quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

A DEUSA DE ÉBANO



Muitos alunos têm faltado às aulas nos últimos dias. A gripe, viroses, constipações, e outras maleitas com sintomas febris, reduziram o número de alunos nas escolas. A turma de Susana é disso um bom exemplo. Estão a faltar o Rodrigo, a Maria Inês, o Gonçalo, o Bernardo, a Joana e até o Jorge, que nunca falta, nem mesmo às aulas de substituição.
A professora aproveita o início da lição para carregar o telemóvel que se desligara no elevador. Mantém-no em silêncio, guardado dentro da mala que coloca no chão junto à tomada.
- Vamos lá, meninos, não podemos perder mais tempo. Hoje é a vez da Joana vir ao quadro corrigir o T.P.C..
Vicente, moço vivaço, avisa de imediato que a colega está a faltar.
- Ó “stora”, a Joana não veio, … nem o “Bernas”! O “RR” mandou-me uma mensagem a dizer que vai faltar porque está cheio de febre. Até o mongo do “Jojó” se está a baldar. Já viu, “stora”, “ganda” cena, o Jojó a faltar! O puto nunca falta, nem quando está doente! É mesmo um ranhoso!
A turma reage com risotas às graçolas do rapaz, que só tiveram o propósito de atrasar ainda mais o início da aula.
- Mas que pena não teres sido tu a ficar doente, Vicente, é uma pena! Vê lá se te cai um dentinho. Como a Joana não está, podes vir tu ao quadro fazer a correcção do trabalho de casa. Até calhou bem! Anda, vem ao quadro antes que eu te ponha lá fora de castigo.
Vicente arrependeu-se de ter aberto a boca. Detesta quando o chamam ao quadro, e detesta ver os rostos dos colegas. Iam fazer cara de gozo se dissesse que não fez o T.P.C., por isso, resolve não dar parte fraca. Pega no livro, e prepara-se para tentar resolver os exercícios, em direto, no quadro branco da sala. Vale mais isso do que colecionar outra participação por falhar com os deveres. É que a mão do pai doeu-lhe bastante da última vez…

Jorge caminha a bom ritmo. O homem da ponte ainda é capaz de andar por lá! A chuva não estava no programa, e ele abriga-se numa das paragens de autocarro da avenida. Ninguém parece estranhar andar por ali um rapazinho tão novo, de mala às costas, em pleno horário escolar.
São horas vazias, horas cinzentas e molhadas, horas que consomem os seres invisíveis, dia após dia, que os mantém alienados, ausentes, e os impedem de prestar a devida atenção aos detalhes da obra.
Enquanto chove, param três autocarros, que recebem mais passageiros do que os que semeiam.
Jorge espera que a chuva pare. Enquanto aguarda, pensa no homem das barbas e cabelos longos, pensa nele com muita força, e sente que nada disto faz grande sentido. Um homem a passear pela ponte não é uma coisa normal. Mais estranho foi ninguém se ter preocupado, e nem o pai deu conta disso. Também não é normal ele faltar às aulas.
As pessoas que esperam, como ele, que a chuva passe, também não o vêem.
O chapéu da selecção que o senhor trazia na cabeça era igualzinho ao que o pai lhe comprou quando foram ver o Ronaldo e o Nani ao estádio da Luz.
Outro autocarro chega à paragem. Vomita mais passageiros do que engole.
Jorge pensa que talvez seja melhor voltar para a escola. Está a chover e ainda lhe falta andar um bom bocado até chegar à ponte. O que estaria aquele homem a fazer lá em cima? Onde se terá escondido para ter desaparecido assim tão depressa?

Augusto só se acalma a meio do segundo cigarro. O homem não foi feito para voar. Ver as nuvens por cima, só quando sobe ao alto das serras e observa o manto de neblina a cobrir os vales e o leito do rio. Mas os pés, esses estão sempre em contacto com a terra firme que o há-de receber.
- Que porra de situação! Puta de vida esta, e a idade já não ajuda!
Os filhos precisam de si, ainda precisam de si.
O idoso apaga a beata, e com ela a recordação dos voos. Augusto queria poder apagar todas as merdas em que o António se meteu, com um dos sócios franceses, só que essas não se apagam com a mesma facilidade.
A filha e o neto aguardam-no, em silêncio, junto ao carro. Olham um para o outro, Joel encolhe os ombros, Filipa lança um suspiro.
Um alvoroço de sirenes dos bombeiros e da polícia, que vão chegando, ecoam pelo estacionamento do aeroporto.
Pelo que escutam das conversas de quem passa, alguém mencionou bombas e que aconteceu uma grande explosão ali por perto. Receia-se uma vaga de atentados. O melhor é saírem do parque o mais depressa possível, antes que se generalize a barafunda.
- Vai ver onde se meteu o teu avô! Vai, despacha-te, não pode estar muito longe. Não tarda muito, isto vai ficar uma grande confusão.

- Estranhas e maravilhosas! Que perfeitas donzelas, e dançam tão bem. O difícil é escolher. Precisamos de um mês para resolver a equação. O que me dizes, escritor? Que tal passarmos o mês inteiro neste prédio iluminado? Inspiração e criatividade não te faltarão depois de uma experiência assim.
O invisível avança, determinado, e atravessa a porta de entrada do edifício. As bailarinas nuas continuam a publicitar as formas e os dotes, com mestria, em cada uma das janelas-montra da fachada.
Helen ainda não escreveu toda a melodia que compôs durante o banho. O seu corpo molhado é um dos trinta que baila ao ritmo da obra inacabada.
Rui olha para a janela onde a pianista se entretém a compor. O seu lugar é lá em cima, junto à irlandesa, que já está sentada ao piano a tocar. É a primeira vez que se escutam estas duzentas notas que fazem vibrar o ar, e o escritor não as compreende. As outras dançarinas param de bailar. Começam a arranhar as vidraças com as unhas afiadas. Não querem saber do amor, não querem saber nada acerca desse sentimento mentiroso. Uma delas parte o vidro da montra com um pontapé violento. Fere o pé e a perna direita até ao joelho. Olha, com raiva, para o rosto do escritor. Nua, enfurecida, observa Rui que se mantém sereno perante a situação.
A jovem de pele morena e cabelos negros ataca-o. Os lábios da bailarina beijam-no enquanto ela lhe rasga as vestes e o domina.
Helen continua a tocar a obra inacabada no piano do apartamento, e o escritor recebe o corpo perfumado da deusa de ébano que o acaba de possuir.
- Então rapaz? Vem até cá acima, sobe pelas escadas, não te faças rogado. Este vai ser um mês que jamais irás esquecer.

A chuva parou.
Jorge já sabe para qual dos lados avançar.
Retoma o caminho que o levará até à ponte.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

O ALINHAMENTO DO UNIVERSO



O agente telefonou, Rui não respondeu. A obra está parada e tudo o que ele lhe pudesse dizer, enervá-lo-ia ainda mais.

- Anda toda a gente doente, é o que eu te digo. Esta gripe anda a dar cabo da vida ao pessoal. Não temos mãos a medir, e até já tivemos de encaminhar doentes para outras urgências. Estamos a atingir o ponto de rotura. E tu, como tens passado desde o ano novo? Não te esqueças de fazer tudo o que eu te disse, mano! A última coisa que desejamos é que tenhas uma recaída. Anda lá, faz tudo conforme combinámos. Amanhã ou depois volto a ligar-te. Sim, eu sei, não é nada disso, é claro que não te ando a controlar. Tenho a vida ocupada de mais para te andar a controlar. Da próxima vez, podes ser tu a ligar-me, hem? O que é que achas? Telefona-me no próximo sábado. Tens lido o livro que te ofereci? Ótimo, ainda bem, eu sabia que ias gostar.
O coração de Rogério fica acelerado quando fala com o irmão Zé Paulo. As imagens da infância, naquela noite em que a vida de todos mudou, nunca desapareceram. A vida avançou, mas o mundo ficou de pernas para o ar. O medo que sentiu foi tão grande, tão intenso, que ele acabou por escolher a profissão por causa disso. “O pai mata-me se eu não obedecer à sua vontade”. – pensava, e depois viu-o, de arma na mão, a mãe aos gritos, os irmãos abraçados, o Zé Paulo nu, vermelho como o sangue, a desafiar as forças mais poderosas do universo, como ele gostava de afirmar.
É sempre assim, quando fala com o irmão. As memórias invadem-no, descontroladas, e basta apenas pensar nele.
Zé Paulo não gosta que Rogério lhe ligue com frequência. Tanta atenção só lhe faz mal. O tempo custa a passar.
O livro que ele lhe ofereceu é bom, mas os medicamentos dão-lhe sono e passa mais tempo a dormitar do que a ler.
Encosta-se à janela. As vistas fazem-lhe companhia. Adormece a olhar para a cidade, acorda e olha de novo a cidade.
O livro caiu para o chão, e ficou com as páginas dobradas. Silencioso, de capa e contracapa forradas com imagens que nada têm a ver com as palavras que guarda. Mentirosas. O universo pode ser muita coisa, mas não mente, e ninguém o conseguiu ler, interpretar, equacionar, nem tão pouco explicá-lo como merece.
Zé Paulo gosta de olhar o céu pela calada da noite. As madrugadas são serenas, encantadoras. É de noite que consegue pensar com maior clareza. O universo encontra-se numa permanente revolução, é selvagem, livre, verdadeiro, maravilhoso. Inveja-o todos os dias, e depois já não o inveja porque ele é o universo, maravilhoso em todas as suas imperfeições.
- Vejo-te como és. Entendo o teu sorriso, sei porque sorris e porque danças. Conheço-te, sei bem daquilo que és capaz. Hoje, volto a lamentar não ter tido coragem suficiente para o ter derrotado naquele dia. Já o teu poder, é infinito, e as tuas estradas são eternas. Ainda não tinha chegado o meu tempo. O meu irmão está cada vez mais chato, mas sei porque procede assim. Os buracos negros atraem-se. Ainda não consigo calcular os efeitos que uma tal colisão provocaria. Quatro buracos negros gravitam ao redor de um buraco branco. A quantidade de energia que ali se concentra é inaudita, tão intensa e poderosa que resolvem não colidir. Observam-se, movimentam-se, sugam tudo o que por lá se encontra, matéria, tempo, luz, e o espaço que existe entre eles até nada mais restar. Depois, conversam uns com os outros, sorriem, trocam impressões, aguardam, até que o universo desapareça no que outrora foi o espaço que entre eles existiu. Este é um fenómeno que está a acontecer neste preciso momento, lá fora, naquele lugar infinito que ninguém consegue interpretar. Somos tudo aquilo que não conhecemos. Respeito a sinceridade perturbadora do universo, foi ela quem me ensinou que eu sou o que ainda não conheço.
O livro já não mora no chão, repousa em cima da mesa da sala. A capa brilhante reflete o corpo nu de Zé Paulo, reflete as estrelas do céu onde vai dançando uma meia-lua luminosa. O telemóvel vibra ao receber uma mensagem do Rogério. As forças são desiguais, e para qualquer lado que ele olhe, só encontra o que não desejava encontrar. O livro voou pela janela, desgovernado, como um pássaro ferido.

O telemóvel volta a tocar.
O Lopes não desiste.
Precisa de falar urgentemente com o escritor.
É preciso começar a tratar da capa.
Rui sorri ao imaginá-la com uma fotografia do prédio em frente.
Na nova cidade, trinta são as janelas do edifício.
Em cada janela dança uma bailarina nua.
São pérolas de corpos perfeitos a anunciar prazer.

Os bombeiros, as ambulâncias e a polícia chegam ao local da explosão. As pessoas são afastadas e cria-se um perímetro de segurança. O fumo negro eleva-se nos céus. O universo é feito de alinhamentos, de fenómenos incompreensíveis a que alguns chamam coincidências.
Carla vê, mas não quer acreditar.
Hoje, o universo transformou-se no seu maior amigo.


sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

UMA PUTA DO DEMÓNIO



Fogem-lhe as palavras, como as vidas das personagens que tenta relacionar.
O duche está a saber-lhe melhor do que um sonho.
Rui regressou da cidade infernal sem saber como. Quais serão os motivos que levam o ajudante invisível a visitar esses lugares?
- Mentira! É mentira! Tu sabes bem o que sentiste quando te aventuraste pela cidade.
O apartamento não sofreu danos. Os móveis, mesas, cadeiras, prateleiras, a aparelhagem, o televisor, as coleções de livros, filmes e discos, tudo está nas devidas condições. Apenas a tampa da caneta com que escreve se encontra abandonada no meio do chão, junto às pernas do sofá. Nenhum projétil danificou o edifício, foi como se aquele horror imenso não tivesse acontecido.
Rui prende a toalha à volta da cintura, vai até à sala e olha a vista da janela. Uma jovem nua rabisca uma folha num dos apartamentos do prédio em frente. A bela ruiva não deve ter dado conta de que a janela está tão aberta que lhe publicita a figura.
- Devo estar mesmo a sonhar! – exclama Rui quase a gritar.
Tal como a sua irlandesa, a jovem do prédio em frente não se apercebeu que está nua perante o mundo, e que este lhe agradece a distração.
- Uma maravilha, Rui! Repara como são perfeitos aqueles seios apetitosos de generosas proporções. Uns mamilos tenros, pele branca, cabelos longos e molhados a iluminarem-lhe os ombros, as clavículas, e as faces do rosto delgado.
Um anjo branco de cabelos húmidos lançados sobre uns ombros largos, tocam-lhe na cara formosa, descem pelas clavículas vincadas até aos seios perfeitos. A rapariga não dá conta que está a ser observada do prédio do escritor. Rui sabe que ela nunca antes se deixou ver. Ele tão pouco se recorda do prédio existir ali naquele lugar.
- É mesmo maravilhosa, Rui! E agora, prepara-te, porque em todas as janelas do novo edifício vão surgir jovens raparigas, nuas, provocantes, de todas as raças, com cabelos longos e molhados, de seios e mamilos pecaminosos. Inspira-te, inspira-te, inspira-te nesta visão, inspira-te, sai para as ruas, vai percorrer as ruelas e calçadas desta nova cidade.
Os sons estão de regresso, e envolvem o escritor. Chegam de um lugar ainda distante. Apitos, primeiro, rumores, de seguida, até que a surdez é vencida por ruídos abafados, sons idênticos aos provocados por uma chuvada intensa e que aumentam à medida que as janelas do prédio da frente se vão abrindo.
Mais de trinta mulheres despidas surgem às janelas, montras de néon colorido onde publicitam os corpos perfeitos. Improvisam passos de dança, em posses ousadas e sedutoras.
- Que cidade é esta? – pergunta o escritor, ainda aos berros, perante o insólito espetáculo.
- Gostas? É uma verdadeira animação! Vai-te vestir, ou preferes andar assim pelas ruas da cidade. Vem, vamos festejar, que tu bem precisas. Passas a maior parte do teu tempo fechado nesses pensamentos, sempre a inventar personagens. Vem para a festa, vamos ter com aquelas fantásticas mulheres que ali dançam para nós. Esquece a cidade da guerra, esquece a cidade dos pobres e dos que apenas sobrevivem, esquece a cidade dos que querem ir para a guerra para fugir das guerras da sua própria casa. Foge, foge até junto das bailarinas, refugia-te nos seus colos e seios perfumados, nos lábios doces e carnudos, nas coxas sensuais e nas nádegas roliças. Anda, vamos afogar as mágoas antes que a cidade desapareça.
O invisível está alterado. Promove a expedição ao edifício do prazer para espevitar a alma do escritor. Até que ponto a experiência o conseguirá inspirar? Pode ser que isto ajude, pois a obra está mesmo muito atrasada.

Os sábados quentes de Isilda e Anacleto acabaram nas bocas do mundo.
Isilda ganhou uma fama que não desejava, e que ultrapassou as fronteiras da paróquia, da freguesia, do concelho. Quando a história chegou aos ouvidos do senhor bispo, chamou-lhe puta do demónio com a mesma rapidez com que o pecado lhe foi relatado pela beata do costume.
- Puta do demónio, são umas putas do demónio e merecem as chamas do inferno! – bradava o ilustríssimo prelado, enquanto se benzia sentado na sanita. - Mulher vadia, mas que puta do demónio, Deus me perdoe…


quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

AS TECLAS INVISÍVEIS DO PIANO MÁGICO



As letras estão a ficar cada vez mais difíceis de entender.
As mãos tremem-lhe quando toca nos vidros da janela da sala, Rui levantou-se, sacudiu o pó, sacudiu-se com a intenção de sentir-se vivo. Dá conta da sua surdez.
O momento em que os rebentamentos aconteceram surge-lhe em flashes desfocados. Voou, desmaiado, e uma mão previdente depositou-o, ileso, naquela posição. Aquela ainda não era a sua hora.
Testemunhou a madrugada na cidade, deitado ao lado dos cadáveres sem se conseguir mexer. Demorou a entender o que se tinha passado. Demorou a noite inteira a regressar, não queria regressar, depois já queria, depois não queria, e fechou os olhos para descansar.
- Testemunhei a noite desta cidade vitimada pela guerra e pela ruína humana. Não consigo focar, está tudo turvo, e eu sinto-me o último dos habitantes, sou o único sobrevivente do massacre. Porque não tive a mesma sorte dos outros?
As letras estão a ficar cada vez mais difíceis de entender…
O companheiro improvável respira de alívio.
- BOM! Muito bom! Decidiste bem. Nem sabes como estava preocupado contigo. Os lugares para onde tenho de te levar, são-me impostos. O sol nasceu, um novo dia nasceu, brilhante, na nova cidade que vês da janela. Regressámos a Lisboa, mas não sei se é a mesma de onde saímos.
- Porra! Não ouço nada! NADINHA! Tremo como varas verdes e estou surdo. Vou tomar um banho antes de recomeçar a escrever.

Helen gosta de se recrear na banheira a olhar para as unhas pintadas dos dedos dos pés. Encolhe-se, mergulhada na água quente e perfumada, por um longo minuto. Emerge, bem devagar. A testa, primeiro, os olhos e o nariz, depois. Simula, com os pés, os movimentos ao piano. Aqueles dedos alvos de unhas rosa choque, bailam fora de água, percorrem as teclas invisíveis do mágico piano onde toca a obra inacabada. A irlandesa escuta a melodia, acompanhada por um coro masculino e a orquestra. Toca o instrumento com os pés, com as mãos, nua, quente, húmida, parcialmente submersa, perfumada, etérea, eterna. Nada a faz sentir-se mais viva e feliz, nada. A música acompanha-a sempre, a todas as horas de todos os dias.
Helen volta a mergulhar, volta a encontrar-se cara a cara com o silêncio. De olhos fechados, debaixo de água, toca com os pés no fundo da banheira, onde se encontram as teclas invisíveis do piano mágico. Toca duzentas novas notas da sua obra, duzentas notas que a fazem sair e correr para a folha de pauta musical, antes que o mundo a resolva fazer desaparecer.
O quarto e a casa de banho ganharam pegadas húmidas.
Helen não dá conta da janela aberta, não dá conta dos sorrisos de felicidade de quem olha para si do prédio em frente, enquanto passa a música para o papel, despida, como veio ao mundo.



- A música da pianista acompanha-a, como as minhas vozes. Helen é uma bela personagem para a obra.
- Tens razão, Rui. A tua pianista é mesmo uma “boa” personagem para o romance. Já me ouves, ou ainda estás surdo como uma porta? Que belo susto me pregaste. Quanto às “minhas vozes”, elas avisaram-me que, caso não te consiga auxiliar, estarei tramado para sempre. Não sei o que me pode acontecer, afinal de contas, morto, já eu estou! Não é verdade? Morto, já eu estou! – fala o invisível a olhar a nova Lisboa. - Nem sabes a visão que estás a perder. Anda até à sala, anda cá! Olha que miúda espetacular mora ali no prédio em frente. Espetacular! Uma vista assim não é para todos. És um felizardo. Agora já entendi onde te foste inspirar para construir a personagem da tua história.
Rui ainda não consegue escutar as palavras do companheiro invisível.
O duche sabe-lhe bem, o duche e este silêncio forçado.

- Tenho de lhe telefonar, tenho mesmo de ligar-lhe. Seria tão bom se o carro fosse mesmo pelos ares como na série.
Um estrondo violentíssimo abana o prédio, e os alarmes de dezenas de viaturas disparam em uníssono. Carla olha pelas vidraças da varanda e descobre que o local onde o Audi vermelho estava estacionado deixou de existir. Foi lá que nasceram estas densas nuvens de fumo negro.
Uma vítima, um homem viu a vida ser-lhe roubada, e um susto de morte para todos os que se encontravam ali perto. Uma sorte, um autêntico milagre não haver mais mortos, nem feridos. Diz, quem viu, que o senhor estava dentro do automóvel quando ele explodiu. Só pode ter sido uma bomba a causa deste acidente. Um atentado em plena Lisboa. O estrondo foi de tal magnitude, que logo uma multidão cercou o local do rebentamento.
Carla está incrédula a observar a nuvem escura, e sente-se fazer parte do elenco da sua série.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

A MENINA MAIS LEVE DO MUNDO


As bombas continuam a cair.
Sem aviso prévio, alguém começa a disparar no escuro.
Rui está deitado, sem escutar, só cheira, e observa os clarões provocados pelas rajadas dos atiradores. Onde estará escondido o “companheiro”? O escritor não o vê, porque está surdo. O invisível está aos berros desde que ele voou projetado pelo impacto das bombas.
São como fantasmas, sombras de outro mundo. Rui revê o mesmo filme por mais quatro vezes. As personagens repetem as deixas, os movimentos, os sentimentos, sentem os mesmos dissabores, mas a cada repetição entende melhor as ideias do realizador. As cenas foram realizadas com mestria, e foram montadas com sabedoria para que a história acabasse por sobressair. O filme é o mesmo, mas a cada nova visualização, sequência brilhante após sequência brilhante, Rui capta os detalhes que antes lhe tinham escapado. Como em todas as histórias, o final não é o fim, apenas encerra o capítulo, ou indicia o novo que alguém, depois, realizará.
Vidas vulgares escondem histórias extraordinárias, porque todas as vidas são excecionais. Tudo se move em câmara lenta. As balas atravessam o ar, cruzam-se em diferentes direções, embatem com violência nas carcaças destroçadas dos edifícios, penetram tapumes de contraplacado e gesso, furam tetos falsos, carros destruídos e os cadáveres que estão ao lado do escritor.
- SAI! Anda, levanta-te! Sai daí, sai depressa daí! Isto não é um sonho, não é um filme… LEVANTA-TE ANTES QUE TE MATEM! Não me consegues ver, nunca me conseguirás ver, e eu nunca salvei ninguém enquanto fui vivo, nunca. SAI DAÍ, MERDA! MEXE-TE! Resiste à tentação de te deixares ficar deitado à espera da morte. RESISTE! Não faças como eu… FODA-SE! RESISTE!!!!!!
Rui continua surdo a ver os filmes. Está deliciado com o voo das balas em câmara lenta. Traçam perfeitas linhas luminosas na escuridão da cidade arrasada.

- Foi o teu irmão que assim decidiu! No próximo verão, vai regressar de vez a Portugal.
Augusto recebe um abraço e um beijo da filha, um abraço e dois beijos do neto, um olhar espantado e de estranheza de Filipa, um olhar de contentamento de Joel.
Calados, dirigem-se para o parque de estacionamento do aeroporto. Agora não é o momento apropriado para explicações ou esclarecimentos.
- O voo correu bem, avô? Não teve medo de andar de avião? – avança Joel para desanuviar o peso dos silêncios.
- O homem não foi feito para voar! É só isso que eu te digo, se assim fosse, teríamos nascido com asas. Mas teve de ser… teve mesmo de ser! – responde Augusto numa posse ministerial. – Paris é uma cidade confusa, grande e confusa. Digam lá o que disserem, há coisas que um velho tem dificuldade em compreender. Ele há coisas que um velho, como eu, tem mesmo muita dificuldade em entender…
Susana e Joel olham para o pai e avô, cheios de vontade de lhe arrancarem satisfações. Travam, a tempo, as perguntas, como se tivessem ensaiado tudo com a antecedência devida.
Augusto para, acende um cigarro para desconforto de Filipa.
- Não digas nada, rapariga, não comeces com as tuas coisas. Aqui já se pode fumar, não é verdade? Vão arrumando as coisas no carro, que eu já venho.
O ano novo continua tão igual ao que já passou.

Dançar, só lhe apetecia dançar. Sempre que Madalena recorda os dias passados na Beira, a maravilhosa piscina do hotel, e os belos passeios, relembra, acima de tudo, a brincadeira preferida do pai. Ao som da orquestra do hotel, os senhores e as senhoras entretinham-se em danças de salão após as refeições. O pai pegava-lhe ao colo, com uma facilidade incrível, tão incrível que ela sentia-se a menina mais leve do mundo. Depois, ao som de Glenn Miller, deslizava com ela pela pista, rodopiando uma eternidade.
Este ano, ela e o marido comemoram bodas de cristal, mas o Rogério tem andado alterado. Madalena não sabe se é do trabalho, se são os miúdos, se é do congresso, se foi do estressante fim-de-ano, passado com o Zé Paulo, se é da rotina, se é só do tempo que tem trazido toda a gente meio deprimida, ou se é por causa de si.
- Doutora, venha depressa. A doente da cama nove voltou a ter convulsões, e desta vez são mais fortes que as anteriores. – exclama a enfermeira Nádia.
Madalena só queria voltar a sentir-se, por um breve instante, tão leve e tão feliz como naqueles dias em que era a menina mais leve do mundo.
- E isso foi antes ou depois de lhe terem dado os medicamentos?
Madalena está arrependida do cigarro que acaba de fumar. Tinha decidido deixar de o fazer, tem de deixar de o fazer.
A enfermeira Nádia dá-lhe conta do estado da doente da cama nove, mas a médica está distraída. Talvez não seja boa ideia dar a novidade ao Rogério no dia do aniversário. A notícia da sua gravidez pode provocar uma reação contrária à desejada, e Madalena resolve adiar para um outro dia a importante informação.

O “invisível” já não consegue gritar.
Rui permanece deitado.
Os disparos terminaram.
A rua ficou tranquila.
As linhas luminosas deixaram de riscar o espaço cinzento-escuro da madrugada.
- Volta, por favor, volta para dentro de casa. Se continuares aí fora eu não te poderei salvar.
O mundo volta a girar à mesma velocidade.
Os cadáveres são como fantasmas, são sombras de um outro mundo.
- Tenho de me recompor. Tenho de sair daqui e incluir esta história na minha obra. Há infernos espalhados por toda a parte, e sombras e margaridas que começam a murchar. Não vale a pena avançar pelas ruas desta cidade. O medo e a morte são a única companhia dos seus habitantes.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

FLORES DE GUERRA



O mundo parou de rodar. Rui sente que tudo se imobilizou quando saiu porta fora rumo à cidade destruída.
- Que coragem! Sem conheceres o lugar, no meio desta escuridão, avanças determinado pelos escombros. Podias, ao menos, esperar que amanhecesse. Tem cuidado! O perigo é bem real, mesmo que penses de outra maneira. Queres acabar morto neste teu passeio? A tua obra mal começou, e eis que te atiras, desvairado, para as ruas desertas desta terra devastada. É isso que pretendes, que alguém te ataque, te fira de morte? Não sejas insensato, regressa ao teu local de trabalho, caso contrário, de que te serviu teres dado início ao romance? Tanta preocupação, tanta pesquisa e trabalho de preparação, e tudo isso para quê?
O mundo parou de rodar. O tempo não avança. Neste instante só existe uma conversa absurda ente o escritor e o companheiro invisível.
Rui hesita, mas tem de ver, com os seus olhos, até que ponto pode a barbaridade acontecer. Mantém-se inabalável nos seus propósitos, e avança às apalpadelas pelas escadas do prédio destruído.

- Pai, as pessoas com olhos verdes são traiçoeiras? – pergunta Jorge antes do pai se despedir junto ao portão da escola.
- Que disparate? Os teus colegas andam novamente a chatear-te? Não ligues a essas palermices, filho, não lhes ligues… e não te esqueças de dizer à professora que chegaste atrasado por causa do trânsito. Eu depois justifico a falta se for preciso.
Vasco lança um adeus ao filho, quase a fugir. O rapaz vê o carro do pai desaparecer na curva da estrada, sem vontade de enfrentar os colegas. Os gémeos Sepúlveda são mesmo parvos, e agora até a Catarina e o Martim já o provocam. Não tem pressa de ir para as aulas. Mas hoje, o que mais o preocupa, é a imagem daquele homem a passear na ponte. O Jorge ainda não arranjou explicação para o desaparecimento misterioso, e tem certeza de que o senhor não era um funcionário da manutenção. Calçava umas sapatilhas, vestia calças de ganga muito sujas, um blusão cinzento e um boné de pala verde e vermelho da seleção nacional. Tinha barba longa e uns cabelos compridos que desciam até metade da mochila preta que trazia às costas. Via-se logo que não era um trabalhador da ponte. O que raio estaria ele por lá a fazer? Jorge não consegue mesmo tirar o homem da cabeça, e decide o improvável.
- Vou até à ponte! Vou descobrir onde raio é que o homem se escondeu.
O passeio durará uma boa meia-hora até que ele chegue ao cruzamento que dá acesso ao tabuleiro da ponte. Depois, ainda são mais vinte a vinte e cinco minutos, sempre a andar, mas tem de ser. Jorge tem de resolver o mistério de uma vez por todas, e também não tem vontade nenhuma de enfrentar os colegas, que só o chateiam.

- Decidiste avançar, não foi? Estás com medo, quase apavorado, não sabes o que te impele para a aventura, mas decidiste avançar.
O “invisível” está preocupado com a expedição do escritor.
- As consequências da tua excursão noturna podem ser trágicas. Já pensaste nisso? – insiste a voz de quem não se vê.
Rui não recua um milímetro na resolução. O pior de tudo é este cheiro a morte que se alastrou desde que abriu a porta do apartamento. A escuridão, as pedras e o entulho são um mal menor.
O escritor avança às apalpadelas quando dois caças fazem de novo o mundo girar. As bombas explodem a poucos metros do local onde ele se encontra.
O mundo para de rodar.
Tudo se imobiliza.
Uma sirene aguda grita-lhe aos ouvidos, até ficar surdo.
Rui cai junto aos degraus da entrada do prédio, ao lado de três cadáveres.
- Era isto que querias? Foi para isto que decidiste avançar? Merda! Uma grande merda é o que é! E agora?
O raide foi rápido e mortal. Antes de desmaiar, sentiu a cabeça rebentar, o corpo a desligar-se, e as margaridas a florir no meio dos escombros.

Cada flor representa uma vida ceifada pela guerra.
- Não era isto que eu te queria mostrar, mas era isto que tu querias descobrir. Agora, despacha-te! Não deixes a obra abandonada. Antes das flores murcharem, tens de regressar à tua escrita. Recupera depressa, pois alguém pode matar-te de verdade.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

O FIRMAMENTO É O MAIOR DOS CEMITÉRIOS


- Então, porque não escreves? Tem sido difícil encontrar inspiração? A tua obra não avança, mas tu sabes que tens de escrever. Se não o fizeres, a editora deixará de ter confiança em ti. O que farás se isso acontecer? Andas desmotivado, distraído, e a obra está cada vez mais atrasada. Esta nova cidade é a prova de que o mundo jamais deixará de ser um lugar violento. A verdadeira natureza humana revela-se nestes conflitos. Nada lhe resiste. Pior do que a destruição visível, é a que permanecerá marcada para sempre nas memórias da humanidade.
Rui desconhece como lhe chegou a paisagem destruída. A esta situação não será alheia a intervenção do companheiro invisível. Ele ainda não disse quem é, ou quem foi, e menos informou acerca das razões que o levaram a precipitar-se da ponte abaixo. A obra não avança. Que novidade! Cada palavra que escreve, uma dor, cada linha que compõe, um tormento. Porque lhe foge a inspiração?
Na nova cidade não existem flores, as ruas estão destruídas, a morte alastra como uma doença. Os caças bailam nos céus como relâmpagos, e durante a noite o efeito que causam é indescritível.
- Escreve! Deixa de pensar nisso e escreve. Esquece os bombardeiros, a destruição, as vítimas que provocam, o cheiro nauseabundo que se propaga, a escuridão feita de fumo e de cinzas, o frio intenso causado pelo medo, as fachadas arruinadas… esquece esta merda toda, e escreve! O que é a vida de um escritor senão a obra que cria? Quanto menos pensar, mais depressa consegue fazer crescer um romance. Faz o que te digo, escreve!
O “invisível” tem razão. Cada segundo que passa é uma sílaba de uma nova palavra que o escritor não regista. As personagens da história já a viveram, ou estão a vivê-la neste instante. Rui devia estar a fazer aquilo que lhe compete, ou seja, escrever acerca das vidas desses outros.

O dia ficou mais alegre depois da chuvada. Frio, mas azul. A notícia do nascimento da sobrinha alegrou Helen. A irmã acaba de ser mãe, de novo, e mais depressa do que se imaginava. Deirdre tinha feito tantos planos, e agora já é mãe pela terceira vez. Desta feita, chegou a menina que tanto desejara.
A pianista ruiva deixa-se embalar pelas sinfonias da manhã, fecha os olhos, e vê a irmã a dar à luz, como num filme. A música de fundo foi composta por si, de propósito para o evento. Deirdre grita, e a música da irmã embala-lhe as súplicas, enquadra a azáfama dos médicos e das enfermeiras, ilustra a chegada da menina ao mundo. O ruído compassado do comboio embrulhado como presente na serenata da pianista. A música de dois pianos envolve a sobrinha quando o cordão umbilical é cortado, e sobe de intensidade quando ela solta o primeiro choro com fulgor. A melodia de Helen transporta-a até junto da irmã. A menina é lindíssima, e ela não podia ter recebido melhor notícia esta manhã.
A terra continua a movimentar-se, com ela as nuvens, os mares e os oceanos. Junto aos pilares da ponte, as luzes das viaturas da polícia e das ambulâncias estão refletidas nas vidraças húmidas das carruagens. Helen não se apercebe, continua de olhos fechados a assistir ao filme do nascimento da sobrinha. O mundo avança em câmara lenta.

- Estamos os dois aqui sentados, e toda a luz está a ser sugada com violência para o interior do buraco negro. O pai precisava de ser desligado, Alexandre! O nosso pai é um verdadeiro buraco negro, bem mais poderoso do que podes imaginar. A luz, toda a luz, desaparece na sua presença. Enquanto estive na banheira, entendi que o universo só voltaria a ganhar equilíbrio se o conseguisse fazer. As equações giravam ao meu redor, uma atrás das outras, e eram cada vez mais complexas. Não tive tempo para as transcrever, mas faziam todo o sentido. Foi então que senti um odor a perfume antigo a espalhar-se pelo quarto-de-banho. Olhei-me ao espelho e não me reconheci. Não imaginas como eu estava velho, cansado e tão gasto. Despi-me. Senti o corpo com a mesma idade do rosto que o espelho me mostrava. Aquele era eu! O nosso pai sugou o tempo e transformou-me, mano! O buraco negro chupa tudo o que orbita em seu redor, e envelheceu-nos. Mas ele mantém-se igual ao que sempre foi. Negro, impávido, poderoso, inflexível, e engole tudo com sofreguidão. Não te parece que eu tinha de fazer alguma coisa? O que me dizes, mano? Fiz bem? As fórmulas eram seguras, indicavam as soluções com clareza, diziam que o tempo acabaria por nos fazer desaparecer no interior do vórtice poderoso.
A noite estava estrelada.
Alexandre não sabia o que fazer, nem o que dizer ao irmão. Nenhuma das estrelas pode ajudar o Zé Paulo, até porque a maioria delas já não existe. O firmamento é o maior dos cemitérios, e até de dia a luz do sol é mentirosa.
- Anda, vamos para dentro. Explica-me, com mais calma, o raciocínio que te levou a equacionar esta solução para o problema. Mas primeiro vais ter de te vestir.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

CARRO ARMADILHADO




- Estivemos muito tempo à espera. O centro de saúde estava cheio de gente. Ele tem uma otite e está com a garganta muito inflamada. Já passámos pela farmácia para aviar as receitas. Foi outra meia hora perdida. Anda toda a gente doente. São quase duas da tarde e só agora vou fazer o almoço. E tu? A que horas podemos contar contigo para jantar?
Rui não pode saber, nunca sabe. As instalações que ainda tem para fazer podem demorar, e vão ocupá-lo, na pior das hipóteses, até às dez da noite. Depois tem a viagem de regresso. Atira uma hora, numa previsão, mas sem certezas.
- Não sei, Rita. Depois de Palmela ainda vou passar por Setúbal e Sesimbra. Talvez nove, nove e meia. Tu sabes como são estas coisas, mulher! O que importa é que o miúdo melhore. Amanhã quero ver se não tenho de voltar para estas bandas. Foi por isso que hoje sai mais cedo do que o habitual. Vou tentar chegar por volta das nove e meia, está bem.
O Rodrigo está cheio de fome. A caixa das bolachas ficou vazia e a mãe nunca mais se despacha. Apetece-lhe esparguete à bolonhesa. Na cantina da escola a comida nem sempre presta, mas hoje é a mãe que lhe vai cozinhar um dos seus pratos favoritos.
- Mãe, onde é que a avó guardou as bolachas?
- Nem penses que vais agora comer bolachas! Espera que eu faça o almoço, e tu tens de tomar o antibiótico logo a seguir. Estás a sentir-te melhor, é o Bruffen que está a fazer efeito.
Dona Carminda escuta uma porta a ser fechada com violência, e muitos gritos. O homem enorme com quem a menina Carla namora está aos berros, grita bem alto, com modos de um autêntico selvagem. A senhora passou a ter receio de se cruzar com o sujeito. O dia em que o viu pela primeira vez, ainda não lhe saiu da cabeça. Carminda ia a entrar no elevador, e ele saiu disparado levando-a à frente com a pressa. Uma besta de quase dois metros, com um corpanzil de meter respeito, uma cabeça grande, toda rapada, e um olhar taciturno. Anda sempre com uns óculos estranhos. Pela manhã, é o cão que não dá descanso, à tarde e à noite é o reboliço constante entre o brutamontes e a menina Carla.
- Olha, mãe! Que grande estrondo! O barulho veio outra vez lá de cima. - diz Rui de telecomando na mão.
- Não ligues. O homem é maluco, e perigoso. Lembras-te do que aconteceu ao carro quando fizemos queixa à polícia? Pode ser que um dia destes lhe aconteça alguma.
Porque terá a Carla arranjado um namorado assim? Se as coisas não melhorarem, alguém terá de voltar a fazer queixa às autoridades. O homem mete medo, e a Carla já não é a mesma. Meteu-se numa alhada de todo o tamanho. Não é difícil perceber o que se está a passar. Coitada da rapariga.
- Mais valia não abrires a boca! Pensas que estou para te aturar? Ai de ti que não estejas em casa quando eu voltar!
O homem carrega freneticamente no botão do elevador, bate na porta, dá-lhe pontapés, brada e repete asneiredos como se o mundo fosse parar se não o fizer.
- Merda de prédio, só um elevador para tantos pisos! Fechem a porta seus cabrões de merda! Fechem a porta senão parto-vos os cornos!
A vizinhança é obrigada a escutar os desaforos do animal. Hoje, o ataque de fúria foi bem mais audível.
Carla está refugiada na varanda do apartamento. Dali avista os outros prédios, outros casulos iguais ao seu, a avenida e o carro vistoso do Armando. Lembra-se da sua série favorita, recorda o episódio em que uma viatura explodiu quando o assassino rodou a chave na ignição. Talvez alguém se tenha lembrado de armadilhar o Audi vermelho durante a noite, quem sabe, talvez alguém se tenha lembrado de o fazer...