Muitos alunos têm faltado às aulas nos últimos dias. A
gripe, viroses, constipações, e outras maleitas com sintomas febris, reduziram
o número de alunos nas escolas. A turma de Susana é disso um bom exemplo. Estão a
faltar o Rodrigo, a Maria Inês, o Gonçalo, o Bernardo, a Joana e até o Jorge,
que nunca falta, nem mesmo às aulas de substituição.
A professora aproveita o início da lição para carregar
o telemóvel que se desligara no elevador. Mantém-no em silêncio, guardado
dentro da mala que coloca no chão junto à tomada.
- Vamos lá, meninos, não podemos perder mais tempo.
Hoje é a vez da Joana vir ao quadro corrigir o T.P.C..
Vicente, moço vivaço, avisa de imediato que a colega
está a faltar.
- Ó “stora”, a Joana não veio, … nem o “Bernas”! O “RR”
mandou-me uma mensagem a dizer que vai faltar porque está cheio de febre. Até o
mongo do “Jojó” se está a baldar. Já viu, “stora”, “ganda” cena, o Jojó a
faltar! O puto nunca falta, nem quando está doente! É mesmo um ranhoso!
A turma reage com risotas às graçolas do rapaz, que só
tiveram o propósito de atrasar ainda mais o início da aula.
- Mas que pena não teres sido tu a ficar doente, Vicente,
é uma pena! Vê lá se te cai um dentinho. Como a Joana não está, podes vir tu ao
quadro fazer a correcção do trabalho de casa. Até calhou bem! Anda, vem ao
quadro antes que eu te ponha lá fora de castigo.
Vicente arrependeu-se de ter aberto a boca. Detesta
quando o chamam ao quadro, e detesta ver os rostos dos colegas. Iam fazer cara
de gozo se dissesse que não fez o T.P.C., por isso, resolve não dar parte
fraca. Pega no livro, e prepara-se para tentar resolver os exercícios, em
direto, no quadro branco da sala. Vale mais isso do que colecionar outra
participação por falhar com os deveres. É que a mão do pai doeu-lhe bastante da
última vez…
Jorge caminha a bom ritmo. O homem da ponte ainda é
capaz de andar por lá! A chuva não estava no programa, e ele abriga-se numa das
paragens de autocarro da avenida. Ninguém parece estranhar andar por ali um
rapazinho tão novo, de mala às costas, em pleno horário escolar.
São horas vazias, horas cinzentas e molhadas, horas
que consomem os seres invisíveis, dia após dia, que os mantém alienados,
ausentes, e os impedem de prestar a devida atenção aos detalhes da obra.
Enquanto chove, param três autocarros, que recebem
mais passageiros do que os que semeiam.
Jorge espera que a chuva pare. Enquanto aguarda, pensa
no homem das barbas e cabelos longos, pensa nele com muita força, e sente que
nada disto faz grande sentido. Um homem a passear pela ponte não é uma coisa normal.
Mais estranho foi ninguém se ter preocupado, e nem o pai deu conta disso.
Também não é normal ele faltar às aulas.
As pessoas que esperam, como ele, que a chuva passe,
também não o vêem.
O chapéu da selecção que o senhor trazia na cabeça era
igualzinho ao que o pai lhe comprou quando foram ver o Ronaldo e o Nani
ao estádio da Luz.
Outro autocarro chega à paragem. Vomita mais
passageiros do que engole.
Jorge pensa que talvez seja melhor voltar para a
escola. Está a chover e ainda lhe falta andar um bom bocado até chegar à ponte.
O que estaria aquele homem a fazer lá em cima? Onde se terá escondido para ter
desaparecido assim tão depressa?
Augusto só se acalma a meio do segundo cigarro. O homem
não foi feito para voar. Ver as nuvens por cima, só quando sobe ao alto das
serras e observa o manto de neblina a cobrir os vales e o leito do rio. Mas os pés,
esses estão sempre em contacto com a terra firme que o há-de receber.
- Que porra de situação! Puta de vida esta, e a idade
já não ajuda!
Os filhos precisam de si, ainda precisam de si.
O idoso apaga a beata, e com ela a recordação dos
voos. Augusto queria poder apagar todas as merdas em que o António se meteu, com
um dos sócios franceses, só que essas não se apagam com a mesma facilidade.
A filha e o neto aguardam-no, em silêncio, junto ao
carro. Olham um para o outro, Joel encolhe os ombros, Filipa lança um suspiro.
Um alvoroço de sirenes dos bombeiros e da polícia, que
vão chegando, ecoam pelo estacionamento do aeroporto.
Pelo que escutam das conversas de quem passa, alguém
mencionou bombas e que aconteceu uma grande explosão ali por perto. Receia-se
uma vaga de atentados. O melhor é saírem do parque o mais depressa possível,
antes que se generalize a barafunda.
- Vai ver onde se meteu o teu avô! Vai, despacha-te,
não pode estar muito longe. Não tarda muito, isto vai ficar uma grande confusão.
- Estranhas e maravilhosas! Que perfeitas donzelas, e
dançam tão bem. O difícil é escolher. Precisamos de um mês para resolver a
equação. O que me dizes, escritor? Que tal passarmos o mês inteiro neste prédio
iluminado? Inspiração e criatividade não te faltarão depois de uma experiência
assim.
O invisível avança, determinado, e atravessa a porta
de entrada do edifício. As bailarinas nuas continuam a publicitar as formas e
os dotes, com mestria, em cada uma das janelas-montra da fachada.
Helen ainda não escreveu toda a melodia que compôs durante
o banho. O seu corpo molhado é um dos trinta que baila ao ritmo da obra inacabada.
Rui olha para a janela onde a pianista se entretém a compor.
O seu lugar é lá em cima, junto à irlandesa, que já está sentada ao piano a
tocar. É a primeira vez que se escutam estas duzentas notas que fazem vibrar o
ar, e o escritor não as compreende. As outras dançarinas param de bailar. Começam
a arranhar as vidraças com as unhas afiadas. Não querem saber do amor, não
querem saber nada acerca desse sentimento mentiroso. Uma delas parte o vidro da
montra com um pontapé violento. Fere o pé e a perna direita até ao joelho. Olha,
com raiva, para o rosto do escritor. Nua, enfurecida, observa Rui que se mantém
sereno perante a situação.
A jovem de pele morena e cabelos negros ataca-o. Os
lábios da bailarina beijam-no enquanto ela lhe rasga as vestes e o domina.
Helen continua a tocar a obra inacabada no piano do
apartamento, e o escritor recebe o corpo perfumado da deusa de ébano que o
acaba de possuir.
- Então rapaz? Vem até cá acima, sobe pelas escadas, não
te faças rogado. Este vai ser um mês que jamais irás esquecer.
A chuva parou.
Jorge já sabe para qual dos lados avançar.
Retoma o caminho que o levará até à ponte.