As histórias nem
sempre são escritas por poetas, e as que se baseiam em casos verídicos
conseguem ultrapassar a ficção com grande facilidade.
O Armando era um
monstro em forma de gente. Carla não fazia a mais pequena ideia de como ele
era. Gostava da maneira como ele a olhava, com aqueles olhos carregados de
desejo, gostava, pois nunca se tinha sentido assim observada.
Agora, será
difícil esquecê-lo, e não vai ser nada fácil conseguir esconder tantas
cicatrizes.
A primeira visita
do Armando lá a casa foi a única em que os abusos, as violações e as agressões
não aconteceram. Carla queria acreditar no que ele lhe dizia, e esse dia raro
alimentou-lhe a esperança. Depois, ela nem soube como tudo aconteceu. Armando
voltou, e nesse segundo encontro parecia outro. Ali estava um homem possuído
pelo demónio. Carla foi feita prisioneira no seu próprio apartamento, acabou
por se ver transformada numa serva, e passou a ser usada para dar cumprimento a
todos os desejos do homem. Armando agarrou-a com uma tal força que lhe marcou,
de imediato, os braços franzinos. Virou-a com imensa facilidade, rasgou-lhe as
roupas como se fossem papel, puxou-lhe os cabelos com violência e cobriu-a com
aquele hálito saturado de álcool e tabaco. Depois, apagou-lhe no corpo o
cigarro ainda vivo. Usou-a como quem usa um objeto, e com ela satisfez os seus
instintos mais primários e animalescos. Gozou esse prazer sórdido, e bateu-lhe
inúmeras vezes enquanto isto aconteceu.
No final do longo
e sádico ritual, o corpo de Carla deixou de lhe pertencer. Ela desfaleceu, e a
sua alma desfez-se numa névoa esbranquiçada. Viu-se a ela própria, de fora do
corpo, e assistiu a tudo o que o monstro lhe fez enquanto permaneceu desmaiada
no chão do seu quarto. Armando violou-a por duas vezes, e uma terceira pouco depois
dela ter recuperado os sentidos. Marcou-a no pescoço, nas nádegas, nas coxas,
nas costas e nos peitos, marcou-a nos braços, nos ombros, nas clavículas,
marcou-a para todo o sempre na memória. Tapou-lhe
a boca, não fosse ela gritar, retirou-lhe o ar, roubou-lhe a lucidez, a
inocência, matou-lhe a alegria. Deixou-lhe o rosto imaculado, pois seria sempre
o mais difícil de encobrir.
Armando gostava
de a vestir com roupas indignas de uma prostituta barata, roupas e adereços que
ele lhe trazia e que a obrigava a usar. Depois, como era hábito, maltratava-a e
chamava-lhe nomes impróprios e revoltantes de cada vez que lhe batia. Uma noite,
forçou-a a beber mais de dois terços de uma garrafa de aguardente velha. A
bebida era tão forte que Carla demorou dois dias até readquirir a lucidez. Não
faz a mais pequena ideia do que lhe terá acontecido durante esse período, mas
suspeita que outros homens tenham entrado no seu corpo e a tenham usado para
dar sustento a insólitos jogos de prazer. Armando começou a levar os indivíduos
lá para casa. Carla deixou de conhecer o tempo, deixou de compreender os dias e
as horas. Entendeu que já não era ninguém, apenas o objeto que Armando
controlava. Deixou de ter medo da morte, deixou de ter medo da altura a que se
encontrava o passeio e o alcatrão da avenida, lá muito em baixo. Deixou de
entender as diferentes estações do ano, e deixou de saber quem era aquela Carla
que ele tinha criado. O
monstro chegava todos os dias, quase sempre à mesma hora, carregado com vontades
sádicas e as mesmas doses de veneno. O mundo já não era, já não existia para
ela. O canalha passou a ser o seu dono, de um momento para o outro, e ela passou
a sentir vergonha do que o seu coração sentira daquela primeira vez.
Estúpida, foi tão
inocente e tão estúpida. Como pôde ela ter sido tão ridiculamente estúpida?
Carla vivia num
estado de permanente sobressalto desde que ele saía até que regressava. Mal a
besta rodava a chave na fechadura, ela entrava num genuíno estado de pavor. Um
intenso odor a doença e morte tomava conta de si. Com os olhos fechados dizia,
baixíssimo, que nada daquilo lhe estava a acontecer, que tudo não passava
apenas de um sonho mau. Por essa altura já o homem a tinha agarrado e
atormentado, já a tinha despido e preparava-se para consumar uma nova violação.
Carla deixou de
saber chorar, despediu-se de todas as dores.
Aprendeu a isolar-se
num universo paralelo para onde partia enquanto o devasso a sodomizava ou
violentava com requintes maquiavélicos. Armando chamava-lhe nomes
inqualificáveis, menos o do batismo, e terminava os seus atos apertando-a
contra ele até adormecer. Os braços do animal eram possantes e grossos como
correntes. Ela não adormecia, nem o sentia, porque voava para fora do corpo
transfigurada naquela névoa esbranquiçada que lhe permitia resistir.
- Foste sempre um
cabrão, o maior de todos os cabrões. Tinhas cornos de diabo, eras o diabo em
forma de gente, e não merecias viver. Ainda bem que morreste, seu grande
cabrão! Que da tua alma nada se aproveite. Ainda me assustei com o teu reflexo,
mas essa foi a prova derradeira de que já não fazes parte deste mundo. Arde bem
devagarinho nas chamas do inferno, filho de uma grande puta.
O telemóvel
começa a tocar enquanto Carla desabafa as suas mágoas ao mundo.
O carro ficou
irreconhecível com a força da explosão.
O universo é
cruel e violento, é um lugar frio, escuro, cruel e violento.
Os dias do caos
nem sempre são sábios, ou dotados de lucidez.
Hoje, o universo
reequilibrou-se através de uma simples ação, o rebentamento inverosímil de um
Audi vermelho no coração de uma das mais movimentadas avenidas da capital.
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