As vozes que escuto riem-se de mim, e o
amigo invisível está desaparecido. A cidade aguarda, sem nunca parar.
Envelhece, definha, e lança aos sete ventos, num silêncio cortante, pedidos de
auxílio.
A campainha da casa de Rui toca duas
vezes. O Lopes chegou com um ligeiro atraso. As suas mãos brancas retiram uma
cigarrilha do maço meio vazio, e acendem-na embaladas pela típica sonoridade do
isqueiro metálico.
- Olá Lopes, entra! Que bom é voltar a
ver-te!
Rui tem os olhos embaciados pela gripe. Os
efeitos do vírus começam a fazer-se sentir, e nem distingue o odor adocicado da
cigarrilha escura do agente.
- O que é que estás a fazer? O tempo, esse
ingrato, passa num compasso acelerado. Tudo mudou, tudo à tua volta mudou e
quase não deste conta. Evitas escrever, evitas conversar comigo. Porquê? O que
receias? A obra nunca para, mas a tua obra não avança. Resolveste deixar o
miúdo abandonado no meio da ponte no exato local onde me atirei. Fizeste-o de
propósito, só para me enervar. Escreveste esse capítulo para me provocar, não
foi? Eu não tinha nada a perder, e saltar era a minha única saída. Estava tão
cansado, sentia-me velho e sem forças para lutar. Um qualquer homem invisível
recebia mais atenções do que eu ao caminhar pela avenida. Os sorrisos eram
falsos e as palavras mentirosas. Ninguém me respeitava, e deixei de acreditar
nas pessoas. Vivi tempo demais rodeado de mentiras e falsidade, e acabei por
entender que os corajosos acabam sempre por ficar sozinhos, votados ao esquecimento
e ao abandono como cães raivosos. Ninguém lhes disse para serem assim tão
destemidos, e acabaram por pagar bem cara a ousadia. Ao fim e ao cabo, o mundo
está assente em frágeis estacas de madeira carcomida e carunchosa. Está todo
fodido, e eu estava tão fodido como o mundo! E eis que tu achaste por bem
enviar o puto à ponte para me apontares o dedo acusador! Se saltei, foi porque
tive a coragem para o fazer, foi porque acreditei nas minhas vozes, ao
contrário do que tu fazes e do que fazia a esmagadora maioria das pessoas que
conheci. Será possível não teres aprendido nada com estas viagens recentes?
Necessitas de mais tempo para crescer, de mais anos de vida para acumulares
experiências e ganhares a coragem suficiente para aceitares, de uma vez por
todas, quem tu és. Porque chamaste o Lopes se tens a obra tão atrasada? Ele
sabe muito bem qual o motivo pelo qual não lhe atendeste as chamadas, e sabe
que ainda é cedo para esta visita. Tens pouca coisa para lhe mostrar, e o que
escreveste até agora está uma bela merda, se queres saber.
O escritor reage às palavras amargas do
amigo improvável, e responde encolerizado.
- O rapaz adivinhou que te estavas a
preparar para saltares da ponte abaixo. Percebeu logo que algo de estranho se
estaria a passar quando deixou de te ver de dentro do carro do pai. Se assim
não fosse, como me terias dito as coisas que acabaste de me dizer? Continuo a
saber pouco a teu respeito, mas tenho respeitado essa tua vontade. Quanto ao
resto, tens razão, partilho a mesma opinião acerca da qualidade do que escrevi
até agora. A obra está mesmo a ficar uma merda de todo o tamanho!
- Então, Rui?! Isso é lá coisa que se
diga? Não me chamaste até aqui para começares a denegrir o teu trabalho e o que
tens andado a escrever.
O escritor esquecera-se que estava a falar
com o invisível na presença do Lopes, mas é rápido a encontrar uma desculpa.
- Ó Lopes, desculpa, estava a pensar em
voz alta as palavras do último capítulo. Não ligues. Senta-te aí que vou fazer
um café.
O agente sorri por detrás de uma nuvem
cinzenta adocicada.
- Venha de lá esse café colombiano que
tanto aprecio. Depois, as palavras do teu romance até me vão soar melhor, vais
ver. - “A obra está a ficar uma merda de todo o tamanho!” - Tu tens mesmo
piada, ó Rui. Um gajo contigo não consegue ficar maldisposto.
A chuva regressa, mas com menor
intensidade.
Jorge está assustado com as imagens que
acabaram de formar-se na cabeça.
O menino viu o homem descalçar-se, tirar as
meias sujas e rotas e, com todo o cuidado, introduzi-las no interior do calçado
muito gasto.
O menino viu o homem ajoelhar-se, junto ao
gradeamento, antes de olhar o rio.
O menino viu o homem tirar o boné da
seleção nacional e colocá-lo no chão, ao lado dos sapatos.
O menino viu o homem virar-se de costas
para o Tejo, com a cabeça levantada e de braços abertos como o cristo-rei.
O menino viu o homem sorrir enquanto
recuava devagar. As pernas tremiam-lhe e começavam a fraquejar.
O menino viu o homem passar por cima da
proteção metálica, sempre de costas voltadas para o mar.
O menino viu o homem fechar os olhos antes
de se deixar cair da ponte abaixo, com os braços abertos.
O menino fechou os olhos antes de ver o
homem ser engolido, já cadáver, pelas águas esverdeadas do Tejo.
Milhares de condutores e passageiros
atravessavam a ponte naquela altura e não viram nada do que ali se estava a
passar.
- Eu reparei no rapazito enquanto andava
pela ponte.
Ele olhou para mim, e não me foi difícil
alcançar o brilho do seu olhar pois era raro alguém me ver. Quando isso
acontecia, era como se um raio luminoso caísse sobre mim. Quis ser o miúdo!
Naquele instante desejei estar, como ele, dentro do carro. Quis ser aquele
rapazinho que seguia no automóvel com o seu pai. Porque não podia ser eu o
rapazinho? Estranhei aquele último desejo que assim me surgiu. Pretendi ser o
miúdo e não mais quem era. Sorri, com esta imagem gravada na memória, e
deixei-me cair.
- Ó Lopes, a sério, acredita no que eu te
digo. A minha obra está mesmo uma merda de todo o tamanho!
A luz da tardinha ilumina a sala do
escritor engripado, onde uma névoa cinzenta e perfumada cresce e se mistura com
o aroma intenso do mais puro lote de café colombiano que se pode encontrar no
mercado. O escritor oferece a chávena de café ao Lopes, juntamente com as
folhas onde habitam as palavras da obra. Necessitará de uma boa hora e meia para
elaborar uma primeira opinião.
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