A
palavra sorte não agrada a Zé Paulo, mas é a mais acertada para descrever o
que aconteceu no acidente de Sofia. Sorte, uma sorte danada. Contra todas as
regras, o simples facto de não trazer o cinto salvou-lhe a vida. Ela não se
recorda do momento do impacto nem do voo que fez até ao lugar onde acordou.
Lembra-se da cor do céu, meio desfocado, recorda as costas húmidas e de ter
passado as mãos pelas escoriações. O carro não lhe quis obedecer, ganhou
vontade própria e acabou por embater com violência numa das árvores que
cresceram junto à berma.
A
polícia permaneceu por ali até à chegada do reboque que se prepara para retirar
o carro do lugar onde se encontra. Zé Paulo observa o asfalto e repara na
falta de marcas de travagem. Sofia pode ter adormecido, mesmo que tenha sido só
por um instante, seria o suficiente para provocar o despiste que causou o
acidente.
Sorte
danada o irmão não ter tido coragem ou força suficiente para o ter deixado
acabar com a vida do velho Sepúlveda naquela madrugada de má memória. Sorte,
uma sorte danada! O Alexandre é que nunca mais foi o mesmo. Zé Paulo também
nunca mais voltou a ser o mesmo. O cabrão do velho deleitava-se a organizar e a
planificar a vida de todos. Controlava a da mãe, a da mulher, a dos filhos e
até a da sogra que foi viver com eles após ter enviuvado. A vida era uma
verdadeira merda debaixo da sua alçada, e as avós foram as primeiras a
desaparecer. Definharam bem depressa dentro das quatro paredes da mansão. As
duas senhoras passaram pouco mais de um ano de vida naquela
casa. Florbela Sepúlveda cegou e acabou os dias quase tão insensível como
o filho. Quanto à avó Leocádia, o Alzheimer ditador tomou conta dela até ao dia
em que não mais despertou. Este poder oculto do doutor Sepúlveda
embrenhava-se nas paredes dos quartos, das salas e do salão, entranhava-se nos
móveis de época, nas portas e janelas da habitação, vivia e alastrava-se com a
luz ténue e difusa dos candeeiros, dos lustres dos tetos, e oprimia todos os
que por lá se moviam. E para o tornar ainda mais omnipresente, nem faltava o
retrato a óleo de sua excelência, o doutor, a ornamentar a grande parede verde
da biblioteca onde ele se recreava a fumar os seus Montecristo prediletos.
Do
pequeno jardim da propriedade, o velho Sepúlveda gostava de observar a sua
fábrica, uma herança de família que compartilhava com os irmãos. Os edifícios
ficavam lá em baixo, junto à estrada nacional para onde os grandes portões
estavam virados. O doutor ia até ao jardim, bem cedo, para apreciar a azáfama
dos trabalhadores que pegavam ao serviço de manhãzinha. Alguns faziam a mudança
de turno e saíam pouco depois da entrada da esmagadora maioria dos colegas.
Uma
sorte danada o cabrão do velho ser tão amigo daqueles dois secretários de
estado do governo de Marcelo Caetano. É que, desde então, o doutor passava
grandes temporadas na capital e deixava os filhos Rogério e José Paulo gozar a
suprema felicidade da sua ausência. Por essa altura já o Alexandre tinha fugido
para a América do Sul e o Sepúlveda tinha feito desaparecer todas as
fotografias onde o filho mais velho aparecia. Zé Paulo conseguiu salvar desse
holocausto um retrato onde os três irmãos estavam sentados em cavalos de
madeira no areal da praia da Nazaré. Guardou-o numa pequena caixa junto a
outros importantes objetos para a sua memória. Estava junto ao baralho de
cartas com que o amigo Peres jogava sueca, perto das notas de vinte e de
cinquenta escudos que ele lhe enfiou furtivamente no bolso traseiro dos calções.
Ali arquivara, também, as pequenas pedras negras que encontrava ao passear
pelo bosque e que, segundo ele, eram restos de meteoritos que a atmosfera
terrestre se encarregou de incinerar. É uma sorte, uma sorte danada que o nosso
planeta esteja assim tão bem protegido contra estes gigantes do espaço. Zé
Paulo várias vezes desejou que um desses cometas atravessasse incólume essa
carapaça invisível e caísse em cheio no local onde o excelentíssimo doutor
Sepúlveda gostava de passear. Isso sim, isso é que teria sido, sem dúvida, uma
sorte danada!
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