quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

OS DIAS DO CAOS


As histórias nem sempre são escritas por poetas, e as que se baseiam em casos verídicos conseguem ultrapassar a ficção com grande facilidade.

O Armando era um monstro em forma de gente. Carla não fazia a mais pequena ideia de como ele era. Gostava da maneira como ele a olhava, com aqueles olhos carregados de desejo, gostava, pois nunca se tinha sentido assim observada.
Agora, será difícil esquecê-lo, e não vai ser nada fácil conseguir esconder tantas cicatrizes.
A primeira visita do Armando lá a casa foi a única em que os abusos, as violações e as agressões não aconteceram. Carla queria acreditar no que ele lhe dizia, e esse dia raro alimentou-lhe a esperança. Depois, ela nem soube como tudo aconteceu. Armando voltou, e nesse segundo encontro parecia outro. Ali estava um homem possuído pelo demónio. Carla foi feita prisioneira no seu próprio apartamento, acabou por se ver transformada numa serva, e passou a ser usada para dar cumprimento a todos os desejos do homem. Armando agarrou-a com uma tal força que lhe marcou, de imediato, os braços franzinos. Virou-a com imensa facilidade, rasgou-lhe as roupas como se fossem papel, puxou-lhe os cabelos com violência e cobriu-a com aquele hálito saturado de álcool e tabaco. Depois, apagou-lhe no corpo o cigarro ainda vivo. Usou-a como quem usa um objeto, e com ela satisfez os seus instintos mais primários e animalescos. Gozou esse prazer sórdido, e bateu-lhe inúmeras vezes enquanto isto aconteceu.
No final do longo e sádico ritual, o corpo de Carla deixou de lhe pertencer. Ela desfaleceu, e a sua alma desfez-se numa névoa esbranquiçada. Viu-se a ela própria, de fora do corpo, e assistiu a tudo o que o monstro lhe fez enquanto permaneceu desmaiada no chão do seu quarto. Armando violou-a por duas vezes, e uma terceira pouco depois dela ter recuperado os sentidos. Marcou-a no pescoço, nas nádegas, nas coxas, nas costas e nos peitos, marcou-a nos braços, nos ombros, nas clavículas, marcou-a para todo o sempre na memória. Tapou-lhe a boca, não fosse ela gritar, retirou-lhe o ar, roubou-lhe a lucidez, a inocência, matou-lhe a alegria. Deixou-lhe o rosto imaculado, pois seria sempre o mais difícil de encobrir.
Armando gostava de a vestir com roupas indignas de uma prostituta barata, roupas e adereços que ele lhe trazia e que a obrigava a usar. Depois, como era hábito, maltratava-a e chamava-lhe nomes impróprios e revoltantes de cada vez que lhe batia. Uma noite, forçou-a a beber mais de dois terços de uma garrafa de aguardente velha. A bebida era tão forte que Carla demorou dois dias até readquirir a lucidez. Não faz a mais pequena ideia do que lhe terá acontecido durante esse período, mas suspeita que outros homens tenham entrado no seu corpo e a tenham usado para dar sustento a insólitos jogos de prazer. Armando começou a levar os indivíduos lá para casa. Carla deixou de conhecer o tempo, deixou de compreender os dias e as horas. Entendeu que já não era ninguém, apenas o objeto que Armando controlava. Deixou de ter medo da morte, deixou de ter medo da altura a que se encontrava o passeio e o alcatrão da avenida, lá muito em baixo. Deixou de entender as diferentes estações do ano, e deixou de saber quem era aquela Carla que ele tinha criado. O monstro chegava todos os dias, quase sempre à mesma hora, carregado com vontades sádicas e as mesmas doses de veneno. O mundo já não era, já não existia para ela. O canalha passou a ser o seu dono, de um momento para o outro, e ela passou a sentir vergonha do que o seu coração sentira daquela primeira vez.
Estúpida, foi tão inocente e tão estúpida. Como pôde ela ter sido tão ridiculamente estúpida?
Carla vivia num estado de permanente sobressalto desde que ele saía até que regressava. Mal a besta rodava a chave na fechadura, ela entrava num genuíno estado de pavor. Um intenso odor a doença e morte tomava conta de si. Com os olhos fechados dizia, baixíssimo, que nada daquilo lhe estava a acontecer, que tudo não passava apenas de um sonho mau. Por essa altura já o homem a tinha agarrado e atormentado, já a tinha despido e preparava-se para consumar uma nova violação.
Carla deixou de saber chorar, despediu-se de todas as dores.
Aprendeu a isolar-se num universo paralelo para onde partia enquanto o devasso a sodomizava ou violentava com requintes maquiavélicos. Armando chamava-lhe nomes inqualificáveis, menos o do batismo, e terminava os seus atos apertando-a contra ele até adormecer. Os braços do animal eram possantes e grossos como correntes. Ela não adormecia, nem o sentia, porque voava para fora do corpo transfigurada naquela névoa esbranquiçada que lhe permitia resistir.
- Foste sempre um cabrão, o maior de todos os cabrões. Tinhas cornos de diabo, eras o diabo em forma de gente, e não merecias viver. Ainda bem que morreste, seu grande cabrão! Que da tua alma nada se aproveite. Ainda me assustei com o teu reflexo, mas essa foi a prova derradeira de que já não fazes parte deste mundo. Arde bem devagarinho nas chamas do inferno, filho de uma grande puta.
O telemóvel começa a tocar enquanto Carla desabafa as suas mágoas ao mundo.
O carro ficou irreconhecível com a força da explosão.
O universo é cruel e violento, é um lugar frio, escuro, cruel e violento.
Os dias do caos nem sempre são sábios, ou dotados de lucidez.
Hoje, o universo reequilibrou-se através de uma simples ação, o rebentamento inverosímil de um Audi vermelho no coração de uma das mais movimentadas avenidas da capital.


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