quinta-feira, 28 de novembro de 2013

ONDE FICAM AS FRONTEIRAS DO ETÉREO?



Quando a folha vazia ameaçava, mais uma vez, vencer a misteriosa habilidade do escritor, eis que da sua caneta começaram a dançar letras azuis que se ordenavam em palavras nas linhas do caderno onde as guardava. As histórias escolheram-no, era ele quem as teria de divulgar custasse o que custasse. Rui teria de saber organizar-se para criar rotinas, teria de melhor escutar para melhor escrever. O que mais lhe dificultava a tarefa era a existência desse caos aleatório que o rasteirava a cada tentativa de fazer avançar a escrita. As palavras escolheram-no sem avisar. De um momento para o outro começou a escrever aquela primeira história que sozinha cresceu e passou a fazer parte de si. Rui nunca mais parou, nunca mais deixou de fazer esse exercício estranho. Não se sentia dono das histórias que construía, apenas um obreiro, apenas o artífice que escutava e transcrevia, um artesão que ouvia e depois moldava tudo o que lhe foi contado.
O caos, as rotinas e o tempo mantêm-se tão iguais e tão constantes como dessa primeira vez, mas Rui sente-se abandonado. O que se terá alterado para ele se sentir assim, logo agora que a fama dos seus romances exige que se alimente a vontade dos leitores? Para quando a conclusão da nova obra? Para quando? As palavras não aparecem, e a merda da editora só sabe pressionar como se neste jogo existissem regras ou processos estanques, e os caminhos fossem sempre iguais para a obtenção dos resultados pretendidos. Não! Desta vez está por sua conta e risco a criar algo verdadeiramente seu, só seu, por mais perturbador e solitário que isso lhe pareça. Desta vez a obra será sua do princípio ao fim, demorará o tempo necessário, custar-lhe-á muito mais do que as anteriores, e o resultado final pode ser mais pobre, mais inconsistente e confrangedor, mas as palavras da obra serão todas de sua autoria.
O Alves está farto de ligar mas como resposta recebe apenas a mensagem do voice-mail a informá-lo que, de momento, Rui não se encontra disponível. Há mais de seis dias que é assim, há quase uma semana que a resposta é sempre igual e monocórdica. O editor pensa que alguma coisa de ruim se terá passado para que ele não lhe responda. Isto não é normal, e mesmo naqueles momentos em que o escritor se sentia mais desinspirado e mazombo, dois ou três dias bastavam para que recebesse uma mensagem do amigo a tranquilizá-lo, dizendo que nada de grave lhe acontecera, que era apenas a sua terrível falta de inspiração ou aquela necessidade sazonal que o obrigava a ausentar-se. Os últimos dias têm estado tão bonitos, o sol caminha desde que nasce até que se despede somente com o azul do céu por companhia. Estes são os dias preferidos do escritor, e isso faz com que tanto tempo sem dar notícias não seja um bom augúrio. Terá ele cometido uma loucura? Sabe-se lá do que é capaz a mente de um homem solitário. Merda de vida esta que tanto se delicia a atormentar as almas dos iluminados. O Afonso ficou arrepiado ao ter-lhe passado este pensamento pela ideia.

Helen despe-se. A hora do banho acalma-a e inspira-a. Antes de mergulhar na água perfumada, aproxima-se da janela para escutar o pôr do sol.
Rui preferiu ficar a trabalhar na conclusão do romance, estava quase a terminar e assim teria de ser. A irlandesa nem insistiu, pois se era isso que ele pretendia, e não lhe disse que não era isso que dele esperava. O Guincho ficou só para ela. O mar falou consigo como naqueles dias felizes em que brincava com Deidre junto às falésias de Summercove. Essa melodia guardou-a o tempo apenas para si, era assim que estava escrito e assim aconteceu. Rui preferiu a companhia das palavras. Ela sorriu, despediu-se sem o beijar, despediu-se para sempre. Assim é a irlandesa em tudo o que faz e com tudo o que faz. Sábia como as deusas celtas que povoaram a bela ilha esmeralda que a viu nascer.
A onda vem beijar-lhe os pés, fria onda, gelado o vento cortante que ela adora sentir. O vento beija como ninguém. Helen sorri ao olhar o mar. Alguns surfistas aventuram-se nestas águas gélidas pois gozam da proteção dos seus fatos. Helen sorri ao olhar o mar e abandona a roupa na areia húmida mais escura e gelada. Helen sorri ao entrar no mar como quem se abriga, como se a espuma a aquecesse ou lhe viesse trazer as notas que faltam na sua bela melodia. Esta é a obra que Helen mais gosta de escutar. Nua, em comunhão com o vento e com as marés e com as ondas, com o céu o mar as gaivotas, e com a espuma, escuta todos os silêncios antes de mergulhar. Helen sorri ao sair do mar, está tão gelada como pode estar alguém que em janeiro resolve abraçar as ondas no Guincho feroz. Está nua, gelada, e feliz como naquele dia em que correu descalça com a irmã pela baía verde de Summercove. A sua obra ganhará suaves contornos, tão suaves como as memórias de infância. Adicionar-lhe-á a sua alegria pela vida, a paixão pelo mar e pelas estrelas, e tudo isto no dia em que o amor, mais uma vez, ficou paralisado ao enfrentar a força invisível do caos silencioso que ela tão bem sabe escutar.

As coisas aconteceram, mas não foram planeadas. Nada foi pensado, como tantas coisas na vida. Agora dói ter de ir-se embora.
Para Afonso era simplesmente impossível manter-se indiferente a Susana, à sua voz e ao seu sorriso de menina. Perto dela tudo parecia fazer mais sentido, tudo se tornava mais leve, doce e colorido, até que aquela segunda-feira lhe fez a emboscada perfeita. Susana convidou-o para subir e ele aceitou. Tudo nela o atraia pois as coisas são aquilo que são. Nesse dia esqueceram as suas profissões e foram somente um homem e uma mulher que o caos resolveu juntar. Esqueceram todos os erros existentes naqueles beijos e abraços, e os seus corpos avançaram quentes um contra o outro sem peso nem memória. Ali estava o infinito, o princípio e o fim. Nada mais interessava, e agora o caos ria-se da sua criação. Fora daquele apartamento ficava o imenso nada, e universo contraiu-se todo para lá dentro se anichar. Destes fogos se criaram estátuas, destes sumos nasceram tempestades, antes viver assim um só instante do que cem anos de vida sem o sentir. Os amantes passaram as fronteiras do etéreo, sentiram-se tão deuses como a um humano é permitido sentir, e regressaram ao mesmo palco por entre avanços e recuos, abraços, carinhos, colos, seios, suores, queixumes. Regressaram ao prazer ímpar que a eles, só a eles foi dado a conhecer, e assim permaneceram até ao fim da tarde, quase noitinha. Foi só aí que Afonso se lembrou que um outro caos estaria para acontecer. Susana sorria, nua, espreguiçada na cama reconstruída pelos gestos partilhados.
Afonso era feliz quando a olhava. Ali, enquanto a olhava, ele foi feliz.
Ao chegar junto ao carro na rua, já de escuro a tarde se pintara. Encarou a chave com um sentimento que nunca experimentara, e as palavras rasgaram o silêncio com brusquidão:
- Foda-se! Estou tão fodido se a Sofia vier a imaginar o que acaba de acontecer.
Entrou no Alfa Romeu, agarrou-se ao volante com as forças que encontrou e encostou-lhe a testa transpirada. Encolheu-se, fechou os olhos e repetiu:
- Foda-se! Puta de vida a minha! Estou tão fodido...

O relógio pouco passa das onze e meia quando a ambulância dá entrada nas urgências do hospital. Está uma confusão como nunca por ali se tinha visto. Bombeiros, enfermeiros, ambulâncias que chegam e partem, médicos, auxiliares e mais de uma centena e meia de pacientes deambulam por entre os familiares e demais gente anónima que procura obter informações, marcar consultas, ser atendida ou simplesmente aguarda por alguém que a venha tratar. A maca onde Sofia é transportada foi impedida de entrar no átrio que dá acesso às urgências do Garcia de Orta por um dos seguranças.
- Não pode ser! - exclama o homem. - É impossível não lhe ter chegado a informação de que esta urgência não pode receber mais doentes. A senhora terá de seguir para o hospital distrital do Barreiro, ou então para o Santa Maria em Lisboa. As minhas ordens são estas, vão ter de levar a senhora para um outro serviço.
Os lábios rosados de Sofia esboçaram um sorriso que depressa se transformou em gargalhada. Queria fugir dali para fora, quis desaparecer, mas um acaso não o permitiu. É isto que acontece sempre que o caos resolve tomar conta dos acontecimentos. O seu vizinho da frente gosta imenso de falar destas coisas, e conhece estranhas teorias acerca destes assuntos. Ela recorda o início da manhã em que, por qualquer razão misteriosa, imaginou o galante José a agarrá-la pela mão, a pegá-la ao colo e a levá-la até ao quarto para se amarem o resto do dia.
Talvez não seja de todo descabido dar mais atenção àquilo que ele terá para lhe dizer.

Helen mergulha na água quente da grande banheira branca na companhia das notas que acabou de compor. Este é um daqueles dias em que tudo mudou. Muito do que aconteceu não foi como estava estabelecido. A música da irlandesa vibra, agora, com os acordes dessa evidência. Esta é a sua forma de criação. É assim que Helen deixará, para sempre, a sua marca na obra.


terça-feira, 26 de novembro de 2013

FALTAM AS PALAVRAS


Para ele escrever é como respirar. Ao faltarem as palavras, falta-lhe o ar e tudo se torna insuportável. Os vendavais acompanham a queda da neve e lançam pelos ares galhos, ramos e troncos. Aqui, neste lugar, as vozes do escritor não se fazem escutar. O seu raciocínio torna-se pesado, o cérebro entra numa letargia protetora, o mundo desacelera, o tempo abranda, os sons tornam-se guturais, cavernosos, as sombras ficam disformes, ténues e cinzentas. Os sonhos ficaram mais reais e tornaram-se tão verdadeiros, transfiguraram-se de tal forma que sonho e realidade acabaram por se fundir. Rui vive nesta cidade onde o mal habita e a esperança há muito deixou de existir. A tempestade é tão gelada e real que os ossos estalam e a pele enrijece. Cada companheiro de infortúnio é dono de histórias terríveis que o mundo não tem como eternizar. Aqui tudo foi construído com o firme propósito de perpetuar dor, angústia e sofrimento, e nem a estranha e súbita desaceleração do tempo o consegue evitar. Nada disto existe, nada disto pode existir porque não é possível tamanha violência, uma tão grande desumanização. Os prisioneiros polacos começam a entoar uma música tradicional. A eles se juntam vozes húngaras, checas e romenas. logo se fazem escutar cantores de outras nações que também fazem questão de os acompanhar. Gregos, italianos, franceses, espanhóis e alguns albaneses fazem agora parte do coro e entoam o mesmo refrão. O tempo, que avança com lentidão, abranda ainda mais para melhor escutar a canção.
O que se passa nesta cidade, nesta camarata 72, é um sonho, uma miragem, nada mais que pura ficção.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

O QUE É O PENSAMENTO?


Este local, este limbo onde Rui se encontra custou-lhe a possível destruição da sua obra. Os rostos destes homens trazem olheiras tão marcadas e profundas que se assemelham a defuntos. Escutar a voz do invisível seria, agora, uma benesse. O escritor daria tudo para poder conversar com o companheiro improvável. O pesadelo a preto-e-branco onde se encontra não pode ser autêntico. Será um holograma gigantesco, uma criação dantesca parida por um buraco negro cujo único propósito é o de fazer perpetuar o caos onde tudo fervilha. Nos últimos anos tem escutado vozes, foram elas que lhe contaram as histórias que ele passou a romances, a contos e a poemas. O calor proporcionado por essas viagens é bem diferente do calor dos dias de verão, do calor da voz de Helen ou do calor da fogueira que o pai se entretinha a alimentar mal chegavam à casa dos avós lá na aldeia. E aqui, nesta cidade, nada se compara àquilo que conhece. O que vê e sente é um frio tremendo, muito distinto do calor que experimenta ao desenhar as suas histórias. O que aqui se passa é um outro projeto, uma outra obra, um desarranjo, um equívoco, uma demência.
As palavras saltam, pulam e correm desenfreadas, sem nexo, sem rumo, sem rigor, sem sentido. Mesmo que ele pudesse escrever, construiria um nada ininteligível e sem calor.
- Onde te escondeste companheiro invisível? Revelaste-me este sonho de maneira cruel. Não me escutas? Eu sei que me escutas mas não respondes. Todos os que aqui se encontram sabem o que lhes vai acontecer. Falta apenas conhecerem as cores, os odores e os sons dessa derradeira viagem. As portas que ligam estes dois mundos são surdas e mudas, mas tu sabes como funcionam. Disseste-me que já por lá passaste. Se és tu quem escolhe as cidades que surgem na minha janela, não entendo que mal terei feito para me teres trazido até este lugar. E que mal terão feito estes milhares que aqui se vão amontoando como animais. Esta é uma cidade incapaz de ser descrita, e isso até nem interessa porque não lhe sobreviverei. Deixarei de pensar, vou tentar serenar as minhas vozes pois nada do que dizem faz qualquer sentido. Navegam à deriva pelas minhas ligações nervosas, são neurónios a comunicar aleatoriamente e a promover associações bizarras que em nada beneficiam a obra. Este projecto está tão alterado e adulterado que o melhor é acreditar que nunca se iniciou. Nada do que aqui se conta existe, existiu ou existirá. Tal como um holograma ficcional parido por uma excrescência cósmica muito afastada e poderosa que muda de humor a todo o instante, assim é esta obra que nunca principiou. Sei que me escutas mas não desejas responder. Ingrato! Vieste ter comigo supostamente para me ajudares a edificá-la, contudo, o que aqui se passa nem mesmo tu consegues explicar. Estás morto, és uma alma perdida e abandonada que ninguém desejou eternizar. Com que autoridade me trouxeste até aqui? Quem te permitiu escolher este destino atroz que, supostamente, me ensinaria a melhor julgar? Estarei errado ao afirmar que te encontras tão perdido quanto eu? Fazes parte do mesmo holograma, da mesma imagem que se repete e eterniza e que é hoje tão mentirosa como sempre foi. Serás capaz de me transportar de volta ao meu refúgio de escritor? Duvido! Essa será uma decisão que já não te compete. Talvez nos voltemos a encontrar mais cedo do que esses sete dias e sete noites que referiste. Pelo alarido e algazarra que escuto lá fora, é bem provável que nos encontremos muito mais cedo do que isso…

Ao iniciarem a travessia da ponte em direcção a Almada, os olhos de Augusto descansam no horizonte onde o mar desenha a linha. Nunca foi sua vontade conhecer o mundo para lá daquele limite. Nunca foi pessoa para grandes viagens, e o tempo passou, e a vida desapareceu, e os filhos cresceram, e os netos chegaram, e a puta da vida deu-lhe cabo da saúde e levou-lhe a Armanda, e agora trouxe-lhe a memória da Etelvina e daquele cabrão do Penedas a quem quase tirou a vida naquele fim de dia já tão distante.
Os olhos de Augusto observam o horizonte onde o mar desenha a linha quando dão conta da silhueta de um menino de chapéu de pala a caminhar sozinho pela ponte em direcção a Alcântara. O rapaz segue numa passada segura e a bom ritmo, de mochila às costas, sorridente como se o mundo lhe tivesse acabado de proporcionar uma imensa alegria. O que andará o moço a fazer por ali? Talvez esteja simplesmente a sentir-se feliz ao caminhar por onde mais ninguém o faz. Atravessar a ponte a pé, olhar o Tejo aqui de cima, sentir a chuva miudinha, escutar o ruído do grande rio, das gaivotas, do vento ligeiro, e a ousadia de se ter atrevido a passear pela ponte sabendo que isso é proibido. O gaiato é nobre e corajoso. Se nada de mal lhe vier a acontecer, será um grande homem no futuro.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

NO LOCAL DO ACIDENTE


  Os dias misturam-se com as sombras e as memórias tornam-se reais. Quem sobrevive recorda, e também tenta esquecer. Antes de continuar a imaginar mais enredos o escritor terá de sobreviver à cidade cárcere. Ela chegou de um passado insuportável com gente de rostos fechados e ausentes a quem os gestos demoram a acontecer. O regresso a casa transformou-se em miragem, o próximo instante é uma miragem, chegará quando chegar pois a noite gélida aliou-se à morte mensageira que ali se instalou. Dói escutar, dói imaginar o nascer do novo dia. Será o último? Dói contar a passagem das horas e dos minutos. Serão os últimos? A camarata 72 fervilha neste latente mal-estar. Melhor seria acabar de vez com esta angústia. Ao longe escutam-se as vozes estridentes dos oficiais alemães. A luz dos holofotes volta a quebrar a escuridão e os fantasmas ganham vida própria. São pássaros negros, são corvos, são abutres, aves de rapina a esvoaçar nas paredes frágeis que parecem ter crescido para os receber. Eis que o silêncio se torna mais ensurdecedor do que a agitação frenética dos militares.

Quando Zé Paulo chegou ao local do acidente, a polícia tinha justamente acabado de tomar conta do sucedido. A ambulância do I.N.E.M. arrancara minutos antes em direção ao hospital para que Sofia pudesse ser observada. Aparentemente, tirando o choque provocado pelo aparato do acidente e alguns ferimentos ligeiros e superficiais, nada de grave lhe aconteceu.
- Olhe que a senhora teve mesmo muita sorte. Numa situação destas, o facto de não trazer cinto de segurança acabou por jogar a seu favor. Nem o air-bag a teria ajudado. – exclama a enfermeira que a acompanha ao hospital. A sirene incomoda-a mais que o carro destruído ou aquele vazio que a domina. Não tem pensamentos, o tempo volatilizou-se e apenas o sabor levemente adocicado do batom vermelho a mantém desperta.
- Ouça, é mesmo necessário levar a sirene ligada? É que me está a incomodar imenso. – exclama Sofia fazendo um esforço tremendo para arrumar a sua vontade em palavras. Está cansada, dorida, tão fatigada, e o barulho repetitivo e frenético da sirene entretém-se a enlouquecê-la. Uma merda, uma chatice de merda o raio da sirene. E que chatice de merda o raio desta vida. O carro dançou naquele lugar em que a estrada curvava, e o volante ficou direito. Ela, ao invés de travar, sentiu o pé direito a ficar ainda mais pesado. Não sabe explicar se foi por engano ou querer, não sabe, não sabe mais nada. A enfermeira entende que será melhor proporcionar-lhe sossego para o que falta da viagem, e a sirene lá se calou.

  

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

É ASSIM QUE TUDO FAZ SENTIDO


Helen esfrega as mãos e os dedos antes de regressar às teclas do piano. O longo banho inspirou-a, a caminhada pela praia e a luz de Lisboa fizeram o resto. Os seus dedos bailarinos revisitam, a cada nota, as paisagens invisíveis que ela traduz em melodias. Passam horas, o instrumento vibra e a estrutura da obra vai crescendo.
É assim que tudo passa a fazer sentido, como o nascimento de uma criança, como um menino que brinca e explora, como o sol aquece e a lua peregrina o acompanha. O silêncio transfigura-se nestas ondas de pura magia com que a pianista inunda o seu refúgio citadino.

É assim que tudo faz sentido, caso contrário seria impensável sobreviver à dor causada pela realidade do campo de concentração onde o invisível deixou o companheiro escritor. Rui adormeceu, depois acordou, e regressou por mais alguns instantes ao sono agitado. Na camarata 72 deviam estar cerca de duzentos homens, mas nela coabitam agora setecentas e oitenta e quatro almas que lutam, em desespero, por uma parcela de espaço.
A música é tão verde como a ilha da compositora, é da cor do mar, das marés, é da cor da esperança que vai mantendo vivas e em alerta as almas dos que aqui se comprimem. Este horror não faz sentido e aniquila as memórias de tudo o que de bom lhes possa ter acontecido. É um vazio, um buraco negro criado para esvaziar o próprio sentido da existência. Aqui os homens funcionam como sombras, escondem-se por detrás uns dos outros, escondem-se dos outros e deles próprios. Aqueles que o conseguem preferem tentar recordar quem já foram, tentam encontrar um qualquer refúgio nesse seu passado, mas até o pensamento é doloroso. A dor aqui é tudo o que se vê e o que se sente. Respirar é doloroso, praticar o mais pequeno movimento é doloroso e reviver as imagens nebulosas do passado é doloroso. Como foi possível o universo ter transformado estes homens em parceiros de um mesmo destino?
A lembrança da dança dos dedos brancos da irlandesa chega do passado ondulante, avança pela cidade negra, cinzenta, e invade a camarata 72. Faz parte das memórias dolorosas do escritor. Será ele o inventor desta história? Terá sido ele o criador da personagem invisível com quem discute nos longos intervalos em que não escreve? Como foi possível ter sido colocado nesta ingrata situação? Porquê ele e não um outro qualquer sonhador desinspirado a quem o amor não assistiu? Será que ele é também esse outro sonhador desinspirado a quem o amor não assistiu?
O invisível atraiçoou-o!
A obra vai morrer sem ter visto a luz do dia. Está tão moribunda como a sua vontade em criar.
O invisível secou-lhe a criatividade com a mesma naturalidade com que os dias nascem e com que o planeta gira e baila à volta do sol.
O amor não lhe assiste, Helen deixou-o. Helen enfeitiçou-o, amou-o e deixou de o amar. Rui não cabia na obra que ela tinha para criar. Essa obra era só dela, um sonho irrealizável que a irlandesa procurava alcançar.

- É assim que tudo faz sentido! Um frio de rachar, um frio que faz estalar os ossos, seca a pele e as ideias. Eu amo-te Helen, seja lá o que isso for. Vejo-te em todo o lado, estás em mim e fora de mim. Escuto a tua música, a tua voz, os teus poemas. Passeio pelo teu corpo, imagino-te a lua e as estrelas, vou atrás de ti como daquela primeira vez em que te vi e te apressaste a convidar-me para descobrir o mundo em que vivias, em que criavas e onde navegavas. A tua liberdade faz todo o sentido, a minha liberdade deixou de fazer sentido no momento em que nos amámos e unimos e contámos histórias e bebemos vinho, e somámos vitórias em cada passeio, em cada beijo, em cada fantasia tola que dizíamos um ao outro. Na cidade desta camarata vou deixar de existir. Aqui nada faz sentido. O mundo afundou-se nesta miséria criada pelo homem. A tua música chegou para apaziguar a minha raiva, a minha amargura, tristeza e desilusão. A tua música é a única forma de eu me manter do lado certo da razão. Aqui não há razão, só a que me chega através da tua obra, a tua música devolve-me a recordação da tua pele cândida, doce, salgada… onde estás Helen?. Consegues navegar por esse imenso oceano que te inspira? Consegues chegar até mim para me salvar? As minhas personagens morrerão se eu aqui permanecer os dias e as noites que me destinaram. Os oficiais alemães vão enviar-nos para as câmaras de gás mal nasça o dia. É só nisso que acredito. É melhor assim, é mais útil para todos se assim vier a acontecer. Amo-te Helen, sempre te amei, soube-o assim que te vi, ou te revi. Amar-te-ei para sempre, amo-te agora, pois só assim as coisas fazem sentido. Só assim as coisas continuam a fazer sentido.

Helen toca o piano pela madrugada. Do outro lado da avenida poucos são os prédios com luzes acesas. A pianista prepara-se para dizer bom-dia ao sol que está prestes a nascer, e a cidade acorda vagarosamente neste sábado primaveril, acorda sem pressa e sem vontade. Com as janelas abertas, Helen recebe o momento e toca durante mais uma hora dando a conhecer a obra à cidade que tão bem a acolheu.

O pequeno Jorge conseguiu fazer o percurso de regresso à escola ainda a tempo da última aula da manhã. Os seus colegas nunca assistiram a uma coisa assim. É a primeira vez que o “Jojó” falta às aulas. E que parvoeira lhe terá dado para ele entrar na sala com um chapéu da selecção na cabeça?
- Ó “stora”, já viu o “Jojó”? – pergunta o Vicente, sempre pronto e de língua afiada. – O puto deve mesmo estar doente. Baldou-se às aulas, o ranhoso, e agora entra para a sala com uma “boina na carola”! A “stora” vai ter de o mandar para a rua, é proibido entrar nas salas com chapéus! Eu sei, eu sei porque a “stora” mandou-me para a rua quando eu entrei com o gorro do Gustavinho. Lembra-se “stora”, foi no fim do primeiro período! A “stora” até quase me bateu! Olhe que agora lá por ser o”Jojó”…
A professora interrompe o Vicente com um CALUDA que faz estremecer a turma. Antes que o miúdo reaja, manda-o sentar e sai com Jorge para o corredor para poder conversar com ele.
- Então Jorginho, o que se passa? O Vicente, apesar de ser meio apalermado, tem razão quanto ao chapéu. Vocês sabem que é falta de respeito entrar nas salas de boina, chapéu ou gorro na cabeça. Essa é uma regra que todos têm de cumprir.
- Eu sei, “stora”, mas hoje tem de ser! Este chapéu pertencia a um homem que se atirou da ponte abaixo. Ele pediu-me para que não o tirasse durante o resto do dia, só até a sua alma encontrar um lugar tranquilo onde se possa abrigar.


terça-feira, 12 de novembro de 2013

SAIR DEPRESSA DAQUI


-Tens razão. Como sempre, tens toda a razão. Devíamos ser capazes de parar e de encontrar tempo para nós e para os miúdos. Florença, Veneza, Pádua, Verona, Milão, Itália, sem dúvida nenhuma! Sair desta rotina, destes ciclos de trabalho sufocante. Devíamos mesmo ser capazes de conseguir interromper isto tudo, mas como? Saindo pura e simplesmente daqui? E os miúdos crescem tão depressa, tudo à nossa volta cresce e passa tão depressa. Nós nem reparamos, nem damos conta. Até o Zé Paulo anda bem mais sensato do que nós. Quem diria! Mas que merda de dia este, que grande merda! O hospital está com as prioridades todas trocadas, há escassez de alguns medicamentos, as urgências estão um caos e ninguém se preocupa em fazer cumprir as ordens que dei pela manhã. Atingimos o ponto de rutura, mas agora só consigo imaginar os canais, o Rialto, a praça de São Marcos, as gôndolas, a estátua de David, os majestosos corredores dos Uffizi. Tens razão, como sempre. Neste carnaval temos de sair daqui. Por mim, era já agora. Estou farto, fartinho desta merda toda. Se pudesse, era isso mesmo que fazia. Providenciar os hotéis, os bilhetes, umas quantas malas de viagem, e sair depressa daqui. Que se lixe a conferência, o colóquio, que se lixe essa trampa toda. E para “condimentar” ainda mais este dia “memorável”, nada melhor que este atentado junto ao nosso prédio. É ou não é um daqueles dias em que tudo se conjuga para nos irritar?
- O que raio estás tu para aí a murmurar? Agora deste em falar sozinho? Olha lá, já decidiste qual de nós vai mais logo buscar os miúdos? Não te esqueças que a Fátima ficou à beira de um ataque de nervos e que terá de ser um de nós a tratar desse assunto.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

A VISITA DOS DEUSES DO OESTE




Rui tem de escrever sem rede pela primeira vez em toda a sua vida. É nas entranhas da memória que as palavras ficarão gravadas, não em papel, e nem com a pena com que se acostumou a escrever. O corpo estremeceu mais de mil vezes, os olhos viram o que jamais imaginou ser possível, o mesmo acontece com todos os sentidos. Deus dormiu uma sesta e permitiu assim que o homem se transformasse e passasse a conhecer quais as matérias que constituem as suas entranhas.
- Tenho frio, tenho muito frio! - pensa o escritor.
O animal humano que aqui se encontra enclausurado aconchega-se, aperta-se, enlaça-se como consegue para aliviar o sofrimento causado pelo frio e o pavor. É impossível descrever o cheiro, é impossível descrever o que se passa aqui pois não existem palavras que o consigam.
Helen trazia um vestido negro, uns leggings rosa choque e uns botins pretos quando o Rui a viu pela primeira vez. O cabelo ruivo da irlandesa e os seus olhos grandes e luminosos apareceram-lhe agora, vindos do nada, e contrastam com a escuridão da camarata 72. O som do piano acompanha esta memória quente e por instantes o escritor consegue fechar os olhos e adormecer. O sorriso da pianista regressa para lhe fazer companhia, as suas mãos brancas mexem no cabelo enquanto ensaiam notas em teclas invisíveis que só ela consegue vislumbrar.
- Say yes! Why don´t you? We have nothing to lose, absolutely nothing. Come with me, there is no place like it, I can assure you. Come on, say yes, Rui, please. You can write some other time.
Como seria bom se ele pudesse dizer-lhe que sim. Na cidade a preto-e-branco apenas este sonho, este querer, lhe surge colorido e perfumado, mas não real. Estas mesmas palavras foram as que ele acabou por não satisfazer, e para sempre se arrependeu. Nesse quase perfeito dia de primavera, Rui estava muito perto de acabar o seu último trabalho que já devia ter sido entregue à editora, e recusou a proposta da irlandesa. Faltava pouco, mesmo muito pouco, duas ou três páginas de texto e a obra ficaria concluída. Duas ou três passaram a seis, a dez, a dúzia e meia de folhas carregadas com o resto das viagens, encontros, desencontros, diálogos, afetos, sombras, rostos, um trágico final e, finalmente, terminou o romance. Nesse dia trabalhou até a madrugada ser de novo beijada pelo amanhecer. A luz do quarto onde Helen recebia os primeiros raios de sol encontrava-se fechada. O silêncio era a resposta que lhe chegava ao ligar-lhe, o Lopes ficou radiante com a notícia que já tardava.
Não conseguiu descansar mais do que um quarto-de-hora. Acha mesmo que nem sequer adormeceu. A voz doce da irlandesa vai cantarolando uma antiga melodia gaélica da ilha esmeralda. Rui deixa-se levar pela memória e tenta de novo adormecer. Esquece momentaneamente o frio, os cheiros, o horror, os negros e os cinzas, esquece a vida que aqui se desrespeita, esquece-se de quem é e de quem foi. Segue o trilho das palavras gaélicas da lenda contada nesta canção. Acompanhada pela tradicional harpa, Helen toca ao piano a música de Turlough O'Carolan que vem da era dos Filidh. Ele imagina-se as palavras que contam a lenda e deram origem à canção. Só assim consegue adormecer. Nela se dão a conhecer os mais importantes deuses celtas irlandeses que chegaram do oeste, da direção do outro mundo, em mágicos navios envoltos em neblina. Nela se desvendam as terríveis batalhas travadas com os Fir Bolg em Moytura, e com os Fomorianos, já sob a liderança de Lug Lamfhóta.
No interior da apinhada camarata onde poucos descansam, a balada celta ecoa por breves instantes transformando o sono de Rui numa experiência ainda mais irreal.