferença, mas regressará para os castigar com violência. Avançam pelo cosmos como cadáveres negros e cinzentos, pois estas são as únicas cores que lhes assistem. Grunhem palavras inenarráveis, insensatas, descrevem o abominável e o irreal. Vivem do medo, da inveja e da mesquinhez que neles habita. O imenso buraco negro vomitou corpos nojentos com cabeça de animal e línguas viperinas que passaram a existir com o único propósito de destruir, de violentar e de castigar. Existem para tudo contradizer, alimentam-se dos ódios e grunhem acerca do pouco que conhecem, daquilo que não conhecem e do muito que ambicionavam conhecer. Nada do que dizem é relevante, tudo é carregado de ódio e de infâmia. Estes seres, estes soldados, vivem onde os insetos rastejam, junto ao solo e no subsolo, nas lamas mais pútridas dos confins do universo. Cospem ao falar, ao grunhir. Erram, sem nunca o assumirem, e matam, matam tudo o que não entendem, matam com os olhos e com as línguas bifurcadas, matam, destroem e aniquilam todos os que lhes fazem frente.

O universo é cruel e violento, e toda a matéria negra o estimula.
Zé Paulo não consegue parar de pensar, é como se o mundo fosse acabar amanhã.
O universo está construído para que o caos continue a escrever páginas sem fim.
O carro de Sofia está em muito mau estado.
Zé Paulo recorda, de olhos fixos na viatura, como o universo é violento.
- Será que os sonhos só existem para nos castigar? Sonhar, para quê? Sonhar seria bom se os sonhos não nos contradissessem nem destruíssem…

( PARA NUNCA ESQUECER )
 

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

AS VIAGENS DA MEMÓRIA


O pensamento de Rui deixou de fazer sentido. As suas ideias estão tão geladas como a temperatura que se faz sentir na camarata. Ele preferia não ter de pensar, seria bem mais cómodo se o cérebro se desligasse. Há quase trinta horas que o escritor não dorme e as imagens já começaram a bailar, os sons a cavalgar e o chão a rodopiar. O teto e as paredes desintegraram-se. Tudo isto acontece para que ele se mantenha acordado e vigilante pois tem receio de não acordar, se por algum acaso adormecer. Tem medo, um medo frio e tormentoso que o debilita e impede de raciocinar, um medo que lhe tolda a razão e mata a esperança.
O amigo invisível sentiu o mesmo e decidiu voar da ponte sem asas nem rede. A ponte foi uma escolha natural, mas elas não existem por aqui. Rui volta a escutar a voz de Helen e desta vez não entende uma única palavra do que ela lhe diz. Recebe-a como uma dádiva, neste lugar tudo são dádivas e as recordações são as mais valiosas porque só elas conseguem escapar ilesas à fúria dos soldados nazis. As memórias apoderam-se das camaratas para aquecer os corações dos prisioneiros. Rui não é exceção e as suas recordações atravessam o tempo e o espaço, galgam todas as  distâncias e vencem todas as barreiras. São diligentes e inquebráveis.
Pouco depois de ter iniciado a nova obra, Rui começou a sentir a vida de uma outra forma e o tempo transformou-se em inimigo. Se ao menos o invisível não tivesse desaparecido. É que aqui, nesta cidade, é impossível prestar atenção às palavras, elas marcam e magoam como em nenhum outro lugar. As horas e os minutos estão tão congelados como o ar que se respira, e tudo é caótico e incongruente.
Onde se terá escondido o seu amigo improvável?
O tempo não avança, estes sete dias e sete noites nunca mais chegam ao fim.
Na camarata 72 o pensamento deixou de fazer sentido.
Rui preferia estar cego e surdo para melhor poder suportar tudo o que se passa nesta cidade turva e perturbadora. O romance não irá acontecer porque lhe é impossível fazer avançar a obra enquanto aqui permanecer. O escritor encolhe-se cada vez mais no meio dos seus companheiros de infortúnio, e quanto mais apertado está, mais abandonado se sente. A imagem de uma Helen mais velha apareceu para o atormentar, e ele acaba por desabafar:
- Nada disto faz sentido! O que aqui se passa não faz parte da obra. Vou limpar estes pensamentos e apagar estas últimas palavras. São caóticas. O mais provável é que o mundo acabe antes de eu conseguir terminar o romance. Escrever deixou de ser a minha prioridade, sobreviver passou a ser a única prioridade, é só isso que interessa. Necessito manter-me atento aos detalhes agora que a minha inspiração acabou. Foi por isso que a obra deixou de avançar, e agora esta cidade e este tempo mataram as personagens, destruíram o que restava dos palcos dessa história, aniquilaram os enredos e calaram de vez as vozes que eu escutava.

Os campos transmontanos receberam o sangue do Penedas como se fosse adubo. Naquele dia, a razão de Augusto ficou toldada. Um súbito ataque de fúria fez com que os seus punhos partissem a cara ao desgraçado. Nunca soube de onde lhe chegou a força com que lhe esmorrou os cornos. O Xico ficou com o rosto feito em papa, os maxilares deslocados, os sobrolhos abertos e quatro dentes partidos. Se Etelvina não tem chegado a tempo para pôr um travão à loucura, a desgraça teria sido completa.
A rapariga tinha uns perfeitos lábios rosados, quentes e grossos, e os olhos grandes e penetrantes suplicaram-lhe para que parasse antes que fosse tarde demais. O cabrão do Penedas precisava de aprender aquela lição, e o Augusto ainda lhe bateu e o pontapeou por duas vezes mesmo depois de desmaiado. Estava possuído por um demónio qualquer, e só os gritos desesperados da amante o trouxeram de volta à realidade.
- PARA, PARA AUGUSTO! Para, senão ainda o matas! O que vai ser de nós se acabares com a vida do desgraçado? Para de lhe bater, já chega, para! PARA! Ouve o que eu te digo!
Etelvina colocou-se à frente de Augusto, encarou-o olhos nos olhos, e foi assim que ele regressou do seu profundo estado de loucura.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

UM PRESENTE CAÍDO DO CÉU



São três e meia da manhã e Carla levanta-se.
O dia anterior mudou-lhe a vida para sempre, ou será que tudo mais não foi que um simples sonho, um súbito ataque de loucura?
A cama, vazia de homem, é um presente que não esperava receber. A cama, vazia daquele homem, ainda lhe parece uma perigosa ilusão.
Há quanto tempo ela não gozava uma noite assim tão tranquila?
A única pessoa a quem teve coragem de ligar durante a louca manhã de ontem foi a sua amiga Filipa. Por sete vezes o fez, mas sem sucesso. O que estaria ela a fazer de tão importante para não lhe ter respondido?
Assim que o carro vermelho irrompeu em chamas o universo estremeceu, mudou de cor uma centena de vezes, apagou-se, rugiu, espreguiçou-se, até que, finalmente, de novo emudeceu.
Um silêncio de morte tomou conta da varanda onde Carla observava a rua onde o caos se instalara.
Agora são três e meia da manhã e o mais certo é que tudo não tenha passado de um sonho bom, um em que o universo resolveu fazer-lhe a vontade, um em que ela podia voltar a ser feliz.
Carla caminha para fora do quarto, segue pelo pequeno hall até à sala, atravessa-a e entra na varanda. Cola o rosto e as mãos às vidraças frias e fecha os olhos por um instante. Deseja que este presente não seja uma mentira, uma partida fria que o universo lhe resolveu pregar. Deseja que tudo tenha realmente acontecido.
Abre os olhos e olha em frente para o Tejo escuro que, lá longe, avança decidido até ao mar. As luzes dos prédios na zona da expo brilham como em todas as noites. Uma lua luminosa cortada pela metade aquece-lhe a esperança e o coração.
O rosto de Armando está refletido na janela, grande, redondo, de olhos pequenos numa cara marcada pelo sol, de cabelo curtíssimo e barba desarrumada.
O rosto de Armando está refletido na sua alma até ao fim dos seus dias pois o animal disso mesmo se encarregou com a perícia de um carrasco
O rosto de Armando ficou de tal maneira carbonizado que nem à entrada do inferno o conseguirão reconhecer. Filho de uma grande puta, um brutamontes insensível e cruel que o universo se encarregou de fazer desaparecer.
- Mas como, como é que tal coisa foi acontecer? – questiona uma Carla corajosa a enfrentar o reflexo do sujeito. – Como foi possível teres-me enganado tanto e teres-me feito tanto mal? Como é possível que o universo deixe nascer animais da tua espécie?
A luz da meia-lua afugenta a miragem do homem e Carla consegue finalmente olhar para o local onde o Audi explodiu. O coração estremece, o rosto muda de cor uma centena de vezes, apaga-se e ilumina-se ao confrontar-se com a realidade.
Lá em baixo na avenida, o que resta do automóvel está a ser vigiado por dois agentes que estão em pé junto a um reboque da polícia.
O Armando morreu, teve aquilo que merecia!
Carla avista os outros prédios, outros casulos iguais ao seu, a avenida e o que resta do carro vistoso. Então não é que alguém se lembrou de armadilhar a viatura vermelha e tudo aconteceu tal e qual como naquele episódio da sua série favorita.
Agora já sabe.
Alguém se lembrou mesmo de o fazer.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

SORTE DANADA



A palavra sorte não agrada a Zé Paulo, mas é a mais acertada para descrever o que aconteceu no acidente de Sofia. Sorte, uma sorte danada. Contra todas as regras, o simples facto de não trazer o cinto salvou-lhe a vida. Ela não se recorda do momento do impacto nem do voo que fez até ao lugar onde acordou. Lembra-se da cor do céu, meio desfocado, recorda as costas húmidas e de ter passado as mãos pelas escoriações. O carro não lhe quis obedecer, ganhou vontade própria e acabou por embater com violência numa das árvores que cresceram junto à berma.
 A polícia permaneceu por ali até à chegada do reboque que se prepara para retirar o carro do lugar onde se encontra. Zé Paulo observa o asfalto e repara na falta de marcas de travagem. Sofia pode ter adormecido, mesmo que tenha sido só por um instante, seria o suficiente para provocar o despiste que causou o acidente.
Sorte danada o irmão não ter tido coragem ou força suficiente para o ter deixado acabar com a vida do velho Sepúlveda naquela madrugada de má memória. Sorte, uma sorte danada! O Alexandre é que nunca mais foi o mesmo. Zé Paulo também nunca mais voltou a ser o mesmo. O cabrão do velho deleitava-se a organizar e a planificar a vida de todos. Controlava a da mãe, a da mulher, a dos filhos e até a da sogra que foi viver com eles após ter enviuvado. A vida era uma verdadeira merda debaixo da sua alçada, e as avós foram as primeiras a desaparecer. Definharam bem depressa dentro das quatro paredes da mansão. As duas senhoras passaram pouco mais de um ano de vida naquela casa. Florbela Sepúlveda cegou e acabou os dias quase tão insensível como o filho. Quanto à avó Leocádia, o Alzheimer ditador tomou conta dela até ao dia em que não mais despertou.  Este poder oculto do doutor Sepúlveda embrenhava-se nas paredes dos quartos, das salas e do salão, entranhava-se nos móveis de época, nas portas e janelas da habitação, vivia e alastrava-se com a luz ténue e difusa dos candeeiros, dos lustres dos tetos, e oprimia todos os que por lá se moviam. E para o tornar ainda mais omnipresente, nem faltava o retrato a óleo de sua excelência, o doutor, a ornamentar a grande parede verde da biblioteca onde ele se recreava a fumar os seus Montecristo prediletos.
Do pequeno jardim da propriedade, o velho Sepúlveda gostava de observar a sua fábrica, uma herança de família que compartilhava com os irmãos. Os edifícios ficavam lá em baixo, junto à estrada nacional para onde os grandes portões estavam virados. O doutor ia até ao jardim, bem cedo, para apreciar a azáfama dos trabalhadores que pegavam ao serviço de manhãzinha. Alguns faziam a mudança de turno e saíam pouco depois da entrada da esmagadora maioria dos colegas.
Uma sorte danada o cabrão do velho ser tão amigo daqueles dois secretários de estado do governo de Marcelo Caetano. É que, desde então, o doutor passava grandes temporadas na capital e deixava os filhos Rogério e José Paulo gozar a suprema felicidade da sua ausência. Por essa altura já o Alexandre tinha fugido para a América do Sul e o Sepúlveda tinha feito desaparecer todas as fotografias onde o filho mais velho aparecia. Zé Paulo conseguiu salvar desse holocausto um retrato onde os três irmãos estavam sentados em cavalos de madeira no areal da praia da Nazaré. Guardou-o numa pequena caixa junto a outros importantes objetos para a sua memória. Estava junto ao baralho de cartas com que o amigo Peres jogava sueca, perto das notas de vinte e de cinquenta escudos que ele lhe enfiou furtivamente no bolso traseiro dos calções. Ali arquivara, também, as pequenas pedras negras que encontrava ao passear pelo bosque e que, segundo ele, eram restos de meteoritos que a atmosfera terrestre se encarregou de incinerar. É uma sorte, uma sorte danada que o nosso planeta esteja assim tão bem protegido contra estes gigantes do espaço. Zé Paulo várias vezes desejou que um desses cometas atravessasse incólume essa carapaça invisível e caísse em cheio no local onde o excelentíssimo doutor Sepúlveda gostava de passear. Isso sim, isso é que teria sido, sem dúvida, uma sorte danada!