quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

AS ASAS DE DANIEL



A chuva regressa, cai com maior intensidade.
O dia de chumbo parece não ter fim.
- Os dias de chumbo são melhores que o Teu silêncio, são mil vezes melhor que o Teu auxílio! O Tejo irá receber-me de braços abertos. Ao contrário de Ti, ele pede-me, aos gritos, que vá ao seu encontro. Não tenho mais receios. Perdi os medos, voarei para o visitar.
Daniel estava descalço, pisava um chão que não estava. Durante a queda, no primeiro instante em que se largou, olhou para o Cristo branco à espera de uma palavra, de um sorriso. Ele nunca se moveu. Escolheu o dia de aniversário para saltar. Pareceu-lhe bem. Daniel recordou o momento em que a mãe lhe disse ter dado à luz quando eram quase oito e meia da manhã. Corria o ano de mil novecentos e setenta e seis. A escolha da hora e do dia para saltar pareceu-lhe mesmo muito bem.
Daniel ainda lançou um último olhar esperançoso na direção do Cristo Redentor antes do universo se reorganizar, e de tudo se apagar.

- É verdade, pai! É mesmo verdade, foi tal e qual a professora Susana contou. O senhor que eu hoje vi na ponte atirou-se dela abaixo. Saltou para o Tejo e largou as roupas junto ao lugar de onde se atirou. Eu não consegui deixar de pensar nele desde que o vi a andar lá por cima, pai. Desculpa, eu sei que não devia ter feito aquilo que fiz, mas eu tinha de saber o que é que estava a acontecer.
Vasco ainda não acredita que esta história lhe está a acontecer, e ainda mal acredita que o filho tenha embarcado nessa aventura.
- Anda, vamos para casa, Jorge! Quando lá chegarmos vamos ter de conversar. Ainda não pensei no castigo que vais ter, mas é certo que nunca mais terás vontade de voltar a fazer uma coisa destas.
O menino sabia muito bem no que se estava a meter, e não se arrepende nada do que fez. Foi um momento de “agora ou nunca” que jamais irá esquecer. Mas há uma outra coisa na vida que ele anseia ainda mais do que aquilo que hoje acabou de concretizar, e resolve partilhar o desejo com o pai.
- Porque é que as pessoas resolvem acabar com a vida delas, pai? Porquê? Eu não quero que a mãe volte a tentar matar-se, pai. Pensei muito nisso enquanto regressava à escola. Não gosto que tu andes sempre tão preocupado com ela, e comigo, e com todas as coisas más que lhe podem vir a acontecer. Eu prometo não voltar a faltar às aulas, pai, está bem?
Vasco ainda não acredita nesta história. Que merda de início de ano, tão igual ao anterior, mas que merda de ano este, tão igual ao que findou!

Do Cristo Rei se avista o Tejo e a cidade, se avista o mar e as estrelas, o sol e o luar a nascer no oceano. Dali tudo se avista, tudo se espreita.
Augusto e a família acabam de chegar a Almada onde tudo está igual, menos a vida. No verão, António regressará sem vitórias, com o corpo e o espírito carregado de mágoas e incertezas.
- Puta de situação! É do camandro, sorte danada! É que foi mesmo uma sorte danada…
Joel carrega as malas, escada acima, seguido pela tia e pelo avô. Almada está tão cinzenta como o Tejo, como o céu e as vontades. As memórias de Augusto voltam a servir-lhe a Etelvina de outros anos. Doce mulher aquela com quem vagueou e com quem foi sempre verdadeiro. Com ela foi puro e cristalino. Etelvina era como o ar que respirava, era o riacho, a relva, a terra, era dona de um corpo belo e perfeito, o mais belo e mais perfeito por onde passeou. Ela tinha uns ombros largos e claros, e uns longos cabelos soltos que sabiam voar. Os lábios, quando beijavam, conseguiam fazer parar o mundo. Era com ela que Augusto melhor o entendia.
- Vamos voar, mulher? O que raio te ensinaram para tu conseguires pôr-me neste estado? Com quem aprendeste a fazer estas coisas, mulher? Não respondas, não me respondas, isso não interessa…
Etelvina deitava-se por sobre as costas do amante, massajava-o, com os dedos bem abertos, nele rodando as mãos possantes mais de uma vintena de vezes. Depois, dava meia volta e repetia o ritual, massajando-o sempre bem, desde as nádegas às coxas, desde as pernas ao sexo, e aí chegando, o mundo virava-se ao avesso. Augusto chorava de prazer até ao instante em que todas as imagens desapareciam, e só ficava Etelvina. Ela era a dona dos instintos, a maga dos prazeres sublimes, bela feiticeira desnudada, solta, livre e tão feliz. A bela Etelvina que o Xico quase assassinou. O homem atacou-a, cego pelo ciúme, no final daquela tarde em que tudo se alterou. Não a ter morto foi uma sorte danada, é que foi mesmo uma sorte danada o cabrão do Penedas não ter conseguido dar cabo dela. Sorte danada, a mesma sorte danada que impediu Augusto de aniquilar o Penedas.
Etelvina, bela Etelvina, bela feiticeira desnudada, solta, leve e tão feliz.
- Sabes uma coisa, Filipa? Sou capaz de voltar a ir viver para a aldeia. Chegou a hora de me pôr a andar daqui para fora. A cidade deixou de me interessar, e tu bem mereces descansar do teu pai velho e tolo. Eu sei que tenho sido, para ti, bem mais do que um transtorno.

O universo continua a espreguiçar-se, e estica-se para todas as direções. Ao fazê-lo, arrasta os seus parentes que procuram replicar-lhe o bailado.
Está frio, este é o dia mais frio do novo ano.
- Vasco ficou sem fala, ficou sem jeito. O miúdo tem sentido, e de que maneira, a doença da mãe. É tudo uma valente merda, puta de vida, puta de vida e puta de doença esta capaz de deprimir até o homem mais saudável.
- O que eu mais quero na vida, meu filho, é que a tua mãe consiga pôr-se boa o mais depressa possível. Tu hoje cresceste muito. Estou a ver que esse teu passeio pela ponte acabou por ser bem mais importante do que aquilo que eu supunha. Já és um homenzinho, Jorge, e eu orgulho-me de ti.
O carro atravessa o tabuleiro da ponte no exato lugar de onde há bem pouco Daniel ganhou as asas, e voou.


quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

O DIA EM QUE SOMOS A VERDADE


As semanas voavam ligeiras de sábado a sábado.
Os amantes encontravam-se e imaginavam um mundo onde beijos e abraços não fossem pecado.

- O teu coração é doce, meu amor! O teu coração sabe a ginja! – exclamava Anacleto enquanto admirava a bela Isilda.
A pele não engana, o toque, o perfume, e o paladar de quem ama sabe a verdade, e o universo caótico fica mais tranquilo e sorridente.
- Que bom seria podermos viver todos os dias como se fossem sábado. Abraça-me, aquece-me, beija-me, toca-me Anacleto, vem para dentro de mim, agora, não esperes mais. Pode ser que o mundo pare para sempre enquanto permanecermos assim quentes e unidos. Seria tão bom, Anacleto, és tão bom e tão querido.
O jovem padre era apenas homem quando respondia aos apelos de Isilda. O seu coração era doce, sabia a ginja e batia à cadência acelerada da paixão. Os corpos deslizavam um pelo outro, esperançosos. Isilda sentava-se ao colo de Anacleto, à sua frente, e recebia-o com prazer indescritível. Era ela quem o colocava dentro de si, e o aconchegava. Fechava, por instantes, os olhos molhados para melhor o sentir, e colocava as pernas ao seu redor, apertando-o com vigor. Os corpos ficavam assim unidos como se os dois fossem um só.
- Que dia é hoje, Anacleto? O dia em que nos amamos, em que nos transformamos, o dia em que somos a verdade, não é, amor meu? Vem-te, vem-te muito dentro de mim, meu amor, olha como tudo desaparece à nossa volta, como se derretem as paredes do quarto, o teto e o soalho. Olha que nem a nuvens escapam, e nem os sonhos, meu amor, nem os sonhos resistem. Também eles desaparecem com as paredes, o teto e o soalho…vem-te, vem-te muito dentro de mim, isso, isso mesmo meu amor, não pares, não agora, não, não pares, não agora Anacleto, não, não pares, não, não não! … Que dia é hoje? Amor da minha vida, que dia é este em que nos amamos e nos transformamos em quem somos de verdade?
O jovem padre sorria, amava, chorava, abraçava-a como se o mundo fosse acabar, ali, naquele instante. Beijava-a, chamava-lhe sua, afagava-lhe os cabelos perfumados e doces, e os lábios, e os seios, e as nádegas dançarinas, ajeitava-lhe melhor as pernas, elevando-a apenas um pouco para melhor a penetrar, até onde a alma e o coração se fundiam e se transformavam, e o amor, o amor que dizem ser cego e mentiroso, pois o amor salva, salvou-lhe a vida, uma vida que antes nem lhe tinha acontecido.
- E se eu engravidar, Anacleto?
Anacleto passou a conhecer o coração da jovem Isilda. Era doce, muito doce. Sabia a ginja.
 

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

A IDADE DO UNIVERSO



Nascemos e saltamos, um após o outro, os degraus da existência. Aprendemos a admirar estes espaços intercalados por sonhos e pesadelos, e admiramos a maravilhosa batalha dos seus silêncios. Vivemos numa constante dificuldade em conseguir encontrar os nossos caminhos.
Zé Paulo aprendeu a escutar o ruído dos sonhos, dos pesadelos e de muitos dos seus desassossegos. O silêncio de hoje foi mais estridente que o habitual. O dia acordou assim alvoroçado. É usual ele estar atento a estas particularidades invisíveis das substâncias, e deu conta do distúrbio muito antes do sol acordar. Havia qualquer coisa de diferente a pairar no ar esta madrugada. Zé Paulo conseguiu discerni-lo no bailado impercetível das moléculas.
O movimento dessas partículas torna-se audível, se soubermos como escutar, e são essas ínfimas alterações que podem influenciar, de maneira devastadora, tudo o que ainda está para acontecer.
- Este nosso universo é cruel e violento! Foi abandonado à nascença, e vive em constante sobressalto.
Zé Paulo medita enquanto regressa a casa depois da visita ao local do acidente. Muitas são as coisas que deixaram de fazer sentido. Será que alguma vez na vida as coisas conseguirão voltar a fazer algum sentido? Sofia passou a fazer parte dos seus pensamentos como nenhuma outra mulher. Ele ainda não sabe como isso foi possível, é um mistério que não vem explicado em nenhum manual e não se conseguirá resolver com a aplicação de um qualquer teorema ou equação. Hoje de manhã quase lhe disse para ter muito cuidado com a condução mas, como é seu hábito, calou essas palavras com receio da desordem que elas pudessem causar.
- Cansei-me de estar permanentemente a olhar para um céu mentiroso, cansei-me de ler livros carregados de teorias rebuscadas que tentam elucidar o inexplicável. Estou farto de fugir, de me esconder deste passado que não escolhi. Estou até cansado do próprio cansaço acumulado.
Zé Paulo decidiu não deixar passar em silêncio mais este dia.
As regras que se estendem ao macrocosmos também são válidas no microcosmos, e é por isso que tudo neles é tão previsível e se relaciona da mesma maneira há quase catorze mil milhões de anos.
- Talvez o universo seja bem mais antigo do que aquilo que todos imaginamos. Talvez!