Falta-lhe
tudo, mas o pior é a terrível falta de inspiração que o tem levado até às
portas da demência. Há quase uma semana que ninguém o vê. O escritor sempre foi
algo misterioso e é um homem solitário. Poucos são os que lhe conhecem a voz ou
as amizades. A única exceção é o Lopes que muito de vez em quando se desloca ao
apartamento. Rui tem por hábito sair cedo para o seu passeio da manhã e
regressa pouco antes da hora de almoço. Depois aproveita a tarde e a noite para
escrever, ou melhor, para escutar as histórias que habitam na sua cabeça, como
nunca se esquece de salientar.
O
escritor não tem família, é filho único de pais filhos únicos já falecidos.
Ficou órfão ao entrar na idade adulta, e as vozes chegaram devagarinho para o
resgatar da solidão. Tornou-se um eremita das palavras, fechou-se ainda mais
nos mundos por elas construídos até que nesta obra, realidade e ficção
envolveram-se de tal forma que deixou de as distinguir. Passou a escutar a voz
dos mortos, de fantasmas, passou a acreditar na existência das almas. Os seus
dias passaram a ser marcados por estranhos acontecimentos que não podiam ser
apenas meras coincidências, e aí se deu início a uma espécie de alienação pouco
condizente com o seu estatuto de homem culto e inteligente. A sua criatividade
levou-o por caminhos únicos tão expressivos e surreais que os seus romances
ganharam fama inesperada.
A
janela da sala mostra-lhe a cidade, uma Lisboa luminosa de perfumes ímpares. Já
não conseguiria viver sem ela, sem as suas ruas, vielas, calçadas, becos e
avenidas, sem as tascas, os cafés e a paisagem única que o Tejo embeleza. As
suas histórias tornaram-se tão reais como os lagos do parque onde costuma
passear. Tornaram-se tão reais que ele deixou de conseguir explicar o seu
processo de criação. Mas esta última obra não tem crescido assim, e os
vizinhos, que já não o veem há quase uma semana, começam a dar sinais de alguma
preocupação. Onde se terá ele metido? Todo este tempo sem sair de casa? Estará
doente? O que raio lhe terá acontecido?
A
obra avança atraída por um gigantesco buraco negro que a deseja engolir.
-
Comunico os meus sonhos e pesadelos, os desejos e tudo mais que me empurrou
para esta cidade, para este gueto. Tenho de apelar ao silêncio, calar estas
vozes que me trouxeram até aqui. Escuto-as, a obra não avança, roubaram-me a
esperança, a alma e a vontade.
Rui
está cada vez mais perdido e incomodado pela ausência das vozes que lhe contam
as histórias. Os pesadelos levaram-no até à cidade da camarata 72, ou terá sido
o companheiro invisível a transportá-lo até ali?
Ele
imagina que talvez o cosmos não o engula de vez.
-
O imenso buraco negro vomitou esta gente desinteressante, de olhos pequenos,
gente invejosa e pequena em pensamento. Estes soldados de rostos fechados dão a
conhecer uma gritante falta de imaginação e criatividade, aliada a vontades
inócuas carregadas de inveja e pequenez. O buraco negro vomitou esta gente que
não sabe raciocinar, que não sabe amar nem procura a beleza nas coisas. Vomitou
estes soldados violentos, apáticos, gastos e cansados que avançam pela vida
como animais sujos e viscosos. É o horror que os alimenta, é o horror que os
veste e define. Soltam urros enquanto falam, soltam urros grotescos e estão
sempre prontos a atacar como cascavéis. O que lhes vai na alma é uma
desconcertante desumanidade. O tempo passa por eles com indiferença, com total
indiferença, mas regressará para os castigar com violência. Avançam pelo cosmos
como cadáveres negros e cinzentos, pois estas são as únicas cores que lhes
assistem. Grunhem palavras inenarráveis, insensatas, descrevem o abominável e o
irreal. Vivem do medo, da inveja e da mesquinhez que neles habita. O imenso
buraco negro vomitou corpos nojentos com cabeça de animal e línguas viperinas
que passaram a existir com o único propósito de destruir, de violentar e de
castigar. Existem para tudo contradizer, alimentam-se dos ódios e grunhem
acerca do pouco que conhecem, daquilo que não conhecem e do muito que ambicionavam
conhecer. Nada do que dizem é relevante, tudo é carregado de ódio e de infâmia.
Estes seres, estes soldados, vivem onde os insetos rastejam, junto ao solo e no
subsolo, nas lamas mais pútridas dos confins do universo. Cospem ao falar, ao grunhir.
Erram, sem nunca o assumirem, e matam, matam tudo o que não entendem, matam com
os olhos e com as línguas bifurcadas, matam, destroem e aniquilam todos os que lhes
fazem frente.
O
universo é cruel e violento, e toda a matéria negra o estimula.
Zé
Paulo não consegue parar de pensar, é como se o mundo fosse acabar amanhã.
O
universo está construído para que o caos continue a escrever páginas sem fim.
O
carro de Sofia está em muito mau estado.
Zé
Paulo recorda, de olhos fixos na viatura, como o universo é violento.
-
Será que os sonhos só existem para nos castigar? Sonhar, para quê? Sonhar seria
bom se os sonhos não nos contradissessem nem destruíssem…
( PARA NUNCA ESQUECER )