Hoje de manhã,
depois de acordar, Rui olhou-se ao espelho e quase não se reconheceu. Aquela
cara de sono trouxe-lhe à memória uma história recente passada consigo. Ele
sente, muitas vezes, uma necessidade invulgar de reaprender a recordar.
Rui tem livros
muito grandes que precisam de ser recheados com palavras, e estas excursões
servem-lhe de inspiração para essas obras.
Há alguns meses atrás,
a janela da sala que dá para a sua cidade convidava-o a sair. O escritor sentiu
uma grande vontade de quebrar com as rotinas, e largou a sua obra. Entrou no
carro e abalou para parte incerta. Naquele dia não lhe apeteceu escrever,
apenas percorrer muitos quilómetros. Seguiu em direção ao interior norte do
país, despediu-se das estradas principais e aventurou-se pelas mais
secundárias, algumas das quais em muito mau estado. O céu estava azul, o dia
seco e quente, e a tardinha não demorou a chegar. Uma dessas estradas perdidas,
que parecia não chegar a lado nenhum, terminava numa aldeia remota onde Rui
resolveu, enfim, descansar. No lugar existia um pequeno café por onde o tempo
não passava, e onde as bicas ainda deviam ter o mesmo sabor de antigamente. Poucos
foram os forasteiros que por lá tinham passado, só mesmo aqueles que, tal como
o escritor, se afastaram demasiado do seu destino. Naquele dia em que resolveu
sair de casa, mais uma vez, sem rumo definido, acabou por ir dar ali, àquele
velho estabelecimento de aldeia.
O dono não
falava. Permaneceu atrás do balcão a olhar para ele com um rosto inexpressivo,
mas estranhamente familiar. Depois, virou-se de costas, agachou-se e remexeu
numas garrafas. Ergueu-se, saiu daquele espaço, e apareceu com um copo cheio de
ginja que colocou na mesa do escritor.
- Tome, esta é
por conta da casa! Vai ver que não sai daqui sem me comprar duas ou três
garrafas deste néctar. Olhe que não vai encontrar melhor ginjinha do que essa,
ande o senhor os quilómetros que andar. É a melhor ginjinha do país. – exclamou
o homem a sorrir.
Rui provou o
licor e acabou por dar-lhe razão. Aquela era a mais saborosa ginja que alguma vez
tinha bebido. E isso mesmo fez questão de afirmar:
- É realmente
difícil deixar de a beber. É mesmo muito boa, uma especialidade. O senhor tem
razão. Não posso ir-me embora sem lhe comprar uma dúzia de garrafas.
Rui pediu licença
para tirar algumas fotografias ao interior da taberna. Àquela hora o sol batia
diretamente na pequena porta e invadia o estabelecimento dotando-o de uma
invulgar claridade. O dono colocou as garrafas, uma de cada vez, em cima do
balcão de mármore, antes de as colocar no interior de uma caixa de cartão. O
idoso tinha uns olhos muito azuis e um nariz largo por cima de uma barba branca
cerrada. Vestia uma camisa cor de mostarda com quadrados castanhos e umas calças
com uns suspensórios esverdeados. Duas rugas verticais de expressão
marcavam-lhe a testa por entre as sobrancelhas descontroladas. Rui considerou-o
para uma possível personagem da sua nova obra.
- Quem sabe o que
me terá feito vir até este lugar onde se vende a melhor ginja de Portugal? É uma
pena que as pessoas não costumem vir até cá, é uma pena, e elas nem sabem o que
perdem!
A viagem até
aquela aldeia perdida no meio de nenhures já tinha valido a pena.
- Um amigo meu
gosta bastante de ginjinha. Quando nos encontrarmos, vou dizer-lhe que tive de
ir até quase ao fim do mundo para lhe comprar o melhor licor do país. Promessa
é promessa! Da próxima vez que almoçarmos juntos vou oferecer-lhe algumas
garrafas deste seu licor. Ele não vai conseguir encontrar uma ginjinha como
esta.
O Lopes sabe
muito bem o quanto custa ao Rui estar sem escrever, o quanto lhe custa tentar e
não conseguir. É uma batalha, um combate desigual que quase o obrigou a
desistir e o conduziu até bem perto do desespero. Por isso ele insistia, fazia
questão em lhe telefonar, nunca parava, sempre com a desculpa de querer saber
se o texto ia avançando e a obra crescendo. O que ele queria mesmo saber era se
o Rui não desesperava ao ponto de cometer alguma loucura.
- Vai ser muito
difícil encontrar um amigo como o Lopes! Acredite meu caro senhor. Olhe que os bons
amigos, os verdadeiros amigos, são bem mais difíceis de encontrar do que uma
ginjinha tão extraordinária como a sua!
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