terça-feira, 25 de março de 2014

QUERO SER UM DESENHO ANIMADO



O Rodrigo está melhor. Deixou de ter febre e já nem parece o mesmo menino que acordou esta manhã. Um dias sem aulas e com a mãe a tomar conta dele, somado a uma sessão dos seus desenhos animados favoritos, deram-lhe logo um outro ânimo.
- O pai perguntou por ti, Rodrigo. Estava a ficar preocupada porque ele nunca mais atendia o telemóvel. Disse-lhe que estavas melhor e que passaste a tarde toda a ver esses bonecos amalucados de que tu tanto gostas.
O menino sorri. Está-lhe a saber mesmo bem este dia passado na companhia da mãe, mas é pena o pai ter de estar a trabalhar. Seria bom se eles pudessem estar juntos neste dia, ou estarem sempre juntos todos os dias.
. Mãe, não achas que seria “bué da fixe” se o pai não estivesse a trabalhar e pudesse estar aqui em casa connosco a comer bolachas e a ver desenhos animados? Porque é que ele tem de estar sempre a trabalhar? Deve ser tão chato ser adulto, mãe. Eu não quero ser adulto, não quero crescer! Isso de ser gente crescida é coisa muito complicada. Prefiro ter de estudar de quando em vez, prefiro jogar à bola com os meus colegas, ver os desenhos animados e ir às festas de anos dos meus amigos e das minhas primas. Quero ser como o Bart Simpson, ou como a Lisa. Eles nunca crescem e nos desenhos animados quase ninguém fica velho ou doente e é raro haver mortos ou feridos. É tudo a brincar e é sempre tão divertido, mãe, muito mais divertido do que a vida de um adulto. Eu não quero ser adulto, isso é mesmo a última coisa que eu quero na vida!
Rita já só tomou atenção à parte final do discurso do filho. Onde terá ele ido buscar estas ideias? Terá sido a febre alta desta manhã a responsável pelos desabafos ajuizados do Rodrigo?
- Olha que tens razão. Eu não me importava mesmo nada de poder passar o resto do dia a ver filmes ou a fazer as coisas de que mais gosto. Não ter responsabilidades, nem de tomar conta de ti. Assim não tinha passado a manhã inteirinha num centro de saúde cheio de meninos febris e engripados, nem teria de trabalhar nem teria nada com que me preocupar. Seria uma autêntica maravilha.

segunda-feira, 24 de março de 2014

COMO FUNCIONA O UNIVERSO?


- Nunca fugi dos meus problemas, mas a verdade é que deixei de acreditar naquilo que escrevo. É difícil manter uma qualidade constante quando se trata da nobre arte da escrita. Se o Daniel não me tivesse ajudado, tudo seria bem pior. Foi ele quem me acordou da letargia que tomava conta de mim, foi ele quem me ajudou a escutar. Os dias têm sido implacáveis. Disse ao Lopes que terminaria a obra durante o próximo mês, disse-lhe que escreveria um pouco, todos os dias. O livro está pronto pois todos os livros e todas as histórias já se encontram concluídas. A Pietá de Miguel Ângelo estava concluída, mas encontrava-se presa num imenso bloco de mármore até que o escultor a soltou. A obra existia na prodigiosa imaginação do grande mestre, que com ela tinha sonhado. Foi o artista quem a libertou, para todo o sempre, daquela fria prisão onde a estátua se encontrava. Essa etapa entre o antes e o depois é muito dolorosa, é complexa e tremendamente agitada. É solitária como a própria existência mas quando se faz luz, nada se lhe pode comparar. O final do processo criativo que dá origem à obra gera um misto de felicidade e de tristeza. Quando fica concluída, o artista alegra-se e rejubila, contudo fica vazio e sente-se abandonado. O Lopes já me perdoou tantos atrasos, bem merece a rápida conclusão do meu trabalho. Falta pouco, falta mesmo muito pouco. A obra está concluída mas este é ainda um tempo e um espaço em que lhe dou corpo e conteúdo, em que a moldo e faço crescer. Dentro em breve o Lopes estará de sorriso no rosto com o meu livro nas mãos.
- Rui, what are you doing? Close the window and come inside. I want to show you something.
A noite chegou à cidade. O invisível deixou a cidade.
Helen chama o escritor para lhe dizer o que ele já adivinhou.
- I have finished my piano concerto! Look, this is the last page of my work. I wrote it twice because I want to give it to you. I hope you like it, my love.
A irlandesa oferece-lhe a última página da sua nova sinfonia, sentada ao piano  tal como veio ao mundo. Desenhou as notas finais naquelas cinco linhas paralelas, intercaladas por iguais espaços em branco, abstratos signos, notas prodigiosas, uma ímpar melodia.
Com o escritor ao seu lado, dá início ao recital. Pela primeira vez a bela pianista irlandesa toca na íntegra, e de memória, a obra que acaba de finalizar.


Zé Paulo tem uma visão muito particular do universo e do seu funcionamento. Nada do que já leu ou estudou acerca do assunto o deixou minimamente satisfeito. Poucas luzes foram assim acrescentadas às suas incompreendidas teorias. O irmão Rogério é o único a quem ele as tentou explicar, com pouco ou nenhum sucesso.
É virtualmente impossível conseguir provar os seus complicados pensamentos acerca da matéria em causa. Zé Paulo conseguiu, por uma só vez, prender a atenção do irmão durante um quarto-de-hora de uma sua conferência, mas daí em diante o semblante de Rogério começou a dar mostras de um grande ceticismo, primeiro, e de um extremo cansaço, depois, até que atingiu o ponto de saturação.
- Para lá com isso, Zé Paulo! Deixei de te entender à dez minutos atrás! As tuas teorias são ultra complexas, para mim não fazem sentido nenhum. Passaste os últimos três anos tão obcecado na tentativa de encontrar significados para coisas mais próprias de filmes de ficção científica, que acabaste por te desligar do mundo real. Tu vives literalmente no mundo da lua, meu irmão! Para ti deixaram de existir épocas festivas, fins-de-semana, feriados, almoços ou jantares de família, e até as idas ao teatro! Logo tu que tanto gostavas de assistir a uma boa peça. Quando foi a última vez que saíste para ir ao teatro? Vá, diz-me lá qual foi a última peça a que assististe?
Zé Paulo parou de discursar. Teve pena não ter dado conta que aquele não era o momento acertado para lhe explicar as mais complexas teorias acerca do funcionamento do universo. Foi imprudente e descuidado pois não queria obter aquela reação do Rogério.
- Desculpa se causei este ruído no funcionamento dos nossos universos. Escutei mal o burburinho das estrelas, devia ter sido mais sensato. Queres um café ou preferes chá? Uma bebida quente faz milagres e ajuda a apaziguar a ira.
Rogério sorriu. O irmão é quase sempre assim, imprevisível, e é também por isso que o adora mais do que a qualquer outra pessoa neste mundo
- Pode ser um café, mano, bem forte como de costume.

quinta-feira, 20 de março de 2014

O INFINITO É COISA COM PRINCÍPIO MEIO E FIM


A obra atravessa o espaço como um cometa, vislumbra outros astros iguais a si enquanto viaja.
O Lopes é capaz de se zangar quando Rui lhe disser que apesar de andar mais concentrado e de ter sido capaz de escrever todos os dias, a obra está longe de chegar ao fim. Mas este facto deixou de preocupar o escritor.
Mais dia, menos dia, os cientistas conseguirão provar que o universo nasceu e desde então não tem parado de crescer. Ficará provada a existência de um início, e se o universo nasceu, então seguramente terá um fim. O infinito é coisa com princípio, meio e fim, por isso também nós somos infinitos como o universo onde nadamos. Isso é reconfortante.
O que verdadeiramente importa é sermos capazes de escrever as histórias que escutamos.
- É isso que tu tentas fazer, Rui? Escrever as histórias que vais escutando. Eu próprio te contei um pouco da minha história. O que vais fazer com ela? Vais acrescentar palavras à tua obra? É isso que pretendes fazer? Claro que sim, é mesmo isso que vais fazer. Se parares de escrever morres mais depressa. Segura-te às palavras das tuas histórias, mesmo que elas não tenham nexo. Não pares de escrever, Rui, não te deixes abater pela constante falta de inspiração, como gostas de lhe chamar. A tua pianista ama-te, és um homem de sorte! A tua solidão acabou. O mundo deixou de ser igual ao que era no início da tua obra. Eu e todas as personagens da história estamos bem melhor agora. A tua cidade é mais feliz do que aquelas que te dei a conhecer, e todas são verdadeiras porque existem, ou já aconteceram. A obra terá de ser capaz de explicar estas evidências. Tudo está relacionado e nada acontece por acaso. A minha tarefa está praticamente concluída, eu nada mais te posso mostrar pois assim me comunicaram. Está quase na hora de regressar a casa. Estou com saudades desse lugar que nunca conheci. Quem sabe se desta vez me será facultada uma vida com um pouco mais de cor. Talvez possa encontrar a minha pianista e o meu mundo ganhe uma luz incomparável. Talvez. Se quiseres conta um pouco da minha história nessa tua obra, amigo escritor. Conta as histórias dos lugares para onde te transportei, conta como eles te transformaram. Escreve acerca das nossas conversas e discussões, escreve, mas apenas se quiseres.
Este é um dia bom, é um dia tão bom como outro qualquer.
Daniel acena um adeus, ao longe, do outro lado da avenida, sentado à janela da sala do escritor.
Rui vê o seu amigo a desaparecer muito lentamente, tal como uma imagem cinematográfica que desvanece.

PÁGINA VAZIA


- Pretendo escrever o que falta desta história. - diz o escritor a carregar nas teclas da velha máquina como nunca antes o fizera.

Agora os deuses dar-lhe-ão as frases que faltam para concluir a obra, e tudo voltará a ser como sempre foi. Passado e presente, trabalhados em doses ímpares, escutam as conversas de todas as vozes e ajudam a construir mais esta história. Nada é igual, o corpo anda ausente e a alma fustigada. As chamas da discórdia estão de regresso, aniquilam as memórias, os pesos das memórias.
- Escrever, escrever, não pares de escrever! - dizia Daniel, e assim ele foi fazendo, sempre que lhe era possível e as cidades não o perturbavam.
Tão complicado e contudo tão simples. Bastava estar sentado à mesa, as teclas à sua frente, ou a caneta na mão, ecrã, papel, folhas brancas, escrevinhadas ao fim de alguns instantes, a história a crescer, a não crescer.
- Dizem que todas as histórias têm um princípio, um meio e um fim. Dizem, e depois, e se for mentira, e se não se construírem exatamente assim?
Daniel gostava que Rui lhe contasse o fim do romance que ajudou a construir. Daniel quer saber se as personagens que o escritor foi construindo acreditam em finais felizes. O invisível não acreditou num final feliz, nem num princípio ou um meio feliz. Daniel não acreditou na vida que lhe calhou em sorte até que, corajoso, saltou para o vazio que o abraçou.
As vozes estão a contar este pedaço da obra ao escritor que hoje resolveu escrever diretamente na máquina. Hoje não houve tempo para preparar a caneta e o caderno. Ele sentou-se em frente ao computador a olhar para as teclas negras de letras brancas, a escutar as vozes que lhe ditam as palavras. Como sempre, Rui acredita que a história não é sua, nenhuma das histórias é verdadeiramente sua, mas isso não se atreve a dizer a ninguém. Talvez se atreva, um destes dias, mas não hoje, ainda não hoje.
Está cansado.
A obra avança e não avança, ou avança devagar.
Ele carrega nas teclas com tal velocidade que nem se apercebe do que está a escrever. E se tivesse sido sempre assim? Para que perdeu ele tanto tempo a escrever as palavras em papel? Depois tem sempre de as passar, de as guardar no computador para não se perderem. Parece um pianista louco a tocar as teclas de um estranho piano que debita letras escuras, intensas ou escuras, mais ou menos luminosas, e estranhas. Ao fim e ao cabo, é este o processo que o leva até àquele estranho instante em que tudo começa a fazer algum sentido, ou a não fazer.
- Nada disto faz sentido, nunca fez!
A música da sua amada é a única coisa que faz verdadeiro sentido nesta obra.
O resto é acessório.
Os sons delicados compostos pela pianista são tão sublimes, a beleza da sua obra é tanta que nada mais importa.
A luz de Lisboa é engolida pelo gigantesco buraco negro que atravessa a capital. Da beira das estradas saltam formas imperfeitas, palavras negras esculpidas no asfalto dançam à sua frente um estranhíssimo bailado.
Histórias feitas de sal e de vazios pairam como nuvens por sobre os rostos expressivos das personagens. São tantas as dúvidas como as certezas, e transportam idênticas ilusões. São elas que os mantêm aquecidos como centenas de milhares de estrelas colapsadas.
Rui pretende concluir o romance e não mais escrever palavras sem sentido.
Rui observa a cidade da janela e tudo se encontra no lugar devido. Tudo menos o tempo que agora é outro. Lá fora, do lado de lá da avenida, está o seu prédio. É dali que Daniel o observa nesta cidade que está tão diferente.
Rui escuta as vozes do mar na melodia de Helen, o mesmo mar que lhe devolveu as palavras e lhe entregou estas memórias numa bandeja. Escuta as vozes e tenta decifrar o final do enredo. Agora sabe porque escreveu. Necessitava de encontrar o seu destino.
A obra da irlandesa devolveu-lhe a felicidade. O corpo de Helen convida-o, é uma nascente de palavras estimadas e corajosas. O princípio e o meio da história acontecem num só dia, na manhã de um mesmo dia. E quantos séculos existem numa hora desse dia? Somos mais de sete mil milhões de almas e uma hora na história de cada um de nós equivale a duzentos e noventa e um milhões seiscentos e sessenta e sete mil dias. São setecentos e noventa e nove mil anos de histórias, sete mil novecentos e noventa séculos no somatório de uma única hora da vida de todos nós. Quantos livros seriam necessários para contar as histórias existentes nessa hora?
Rui escuta as vozes do mar na melodia de Helen, os sons sobem e descem e acrescentam-se à história. O escritor sabe que está aqui, é tudo o que sabe, e se está aqui, escreve. Escreve porque aqui é o lugar onde se entretém a escutar as vozes que lhe trazem as histórias.
Esta seria apenas mais uma página vazia, agora é poema, é obra desconexa, é um sonho roubado, escondido nas entranhas de uma memória ainda por descobrir.