quinta-feira, 6 de junho de 2013

O MUNDO ESTÁ TODO FODIDO


As vozes que escuto riem-se de mim, e o amigo invisível está desaparecido. A cidade aguarda, sem nunca parar. Envelhece, definha, e lança aos sete ventos, num silêncio cortante, pedidos de auxílio.
A campainha da casa de Rui toca duas vezes. O Lopes chegou com um ligeiro atraso. As suas mãos brancas retiram uma cigarrilha do maço meio vazio, e acendem-na embaladas pela típica sonoridade do isqueiro metálico.
- Olá Lopes, entra! Que bom é voltar a ver-te!
Rui tem os olhos embaciados pela gripe. Os efeitos do vírus começam a fazer-se sentir, e nem distingue o odor adocicado da cigarrilha escura do agente.
- O que é que estás a fazer? O tempo, esse ingrato, passa num compasso acelerado. Tudo mudou, tudo à tua volta mudou e quase não deste conta. Evitas escrever, evitas conversar comigo. Porquê? O que receias? A obra nunca para, mas a tua obra não avança. Resolveste deixar o miúdo abandonado no meio da ponte no exato local onde me atirei. Fizeste-o de propósito, só para me enervar. Escreveste esse capítulo para me provocar, não foi? Eu não tinha nada a perder, e saltar era a minha única saída. Estava tão cansado, sentia-me velho e sem forças para lutar. Um qualquer homem invisível recebia mais atenções do que eu ao caminhar pela avenida. Os sorrisos eram falsos e as palavras mentirosas. Ninguém me respeitava, e deixei de acreditar nas pessoas. Vivi tempo demais rodeado de mentiras e falsidade, e acabei por entender que os corajosos acabam sempre por ficar sozinhos, votados ao esquecimento e ao abandono como cães raivosos. Ninguém lhes disse para serem assim tão destemidos, e acabaram por pagar bem cara a ousadia. Ao fim e ao cabo, o mundo está assente em frágeis estacas de madeira carcomida e carunchosa. Está todo fodido, e eu estava tão fodido como o mundo! E eis que tu achaste por bem enviar o puto à ponte para me apontares o dedo acusador! Se saltei, foi porque tive a coragem para o fazer, foi porque acreditei nas minhas vozes, ao contrário do que tu fazes e do que fazia a esmagadora maioria das pessoas que conheci. Será possível não teres aprendido nada com estas viagens recentes? Necessitas de mais tempo para crescer, de mais anos de vida para acumulares experiências e ganhares a coragem suficiente para aceitares, de uma vez por todas, quem tu és. Porque chamaste o Lopes se tens a obra tão atrasada? Ele sabe muito bem qual o motivo pelo qual não lhe atendeste as chamadas, e sabe que ainda é cedo para esta visita. Tens pouca coisa para lhe mostrar, e o que escreveste até agora está uma bela merda, se queres saber.
O escritor reage às palavras amargas do amigo improvável, e responde encolerizado.
- O rapaz adivinhou que te estavas a preparar para saltares da ponte abaixo. Percebeu logo que algo de estranho se estaria a passar quando deixou de te ver de dentro do carro do pai. Se assim não fosse, como me terias dito as coisas que acabaste de me dizer? Continuo a saber pouco a teu respeito, mas tenho respeitado essa tua vontade. Quanto ao resto, tens razão, partilho a mesma opinião acerca da qualidade do que escrevi até agora. A obra está mesmo a ficar uma merda de todo o tamanho!
- Então, Rui?! Isso é lá coisa que se diga? Não me chamaste até aqui para começares a denegrir o teu trabalho e o que tens andado a escrever.
O escritor esquecera-se que estava a falar com o invisível na presença do Lopes, mas é rápido a encontrar uma desculpa.
- Ó Lopes, desculpa, estava a pensar em voz alta as palavras do último capítulo. Não ligues. Senta-te aí que vou fazer um café.
O agente sorri por detrás de uma nuvem cinzenta adocicada.
- Venha de lá esse café colombiano que tanto aprecio. Depois, as palavras do teu romance até me vão soar melhor, vais ver. - “A obra está a ficar uma merda de todo o tamanho!” - Tu tens mesmo piada, ó Rui. Um gajo contigo não consegue ficar maldisposto.

A chuva regressa, mas com menor intensidade.
Jorge está assustado com as imagens que acabaram de formar-se na cabeça.
O menino viu o homem descalçar-se, tirar as meias sujas e rotas e, com todo o cuidado, introduzi-las no interior do calçado muito gasto.
O menino viu o homem ajoelhar-se, junto ao gradeamento, antes de olhar o rio.
O menino viu o homem tirar o boné da seleção nacional e colocá-lo no chão, ao lado dos sapatos.
O menino viu o homem virar-se de costas para o Tejo, com a cabeça levantada e de braços abertos como o cristo-rei.
O menino viu o homem sorrir enquanto recuava devagar. As pernas tremiam-lhe e começavam a fraquejar.
O menino viu o homem passar por cima da proteção metálica, sempre de costas voltadas para o mar.
O menino viu o homem fechar os olhos antes de se deixar cair da ponte abaixo, com os braços abertos.
O menino fechou os olhos antes de ver o homem ser engolido, já cadáver, pelas águas esverdeadas do Tejo.
Milhares de condutores e passageiros atravessavam a ponte naquela altura e não viram nada do que ali se estava a passar.

- Eu reparei no rapazito enquanto andava pela ponte.
Ele olhou para mim, e não me foi difícil alcançar o brilho do seu olhar pois era raro alguém me ver. Quando isso acontecia, era como se um raio luminoso caísse sobre mim. Quis ser o miúdo! Naquele instante desejei estar, como ele, dentro do carro. Quis ser aquele rapazinho que seguia no automóvel com o seu pai. Porque não podia ser eu o rapazinho? Estranhei aquele último desejo que assim me surgiu. Pretendi ser o miúdo e não mais quem era. Sorri, com esta imagem gravada na memória, e deixei-me cair.

- Ó Lopes, a sério, acredita no que eu te digo. A minha obra está mesmo uma merda de todo o tamanho!

A luz da tardinha ilumina a sala do escritor engripado, onde uma névoa cinzenta e perfumada cresce e se mistura com o aroma intenso do mais puro lote de café colombiano que se pode encontrar no mercado. O escritor oferece a chávena de café ao Lopes, juntamente com as folhas onde habitam as palavras da obra. Necessitará de uma boa hora e meia para elaborar uma primeira opinião. 

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