segunda-feira, 24 de junho de 2013

MATAR PARA SOBREVIVER


- A pianista veio ter comigo. Perguntou-me se gostaria de ir com ela até ao Guincho. Esta bem podia ser uma história de amor que espantaria o mundo, pensei ao olhar para ela. O dia estava particularmente ventoso. Ela contou-me o que os seus anteriores amores lhe fizeram, e como agora era uma alma independente, sedenta, esfomeada. Ficámos sentados a tarde toda a olhar o mar. Rimos, e o seu corpo e os seus olhos pediram pelos meus. - Queres fazer uma coisa comigo? - perguntou-me, arranhando a língua de Camões. Seguimos até ao seu apartamento, que fica no prédio em frente ao meu. Fez de mim o seu anjo e tocou a breve história daquele dia ao piano. Nunca o esquecerei. A pianista usou-me para engrandecer a sua obra e ajudou-me a fazer crescer a minha.
O Lopes ainda não sabe bem o que responder. O “seu” escritor continua a escrever obras acerca de pessoas, das suas dúvidas mais profundas, e de como podem, ou não, alcançar a felicidade.

- Encontrei. No meio do nada, no meio da imensidão gelada, junto às montanhas, eu encontrei, e nada é mais difícil de encontrar do que o lugar onde o silêncio habita.
Zé Paulo ganhou coragem para deixar tudo para trás, deixar de ser quem foi até então, deixar de lado todas as leis e a opressão do doutor Sepúlveda, que até não estranhou quando a mulher lhe apareceu, aos gritos, a dizer que o filho tinha desaparecido.
Outros como ele, cansados de uma vida de mentiras, isolaram-se na procura da verdade. Há quem acredite que as coisas acontecem em alturas muito específicas. Zé Paulo tinha receio do vento e das altas ondas do mar, mas sabia que eram elas quem o ajudavam a sentir-se cada vez mais forte, ali entre as rochas, o sol e o horizonte infinito.
Não aguentava mais. Saiu, de noite, sem se despedir, sem saber o que encontrar nas curvas do caminho. O que mais desejou foi que ninguém o descobrisse, e fugiu sem deixar pistas. Pretendia ver de perto como derrete o gelo, como se ara a terra, como se discute com os ambientes, como se aprende a amar, como se constrói e como se aprende a gostar de todas essas descobertas. Saiu, quase sem nada, só ele e os elementos. Queria reaprender a viver, tendo em conta a sua nova condição, o clima, as pessoas, as conversas e o tempo. A arrogância do doutor Sepúlveda, uma arrogância e um desprezo tão grandes, causaram uma desolação tremenda ao filho, que se cansou de tanta negação das evidências.
A corrente de um rio é brava quando o deseja, e a lógica da natureza nem sempre é sensata. Zé Paulo sentia-se como um cavalo selvagem que alguém manteve enclausurado durante toda a vida, e o mundo não podia esperar mais tempo. O jovem começou a procurar o universo no meio de pequenos nadas. Lutou contra fantasmas, contra torres de cimento, contra arames farpados, e viajou clandestino em comboios de mercadorias. Atravessou fronteiras, percorreu as ruas das cidades como um vagabundo. À noite era sempre mais complicado, e uma certa loucura começou a transparecer das suas palavras.
A noite era de todos e não era de ninguém. O universo é um local violento, tal como as noites geladas das grandes metrópoles. Zé Paulo derretia-se, tal como o tempo, e não descansava. Ficou louco e os seus pensamentos começaram a sangrar. O universo inteiro enlouqueceu, as pedras rolaram pelas montanhas abaixo, atravessaram os leitos dos rios e derreteram as neves eternas que cobriam as cordilheiras.
Zé Paulo continuou a procurar o universo no meio de pequenos nadas. Pensou nos irmãos, nas discussões estéreis dos pais, no ódio, no ambiente taciturno e pesado que pairava pela casa a todas as horas de todos os dias. Correu pelos vales, subiu ao topo das montanhas, navegou pelos rios mais selvagens, viveu sozinho nos desertos e em grutas, trabalhou em locais sem alma e vagueou, por instinto, dizendo ao universo o que sempre lhe quis dizer.
- Um dia matei para sobreviver! Peguei na arma que comprei para conseguir sobreviver no meio dos elementos, e matei para sobreviver. O universo ficou desajustado, tudo deixou de fazer sentido, e por mais que lavasse as mãos e os braços o sangue não desaparecia. Matei para sobreviver, e o universo vingou-se, trouxe-me de volta a memória daquela noite em que devia ter sido mais corajoso, em que devia ter concluído a tarefa que julguei ser capaz de realizar.
Zé Paulo estava prisioneiro do rio selvagem que atravessava a orla do seu universo por aqueles dias. Sensato universo que mantinha a devida distância dos universos vizinhos. Contudo, quando se aproximavam, não conseguiam evitar contar histórias uns aos outros, e passavam o tempo a conversar. Numa fase de desespero, deixou de dar o nome correto às coisas, passeou descalço e seminu pelas ruas e pelos campos, falou sozinho, em voz alta, dormiu muito e sonhou demasiado. Os pesadelos eram tão insuportáveis que desejou que a morte o visitasse. A companheira passou ao largo e entendeu que aquela ainda não era a sua hora.
Os universos entreajudam-se, mesmo que a despedida esteja para breve e possa ser para sempre.
O silêncio existe, é filho único de pai e de mãe, que também são filhos únicos.

O silêncio existe, como a morte, o amor e a saudade. São partes integrantes desta obra, como a dor, a paixão, a melancolia e a felicidade.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

O IMPÉRIO DO SILÊNCIO


Deixou de chover. O dia ficou bonito.
O Tejo reflete a luz do sol junto ao Bugio.
Helen, sempre que pode, refugia-se no silêncio, mas ultimamente não lhe tem sido fácil encontrar espaços para o sentir.
Onde o silêncio habita, moram as melodias que a pianista necessita para o seu trabalho. Olha para as árvores e os arbustos que bailam ao sabor do vento, sem nada escutar. Isso permite-lhe decifrar as notas que ali se escondem. Olha para o mar, tentando abarcar a verdadeira dimensão do oceano e do silêncio que impera nas suas águas profundas. As melodias são escravas desse amo invisível, que as mantém cativas e lhe obedecem, até que alguém as vá resgatar.
A irlandesa tem passeado pelo império do silêncio.
Os rostos de todas as pessoas, os gestos e os seus pensamentos, ficam congelados enquanto ela se aventura por esse domínio infinito. Um telhado imaculado, de cor tradicional, cobre o palácio do reino. Um céu azul, sem nuvens, silencioso como só um céu azul sem nuvens pode ser, é a cúpula do domínio onde o silêncio impera.
O Bugio brilha naquele lugar mágico onde o Tejo peregrino faz crescer o Atlântico.
Helen gosta dos vendavais do Guincho que fazem mossa nas pernas e nas faces mais desprevenidas. Gosta da paisagem ímpar, do frenesim das ondas, dos silêncios arquivados nas areias, nas rochas, e gosta dos silêncios que se espreguiçam pela serra avassaladora.
É bem mais fácil viajar se tudo se encontrar no mais profundo dos silêncios.
Helen refugia-se, sempre que pode, no sossego do seu quarto, sabendo que alguns ruídos lhe vão alterar a pureza desse instante. Há portas que batem, passos de gente que sobe e discute, gente que vive, objetos que caem, soalhos que rangem, chaves que rodam, crianças que riem e cantam e aplaudem, mais portas que batem, fósforos que se acendem, fogos que crepitam, campainhas que tocam, janelas e frestas por onde o vento assobia.

Era no quarto que a pianista tentava encontrar inspiração, um quarto sem luz, um quarto que lhe permitia viajar até ao reino do silêncio onde, às vezes, encontrava as notas musicais para os seus poemas. Era assim até ter descoberto o Guincho, esse lugar improvável onde o reino do silêncio se foi esconder. A irlandesa não consegue explicar o que sentiu quando ali passeou pela primeira vez. Foi como se sempre por ali tivesse andado, tão familiar era a paisagem, os sons, as cores, os perfumes e as vibrações. Ao chegar a casa nessa noite, despiu-se, sentou-se ao piano, e durante sete horas seguidas não parou de tocar. Estava possuída, nunca se sentira tão viva. Após o concerto, colocou-se junto à janela da sala onde permaneceu, como um manequim, mais uma hora, a recordar as notas tocadas ao piano naquela ímpar madrugada.

terça-feira, 18 de junho de 2013

A TEORIA DO CAOS


Eis a teoria do caos que a tudo se sobrepõe, nuvem aleatória de fragmentos insensatos que nenhuma equação esclarece.
Onde o sonho faz falta, a mente determina.
Onde a mente determina, a dor passeia.
Onde a dor passeia, como um verme, a indulgência esvai-se.
Onde a indulgência se esvai, cresce o medo e a obra esmorece.

- Quem te viu e quem te vê, homem! Estás pela metade do que já foste! Como conseguiste emagrecer assim tanto?
- Tu sonhas Etelvina… onde é que eu emagreci? Estarás a ver um outro que não eu?
O tempo custava a passar. O relógio da torre da igreja, lá na aldeia, contava as horas ao som das Ave-Marias. Num outro século, num outro tempo, os perfumes do campo adocicavam o avanço dos dias, que se espreguiçavam, lânguidos, pelos planaltos de terras xistosas.
- Etelvina, mantém-te atenta, de todos os lados se escutam as vozes mesquinhas e venenosas de quem não te aceita, nem aos teus atos. As mulheres, todas as mulheres, falam de ti, desse teu ardor. Têm inveja do teu corpo e da maneira como lhe dás uso, como se explorasses o universo. Antes da missa já a aldeia toda sabe o que fizeste e o que não fizeste durante a semana, seja verdade ou mentira. Se elas o dizem, da verdade se trata. Cobiçam o teu sorriso e a maneira como os homens olham para ti. Tu pareces ser de um outro tempo e pertencer a outro lugar.

Porque lhe apareceu hoje à memória, logo hoje, quando nada o faria supor? Lembrou-se de Etelvina desde que avião levantou voo de Paris, e as recordações ainda agora o perseguem. Não precisava de falar, os seus gestos e meneios diziam tudo, e enfeitiçavam. A relva era o céu, o seu corpo era o de Augusto, e as nuvens divertiam-se com eles. As roupas ficavam esquecidas, espalhadas pela mata. No lago se beijaram e amaram uma dezena de vezes. Viram as sombras a bailar por entre os troncos e ramos das árvores, sentiram a brisa e o vento mais ousado nos corpos molhados, nas tardes quase noites.
Voar mete respeito. O medo que o avião pudesse cair fez Augusto voltar até esse tempo em que, descomedidos, ele e Etelvina se amaram. Rolaram pelos campos, por sobre as ervas e o mato, pela terra húmida, seca e gretada, pela terra mais turva, escura e xistosa. Foram a própria terra, as raízes, folhas, flores, sombras e luz que os esculpia.
A hospedeira trouxe-lhe comida e bebidas, mas no céu ninguém o devia fazer. Por alguma razão as asas não crescem aos homens. Uma cerveja bem gelada ajudou Augusto a fazer de conta que o pânico tinha desaparecido.
Recordou o que aconteceu e o que fizeram antes de os terem descoberto, nus e adormecidos, perto das terras do Xico Penedas. As mãos de Etelvina faziam dele tudo o que queriam. Deixou-se levar pela sabedoria daqueles gestos, e o que ela lhe fez sentir naquele dia jamais voltou a acontecer. Um homem não precisa de ter asas para voar, mas precisa de uma mulher que o saiba fazer voar.
Etelvina sabia bem o que fazia, e Augusto demorava dias até sentir, de novo, o efeito da gravidade. Não era difícil compreender porque é que as mulheres da aldeia lhe tinham um ódio de morte. Etelvina ensinava quase todos os homens a voar sem asas, até mesmo o Xico Penedas, que era um dos maiores cabrões que por ali tinha nascido. O grosseirão ficou ainda pior depois de Etelvina o ter enfeitiçado.
A bordo não serviam cervejas nacionais, só estrangeiras. Augusto pediu a mais gelada que a hospedeira conseguiu encontrar, e a menina serviu-a com um sorriso televisivo.
Augusto receava que alguém os encontrasse, pois Etelvina vivia cada instante como se fosse o último. Naquela tarde, como em todas as outras, encontraram-se e ela começou a despi-lo. Tirou-lhe toda a roupa com desenvoltura, e ele aprovou. A rapariga olhava-o sempre nos olhos enquanto o fazia, depois beijava-o, depois tocava-lhe e beijava-o onde lhe tocava, até que tudo deixava de ter peso, cor, cheiro ou sabor. Depois despiu-se, pegou nas mãos do amante e ensinou-lhe onde as devia colocar para que tudo, finalmente, pudesse deixar de existir. Diziam que era louca, mas de louca nada tinha. Diziam que era uma puta do demónio, a maior puta que alguma vez existiu, mas os seus olhos davam vontade aos homens que os viam, uma irrefreável vontade de com ela aprenderem a voar.
- Nós devíamos ter ido pela ponte Vasco da Gama. Olha para este trânsito! Nem às duas da tarde vamos chegar a casa… - exclama o Augusto. Mas porque raio tinha ele de voltar a tocar no assunto, e repetir aquela conversa de merda? A filha podia lá adivinhar que a segunda circular ia ficar um inferno. E também não tem culpa nenhuma dele se sentir cada vez mais exausto, mais farto de tudo e de todos. Se ao menos pudesse conseguir voltar a voar com as asas que a Etelvina lhe destinou.
- Desculpa! Tu não tens culpa nenhuma, eu é que estou a ficar cada vez mais velho e mais chato…, um tolo que não sabe quando deve ficar calado.
Etelvina sabia muito bem o que fazia com o seu corpo e com o corpo dos homens, e a aldeia estava quase a cair-lhe em cima. Era livre como o vento e leve como o ar que respiravam, e só fazia o que muito bem lhe apetecia com quem muito bem lhe apetecia. Ensinou os homens da aldeia a voar sem que lhes tivessem nascido asas nas costas.
O vento soprava forte, mas Augusto não escutou nenhum ruído. Quando acordou, Etelvina estava desmaiada e era arrastada pelo cabrão do Xico Penedas, que agia possuído pelo ciúme. Augusto quase o matou! A cara do Penedas ficou uma papa quando ele acabou de o massacrar. Os nós dos dedos ficaram vermelho vivo e o corpo desnudado ganhou um universo de galáxias e de estrelas rubras.
Etelvina recuperou os sentidos e ficou sem saber o que fazer. Apanhou as roupas e cambaleou para parte incerta. Regressou passado um breve instante. Olhou Augusto olhos nos olhos, acariciou-lhe o rosto com as mãos e beijou-o, com o corpo colado ao seu, dizendo:
- Vai chamar o doutor à vila. Vai, vai depressa, antes que o Penedas acabe por morrer. Vai, não desgraces a tua vida por causa disto.
O sino tocou, deu o toque das seis da tarde antes que Etelvina se despedisse dele sem mais palavras.
O chão estava duro e seco.
Várias gotas vermelhas caíram nos pés sujos do homem voador.
Era o Penedas ou a Etelvina.

Se Augusto não tivesse acordado a tempo e não lhe tivesse dado cabo dos cornos, a rapariga teria sido assassinada.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

O MUNDO ESTÁ TODO FODIDO


As vozes que escuto riem-se de mim, e o amigo invisível está desaparecido. A cidade aguarda, sem nunca parar. Envelhece, definha, e lança aos sete ventos, num silêncio cortante, pedidos de auxílio.
A campainha da casa de Rui toca duas vezes. O Lopes chegou com um ligeiro atraso. As suas mãos brancas retiram uma cigarrilha do maço meio vazio, e acendem-na embaladas pela típica sonoridade do isqueiro metálico.
- Olá Lopes, entra! Que bom é voltar a ver-te!
Rui tem os olhos embaciados pela gripe. Os efeitos do vírus começam a fazer-se sentir, e nem distingue o odor adocicado da cigarrilha escura do agente.
- O que é que estás a fazer? O tempo, esse ingrato, passa num compasso acelerado. Tudo mudou, tudo à tua volta mudou e quase não deste conta. Evitas escrever, evitas conversar comigo. Porquê? O que receias? A obra nunca para, mas a tua obra não avança. Resolveste deixar o miúdo abandonado no meio da ponte no exato local onde me atirei. Fizeste-o de propósito, só para me enervar. Escreveste esse capítulo para me provocar, não foi? Eu não tinha nada a perder, e saltar era a minha única saída. Estava tão cansado, sentia-me velho e sem forças para lutar. Um qualquer homem invisível recebia mais atenções do que eu ao caminhar pela avenida. Os sorrisos eram falsos e as palavras mentirosas. Ninguém me respeitava, e deixei de acreditar nas pessoas. Vivi tempo demais rodeado de mentiras e falsidade, e acabei por entender que os corajosos acabam sempre por ficar sozinhos, votados ao esquecimento e ao abandono como cães raivosos. Ninguém lhes disse para serem assim tão destemidos, e acabaram por pagar bem cara a ousadia. Ao fim e ao cabo, o mundo está assente em frágeis estacas de madeira carcomida e carunchosa. Está todo fodido, e eu estava tão fodido como o mundo! E eis que tu achaste por bem enviar o puto à ponte para me apontares o dedo acusador! Se saltei, foi porque tive a coragem para o fazer, foi porque acreditei nas minhas vozes, ao contrário do que tu fazes e do que fazia a esmagadora maioria das pessoas que conheci. Será possível não teres aprendido nada com estas viagens recentes? Necessitas de mais tempo para crescer, de mais anos de vida para acumulares experiências e ganhares a coragem suficiente para aceitares, de uma vez por todas, quem tu és. Porque chamaste o Lopes se tens a obra tão atrasada? Ele sabe muito bem qual o motivo pelo qual não lhe atendeste as chamadas, e sabe que ainda é cedo para esta visita. Tens pouca coisa para lhe mostrar, e o que escreveste até agora está uma bela merda, se queres saber.
O escritor reage às palavras amargas do amigo improvável, e responde encolerizado.
- O rapaz adivinhou que te estavas a preparar para saltares da ponte abaixo. Percebeu logo que algo de estranho se estaria a passar quando deixou de te ver de dentro do carro do pai. Se assim não fosse, como me terias dito as coisas que acabaste de me dizer? Continuo a saber pouco a teu respeito, mas tenho respeitado essa tua vontade. Quanto ao resto, tens razão, partilho a mesma opinião acerca da qualidade do que escrevi até agora. A obra está mesmo a ficar uma merda de todo o tamanho!
- Então, Rui?! Isso é lá coisa que se diga? Não me chamaste até aqui para começares a denegrir o teu trabalho e o que tens andado a escrever.
O escritor esquecera-se que estava a falar com o invisível na presença do Lopes, mas é rápido a encontrar uma desculpa.
- Ó Lopes, desculpa, estava a pensar em voz alta as palavras do último capítulo. Não ligues. Senta-te aí que vou fazer um café.
O agente sorri por detrás de uma nuvem cinzenta adocicada.
- Venha de lá esse café colombiano que tanto aprecio. Depois, as palavras do teu romance até me vão soar melhor, vais ver. - “A obra está a ficar uma merda de todo o tamanho!” - Tu tens mesmo piada, ó Rui. Um gajo contigo não consegue ficar maldisposto.

A chuva regressa, mas com menor intensidade.
Jorge está assustado com as imagens que acabaram de formar-se na cabeça.
O menino viu o homem descalçar-se, tirar as meias sujas e rotas e, com todo o cuidado, introduzi-las no interior do calçado muito gasto.
O menino viu o homem ajoelhar-se, junto ao gradeamento, antes de olhar o rio.
O menino viu o homem tirar o boné da seleção nacional e colocá-lo no chão, ao lado dos sapatos.
O menino viu o homem virar-se de costas para o Tejo, com a cabeça levantada e de braços abertos como o cristo-rei.
O menino viu o homem sorrir enquanto recuava devagar. As pernas tremiam-lhe e começavam a fraquejar.
O menino viu o homem passar por cima da proteção metálica, sempre de costas voltadas para o mar.
O menino viu o homem fechar os olhos antes de se deixar cair da ponte abaixo, com os braços abertos.
O menino fechou os olhos antes de ver o homem ser engolido, já cadáver, pelas águas esverdeadas do Tejo.
Milhares de condutores e passageiros atravessavam a ponte naquela altura e não viram nada do que ali se estava a passar.

- Eu reparei no rapazito enquanto andava pela ponte.
Ele olhou para mim, e não me foi difícil alcançar o brilho do seu olhar pois era raro alguém me ver. Quando isso acontecia, era como se um raio luminoso caísse sobre mim. Quis ser o miúdo! Naquele instante desejei estar, como ele, dentro do carro. Quis ser aquele rapazinho que seguia no automóvel com o seu pai. Porque não podia ser eu o rapazinho? Estranhei aquele último desejo que assim me surgiu. Pretendi ser o miúdo e não mais quem era. Sorri, com esta imagem gravada na memória, e deixei-me cair.

- Ó Lopes, a sério, acredita no que eu te digo. A minha obra está mesmo uma merda de todo o tamanho!

A luz da tardinha ilumina a sala do escritor engripado, onde uma névoa cinzenta e perfumada cresce e se mistura com o aroma intenso do mais puro lote de café colombiano que se pode encontrar no mercado. O escritor oferece a chávena de café ao Lopes, juntamente com as folhas onde habitam as palavras da obra. Necessitará de uma boa hora e meia para elaborar uma primeira opinião.