quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

SORTE DANADA



A palavra sorte não agrada a Zé Paulo, mas é a mais acertada para descrever o que aconteceu no acidente de Sofia. Sorte, uma sorte danada. Contra todas as regras, o simples facto de não trazer o cinto salvou-lhe a vida. Ela não se recorda do momento do impacto nem do voo que fez até ao lugar onde acordou. Lembra-se da cor do céu, meio desfocado, recorda as costas húmidas e de ter passado as mãos pelas escoriações. O carro não lhe quis obedecer, ganhou vontade própria e acabou por embater com violência numa das árvores que cresceram junto à berma.
 A polícia permaneceu por ali até à chegada do reboque que se prepara para retirar o carro do lugar onde se encontra. Zé Paulo observa o asfalto e repara na falta de marcas de travagem. Sofia pode ter adormecido, mesmo que tenha sido só por um instante, seria o suficiente para provocar o despiste que causou o acidente.
Sorte danada o irmão não ter tido coragem ou força suficiente para o ter deixado acabar com a vida do velho Sepúlveda naquela madrugada de má memória. Sorte, uma sorte danada! O Alexandre é que nunca mais foi o mesmo. Zé Paulo também nunca mais voltou a ser o mesmo. O cabrão do velho deleitava-se a organizar e a planificar a vida de todos. Controlava a da mãe, a da mulher, a dos filhos e até a da sogra que foi viver com eles após ter enviuvado. A vida era uma verdadeira merda debaixo da sua alçada, e as avós foram as primeiras a desaparecer. Definharam bem depressa dentro das quatro paredes da mansão. As duas senhoras passaram pouco mais de um ano de vida naquela casa. Florbela Sepúlveda cegou e acabou os dias quase tão insensível como o filho. Quanto à avó Leocádia, o Alzheimer ditador tomou conta dela até ao dia em que não mais despertou.  Este poder oculto do doutor Sepúlveda embrenhava-se nas paredes dos quartos, das salas e do salão, entranhava-se nos móveis de época, nas portas e janelas da habitação, vivia e alastrava-se com a luz ténue e difusa dos candeeiros, dos lustres dos tetos, e oprimia todos os que por lá se moviam. E para o tornar ainda mais omnipresente, nem faltava o retrato a óleo de sua excelência, o doutor, a ornamentar a grande parede verde da biblioteca onde ele se recreava a fumar os seus Montecristo prediletos.
Do pequeno jardim da propriedade, o velho Sepúlveda gostava de observar a sua fábrica, uma herança de família que compartilhava com os irmãos. Os edifícios ficavam lá em baixo, junto à estrada nacional para onde os grandes portões estavam virados. O doutor ia até ao jardim, bem cedo, para apreciar a azáfama dos trabalhadores que pegavam ao serviço de manhãzinha. Alguns faziam a mudança de turno e saíam pouco depois da entrada da esmagadora maioria dos colegas.
Uma sorte danada o cabrão do velho ser tão amigo daqueles dois secretários de estado do governo de Marcelo Caetano. É que, desde então, o doutor passava grandes temporadas na capital e deixava os filhos Rogério e José Paulo gozar a suprema felicidade da sua ausência. Por essa altura já o Alexandre tinha fugido para a América do Sul e o Sepúlveda tinha feito desaparecer todas as fotografias onde o filho mais velho aparecia. Zé Paulo conseguiu salvar desse holocausto um retrato onde os três irmãos estavam sentados em cavalos de madeira no areal da praia da Nazaré. Guardou-o numa pequena caixa junto a outros importantes objetos para a sua memória. Estava junto ao baralho de cartas com que o amigo Peres jogava sueca, perto das notas de vinte e de cinquenta escudos que ele lhe enfiou furtivamente no bolso traseiro dos calções. Ali arquivara, também, as pequenas pedras negras que encontrava ao passear pelo bosque e que, segundo ele, eram restos de meteoritos que a atmosfera terrestre se encarregou de incinerar. É uma sorte, uma sorte danada que o nosso planeta esteja assim tão bem protegido contra estes gigantes do espaço. Zé Paulo várias vezes desejou que um desses cometas atravessasse incólume essa carapaça invisível e caísse em cheio no local onde o excelentíssimo doutor Sepúlveda gostava de passear. Isso sim, isso é que teria sido, sem dúvida, uma sorte danada!

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