quarta-feira, 24 de abril de 2013

UM VELHO CABRÃO



Susana acabou a primeira aula da manhã antes da hora. Os miúdos estiveram muito irrequietos, ou então é só ela que anda mais sensível. Hoje é sexta-feira, e o fim-de-semana está à porta. Esta turma consegue dar-lhe cabo dos nervos, e os miúdos portaram-se ainda pior do que quando não falta ninguém. Os primeiros dias de aulas do segundo período são quase sempre assim.
- “Stora”, podemos sair mais cedo? O oitavo A não teve aulas. Ainda devem estar no campo a jogar à bola, “stora”. Podemos ir lá ter com eles? – pergunta o Vicente, que conseguiu fazer os trabalhos de casa em direto no quadro, sem que a professora desconfiasse. – Vá lá “stora”, olhe que hoje até nos portámos “bué da bem”!
Faltam quatro minutos para o toque. Que mal lhes podem fazer uns minutinhos a mais no intervalo?
- Pronto, então está bem. Mas é só hoje, e não façam barulho ao sair da sala.
Os alunos parecem ter molas nos rabos. A sala fica deserta num instante. A última a sair é a Constança, como de costume. A rapariga tem sempre qualquer coisa para dizer no final de cada lição, mas hoje, estranhamente, furou essa rotina. Assoa-se a um lenço de papel, e sai sem sequer se despedir. Anda adoentada, como muitos dos seus colegas. Esta maldita gripe não há meio de acabar.
Susana tem a bateria do telemóvel quase carregada, e o visor informa que o Afonso tentou ligar-lhe por sete vezes. Deve ter acontecido alguma coisa, só pode.
- Sim, Afonso? Então, o que é que se passa? Acalma-te, não consigo entender nada do que me estás para aí a dizer. Uma quê? Uma bomba!? Ao pé do prédio? Mas tu estás parvo, ou quê? Tiveste um acidente… fala devagar, homem, credo! Mas que barafunda vem a ser essa? Estarás bom da cabeça, é mesmo verdade essa história da bomba? Sim, tive de voltar atrás porque não sabia das chaves do carro. Liguei-te e fiquei sem a bateria dentro do elevador. Nem sei como consegui chegar a tempo à escola, o trânsito estava um caos, mas lá me consegui safar. E tu, ainda estás aí parado no meio da estrada? Não, … e o carro anda! Foi tudo uma imensa chatice. E que conversa é essa da bomba, isso é mesmo verdade, não estás a brincar comigo, pois não? É que não tem graça nenhuma, Afonso! A sério, foi mesmo o carro daquele gorila que foi pelos ares? E ele estava lá dentro… o melhor é eu ir a casa no intervalo do almoço. Está a dar nas notícias, é, eu já vou ver. Não vais conseguir vir à escola esta manhã, pois não? Queres que eu vá dizer alguma coisa na direção, … já lhes ligaste, então está bem, eu não vou lá. Mas que cena mais marada, chiça, até me estou a arrepiar toda.

E se hoje fosse ele a ligar ao irmão, e não o contrário? O Rogério era capaz de ficar admirado. O livro que lhe ofereceu acabou por ser muito útil. As noites estão frias, e o voo do pássaro de papel aqueceu-lhe a última madrugada.
Não, afinal não lhe vai ligar. Deve estar muitíssimo ocupado. Desde que começou a trabalhar no hospital Garcia de Orta, a vida do irmão ficou ainda mais cinzenta. Coitado! Deixou-se enrolar na conversa fiada do velho Sepúlveda. Ele que tanto gostava de desenhar e de pintar. Pobre miúdo.
Desde que a pistola saiu da gaveta do excelentíssimo doutor Sepúlveda, a vida deles nunca mais foi a mesma. Se ao menos a mãe tivesse ficado sossegada por mais uns instantes, se ao menos ele tivesse sido um pouco mais corajoso, se ao menos o Alexandre tivesse chegado um bocadinho mais tarde, se ao menos o brilho da lua, naquela noite, não tivesse invadido o quarto dos pais com aquela tonalidade iridescente, se ao menos o Rogério não tivesse acordado, se ao menos as leis da física permitissem alterar uma destas variáveis, se ao menos o cano da pistola tivesse brilhado, se ao menos os berros da senhora dona Deolinda não tivessem acontecido, se ao menos…
O velho senhor doutor Sepúlveda até de pijama tinha um ar solene, com as suas olheiras carregadas, as sobrancelhas grossas e grisalhas, a tez morena no rosto retilíneo e anguloso. Porque terá sorrido o raio do homem, enquanto a arma lhe aquecia a mão? Porque será que o pai sorriu daquela maneira enquanto lhe apontava a arma à cabeça?
Velho cabrão! Uma infância de merda moldou-lhe aquela verdadeira alma de velho cabrão.

OS CAMINHOS ESFORÇADOS DA ESCRITA



Carla não faz a mais pálida ideia de como tudo aconteceu. Não consegue falar, mal consegue pensar. As lágrimas amparam-na naquela escuridão onde se abrigou, um abrigo sem som, sem luz, sem tempo, e sem imagens. A morte chegou para o Armando, e ela quase que morria também. Vai explicando aos anjos, baixinho, que não teve nada a ver com o atentado. Cerra ainda mais os olhos no escuro, debaixo dos lençóis da cama, para esquecer o que viu, para tentar desaparecer, mas o Audi vermelho não para de explodir-lhe na cabeça. Uma estranha justiça, com regras de ofídia, ordenou esta sentença. Um grande alívio, recheado com medo e alegria, uma mistura ingrata de regozijo e desconfiança, tudo motivado por esta inesperada condenação.

Rui escreve apenas o que escuta.
Acrescenta, com lentidão, mais uma linha a um novo parágrafo.
A obra cresce, fragmentada, com grande dificuldade.
Cada página é uma nova porta que se vai entreabrindo. Necessita, por isso, de ter a janela da sala sempre aberta.
As vozes resolveram pregar-lhe um pequeno susto, e o escritor julga que elas vão, de novo, desaparecer. As letras pesam mais que meteoritos, e atormentam-lhe as noites.
- Atira as palavras pela janela! – diz-lhe o companheiro invisível. – Lança-as aos ventos e espera que se espalhem no asfalto. Deixa-as caídas no chão, junto à sarjeta. Faz-lhes essa maldade. O universo não é teu camarada e tem-se andado a divertir às tuas custas. Está será apenas uma pequena vingança. Os dias, depois, ficarão mais tranquilos.
- Merda para isto! Nada do que hoje escrevi faz algum sentido. Hibernei, disseram-me que estive hibernado, mas as vozes permanecem escondidas. Não sei o que fazer para conseguir alterar este estado de coisas.
As letras custam a sair.
A noite chegou, e a obra tarda.
Amanhã o escritor regressará aos caminhos esforçados da escrita.


segunda-feira, 22 de abril de 2013

VIAGEM À LUA



O pai de Jorge sempre lhe disse que era proibido passear a pé pela ponte. Ele gosta quando o pai lhe diz que não se pode, vai logo experimentar para ver se é verdade.
A mãe nunca lhe diz que não se pode. Certo dia ficou com as mãos todas sujas de terra por ter andado a brincar no campo com os amigos. Jorge perguntou-lhe se podia pintar as paredes do quarto com aqueles dedos acastanhados, e ela disse-lhe que sim, que devia experimentar tudo aquilo de que gostasse, e que devia fazer um pouco de todas as coisas. A mãe não se importou, mas o pai não gostou. Os dois nunca se entenderam lá muito bem, ao contrário dos avós.
A parede ficou fantástica!
Jorge é um rapaz que gosta de dormir, e gosta muito de acordar depois de dormir. Gosta de pular e de correr, gosta de fazer perguntas complicadas ao pai, gosta de andar descalço pela terra e pela areia, gosta de saltar da prancha mais alta da piscina, de fazer bolas de sabão e de ver desenhos animados. Também gosta de ver aqueles macacos pequenitos que andam à solta, no jardim zoológico, por entre os visitantes.
Jorge não gosta, nem um bocadinho, de secar o cabelo, não gosta de cães que ladrem muito alto e não ama multidões. Tão pouco aprecia ver os pássaros fechados em gaiolas ou que o pai lhe esteja sempre a dizer que não se pode andar a pé na ponte sobre o Tejo.
Gostava, um dia, de vir a ser paraquedista. Quer aprender a confecionar o melhor pão do mundo, ou então aprender a ser pastor, e deseja mesmo muito que os pais não passem os dias sempre a discutir. Mas o que ele gostaria mais do que tudo na vida era que a sua mãe não estivesse sempre tão doente.
Falta-lhe andar pouco para alcançar a estrada que dá acesso ao tabuleiro da ponte 25 de abril. O sol voltou a brilhar, amedrontado, por detrás das nuvens que já não fazem chover.
- Hoje vou andar a pé pela ponte, porque assim preferi. Vai ser um dia bonito! Vou, finalmente, passear na mais bela de todas as pontes.
Jorge guarda ainda um outro segredo no seu coração. Depois deste seu passeio, apenas lhe falta a bem mais complicada viagem à lua.

sábado, 20 de abril de 2013

ELE HÁ CADA MALUCO NESTE MUNDO...



São muitos os mirones que estão junto ao local da explosão. A polícia não se cansa de dar ordens para que as pessoas circulem e não fiquem por ali paradas. Não serve de nada.
Dona Josefa sentiu o forte estrondo. O pequeno café do mercadinho ainda estava bem composto de freguesia quando a coisa se deu.
- Ai credo, valha-me Nossa Senhora! Tu ouviste isto, Manel?
Quatro bicas ficaram por pagar, mais duas torradas, duas sandes de fiambre e um chá de limão. As pessoas assustaram-se de tal maneira que nem se preocuparam em pagar.
- Aquilo não deve ter sido brincadeira nenhuma. Vai lá abaixo ver o que é que aconteceu, Manel, vai lá. Coisa boa é que não deve ter sido.
Um cliente permanece sentado a uma das mesas, sem mostrar qualquer preocupação com o sucedido. Josefa pensa que o homem deve ser algum maluquinho, ou então é surdo. Uma coisa destas põe qualquer um em sobressalto.
Mais de metade dos clientes saíram a correr, e os outros estão do lado de fora do estabelecimento, junto à entrada, a olhar para a espessa nuvem de fumo que se formou a três quarteirões de distância. Uns dizem que talvez tenha sido uma botija de gás, ou alguma fuga numa instalação que pode ter causado o acidente.
- Porra! Olha só para aquilo, foi um estouro do caraças! – exclama o invisível. – Até consigo saborear o cheiro intenso desse fumo, as labaredas do carro destruído, os outros automóveis a irem pelos ares e o pessoal todo a admirar o espetáculo.
Olha lá, nunca te disseram que é falta de educação olhar para aquilo que as outras pessoas estão a fazer? Eu não te consigo ver, mas não é simpático da tua parte aproveitares a tua situação para espiares o meu trabalho. Além do mais, isso só me atrasa. Interrompeste a minha rotina e os meus raciocínios. Que grande merda! Agora já nem sei o que estava a escrever. Belo ajudante que tu me saíste. Não sabias ter ficado calado?
- Não consegui evitar, foi mais forte do que eu. – responde o amigo improvável.
Vou ter de deixar de beber tanto café. Fico nervoso com estas coisas comezinhas, e depois arrependo-me logo das palavras. Se o invisível não conseguiu deixar de manifestar a sua opinião, é porque a história não lhe foi indiferente.
- Olha, sabes que mais, sou mesmo um parvo? Desculpa, já me arrependi do que te disse. Às vezes falo depressa demais. Estava mesmo a precisar de um intervalo.
Não faço a mais pequena ideia dos locais por onde este amigo invisível se movimenta. Até agora ainda não me disse quem é, como se chama e o que fazia na vida antes de se ter atirado ao Tejo.
- Para que queres saber quem sou e o que fazia? Isso não tem importância. Se eu aqui estou, foi porque tu me chamaste. Eu tão pouco sei o que se passa comigo. Quando o meu corpo mergulhou nas águas do rio, eu já não estava vivo. Devo ter morrido de ataque cardíaco durante a queda. Não me lembro de ter voado, só tenho uma vaga lembrança do momento em que me coloquei de costas voltadas para o rio e me deixei cair. Depois chamaram-me, numa língua desconhecida. Eu vi médicos do I.N.E.M. a colocarem o meu corpo numa maca, junto ao cais onde estava montado um aparato de todo o tamanho. Enfiaram-me dentro da ambulância que arrancou com as sirenes desligadas. Estava por lá muita gente, e alguns jornalistas também. Tive mais olhos a olharem para mim depois de morto do que em todo o meu tempo de vida. Voltaram a chamar-me, num dialeto invulgar mas que me foi fácil de entender. Deram-me esta incumbência e não me disseram mais nada. Vim parar aqui porque, segundo me explicaram, precisavas muito da minha ajuda.
- Eu?! Eu é que precisava da tua ajuda? As tuas palavras não fazem sentido. Já te perguntei tantas coisas e tu foges sempre com as respostas. Isso em nada me tem ajudado. Vou confessar-te um pequeno segredo. De vez em quando tenho sonhos tão reais que me ficam colados por dias na memória. Sabes o que faço com eles? Aproveito-os para retirar ideias para as minhas histórias. Estás a ver, é ou não é uma prova de amizade da minha parte? É um pequeno presente que te ofereço pela minha indelicadeza de há pouco.
Silêncio.
Não me responde.
Estes são os momentos em que julgo ter endoidecido de vez.
- Procuro tanto as palavras para os meus enredos que acabo por inventar ajudantes fantasma.
- Inventas mas é o caraças, ó escritor! Deixa lá de dizer disparates e aproxima-te da janela. Olha que dia maravilhoso! Hoje estás proibido de escrever coisas acerca de bombas. Deixa para outra altura essa parte da narrativa em que o Armando é morto, e a Carla fica num profundo estado de nervos. Vem cá, aproveita a vista que tens da tua sala. Respira o ar desta magnífica manhã de sol. Dificilmente encontrarás uma melhor forma de inspiração.
Resolvo aceitar a sugestão. Assim que chego à janela, toca o telefone. Não atendo, não quero que nada me distraía. Devia ser o Lopes, de novo.
O Tejo está cheio de paquetes. Lisboa está vestida com as cores da primavera. Esta não é a mesma cidade do prédio das bailarinas. O que se terá passado comigo naqueles mais de trinta dias que por lá fiquei? Lembro-me de ter subido a escadaria do edifício que cheirava à mais doce das pastelarias. A música inconfundível da irlandesa embalava-me e dizia-me para continuar a subir. Encontrei o último piso. Abri uma porta de vidro que dava acesso a um pátio octogonal com quatro portas de apartamentos. Era dali que emanavam os aromas perfumados que inundavam a construção. Por detrás de uma delas nasciam os acordes maravilhosos do piano de Helen.
Desta minha janela vejo a ponte e imagino o prédio da pianista a brotar do chão, no outro lado da rua, junto ao arvoredo. Cresce, transparente, na vertical, muito depressa. Ergue-se como uma imensa torre de cristal. No último andar ilumina-se a janela que eu descrevi. Vejo a pianista nua, sentada ao piano, a compor as suas melodias encantadoras. Ao seu lado alguém se movimenta. Uma mão masculina acaricia-lhe as costas, os ombros e o rosto. Um homem levanta-se e chega perto dela. Abraça-a por detrás, acaricia-lhe os seios, beija-lhe os ombros e o pescoço delicado. A música não para.
Recordo-me de ter subido ao último andar.
Escutei as melodias que saíam da porta com a letra B.
Não me lembro de mais nada.

- Dona Josefa, dona Josefa! Nem vai acreditar! – grita o Manel quase sem fôlego. – Foi uma bomba que explodiu, e um carro voou pelos ares. Aquilo ali ao fundo da avenida até mete medo, dona Josefa. É só carros a arder e casas com vidros partidos. Disse, quem viu, que estava um senhor dentro do carro que voou. Esse já cá não mora! Aquilo está mesmo uma coisa medonha, só lhe digo.
Um homem continua sentado, impávido e sereno, com se nada se tivesse passado. Escuta as palavras do rapaz, e pede a conta à dona Josefa.
- Queria pagar a bica e um pastel de nata, se faz favor.
A mulher estava tão perturbada com a novidade que nem escutou o pedido. O estranho cliente deixou cinco euros em cima do balcão, junto à chávena do café. Ao sair do mercadinho, pediu licença e passou entre a patroa e o empregado, despedindo-se com palavras enigmáticas:
- Então até logo, tenham um bom-dia. O universo sabe bem aquilo que faz, e hoje premeditou esta espantosa estratégia de aniquilamento.

Helen parou de tocar.
Da janela continuo a ver a ponte e o prédio transparente da pianista.
Ela permite os afetos e as carícias do desconhecido. Levanta-se, vira-se, abraça-o e beija-o apaixonadamente.
O prédio reinicia o movimento.
Apaga-se a janela do quarto onde a cena acontece.
O prédio desaparece para dentro do chão que o viu crescer.
Volto a ver a ponte, o rio, e o extenso arvoredo que habita do outro lado da rua.

- Ouviu aquilo, dona Josefa? O que é que o homem disse? Ele há cada maluco! Chiça!
- Tens razão, Manel. Ele há cada doidinho neste mundo!

sexta-feira, 19 de abril de 2013

UMA DATA MEMORÁVEL



O cão está irrequieto e não para de correr de um lado para o outro. O estrondo provocado pela explosão fez o prédio estremecer. O Einstein ficou ainda mais nervoso, como se isso fosse possível.
Dona Fátima está desorientada. Uma coisa assim só tinha visto nos telejornais quando dão notícias daqueles países onde os atentados são o pão nosso de cada dia.
O telefona toca. É a doutora Madalena a perguntar se tudo está bem. Acabou de ver as imagens na televisão da sala de atendimento do hospital, e quis saber como estavam as coisas lá por casa. A Fátima responde, explica que não houve danos nem vidros partidos. Os noticiários dão conta dos prédios vizinhos com as vidraças estilhaçadas e há também muitas viaturas danificadas.
- Não se preocupe, minha senhora, está tudo bem. A doutora nem imagina o susto que apanhei. O prédio abanou todo e o cãozinho anda por aqui a correr às voltas. Tínhamos acabado de vir para cima quando se deu a explosão, e já estou farta de me benzer. Olhe que foi coisa de minutos, se eu me tivesse atrasado mais um bocado…- desabafa a empregada, sem conseguir terminar a frase. Os soluços e as lágrimas tomaram conta da mulher quando esta se apercebe, mais uma vez, que podia ter sido vitimada pela explosão.
- Fátima, então! Acalme-se, vá lá, afinal não aconteceu nada. Faça um chazinho e esqueça as limpezas por hoje. Arrume só aquilo que conseguir e deixe o resto para depois. Eu já lhe volto a ligar para dizer como vai ser mais logo com os miúdos. O mais certo é ser eu ou o doutor Rogério a ir buscá-los ao colégio. Fique tranquila Se o Einstein continuar assim irrequieto, leve-o outra vez à rua. Dê um passeio com ele, pode ser que ajude.
- Credo, minha senhora! É que nem pensar! Não saio à rua de jeito nenhum. Disseram nas notícias que estão mais bombas por rebentar, e que este pode ter sido só o primeiro de muitos rebentamentos. A doutora não se lembra do que se passou em Londres e em Madrid? Vou ficar por aqui até que os senhores regressem.

Jorge decidiu transformar este dia numa data memorável. O rosto do homem da ponte persegue-o como um fantasma, mas não o assusta. Ele quer resolver o mistério. O rapazito agarrou-se a este pretexto para conseguir transformar um sonho em realidade. Sempre desejou andar a pé naquela estrutura gigante que embeleza a paisagem da cidade e está radiante por ter preferido continuar a sua caminhada até lá acima.

Puta do demónio, foi o nome que o povo da aldeia escolheu para batizar Alzira. A mulher nasceu para atormentar a cabeça dos homens. Podia lá ser! Maldita! Nem os padres escapavam à sua má influência. A mãe também tinha ganho uma fama parecida. Lá na “terra” quase todos lhes conheciam as pernas e os atos. - Está feito, feito está! – cantava Etelvina. Depois corria como uma desalmada para marcar mais uma cruz na parede xistosa da loja do porco. Os sinais indicavam as vezes que os rapazes e os homens se aventuravam com ela pelos campos e vales suspirando de prazer. Eram muitos os pais que lhe lançavam os filhos na esperança de ela deles fazer uns homens. Mais valia ser assim do que levá-los à vila para os entregar às mulheres da vida que por lá passavam, de quando em vez. Era uma vadia, uma puta do demónio. Tal mãe, tal filha. A Isilda herdou-lhe muitos dotes. O raio da rapariga tinha mesmo a quem sair.
As duas desapareceram da aldeia, um dia, sem deixar rasto. Ficaram as saudades dos homens.
Augusto não entende porque diabo se foi recordar desta história durante a viagem de Paris até Lisboa, logo ele que tem tantas coisas com que se preocupar. E agora esta tremenda barafunda que parece ter tomado conta da cidade. Um atentado à bomba, polícias, ambulâncias e viaturas dos bombeiros tornam a circulação na segunda circular um inferno ainda maior do que o habitual.
- Estás a ver, Filipa! Está tudo parado! Tinha sido melhor teres seguido pela ponte Vasco da Gama como eu te disse.
A Etelvina era uma mulher lindíssima, e isso sempre colocou em perigo os relacionamentos na aldeia, para além das invejas das mulheres. Era completamente louca, e tão excessiva quanto formosa. Uma alma daquelas num lugar tão pequeno e remoto tinha tudo para acabar em desgraça. E como era fogosa, o raio da mulher.

quinta-feira, 18 de abril de 2013

A FORÇA QUE TUDO ATRAI



O livro voou pela janela, desgovernado, como um pássaro ferido.
Zé Paulo aproxima-se do parapeito da janela para melhor observar as folhas e a capa a esbracejarem. O objeto luta contra o efeito perverso da lei da gravidade. Não voa, antes cai como um bumerangue alvoroçado. As asas brancas de letras negras tentam resistir, mas esta simples lei da física está a derrotá-las com facilidade.
A força gravítica do mais forte vence as palavras que procuravam fornecer pistas para o complexo funcionamento do universo. Zé Paulo ri-se ao vê-las cair desengonçadas.
Da Vinci analisou vários princípios e projetou alguns aparelhos para levar de vencida esta força que tudo atrai. Observou e estudou, como ninguém, o voo dos pássaros, a arquitetura das asas de morcegos, os maneirismos com que se erguiam nos ares. Quantos foram os livros atirados por ele pela janela? Quantos bumerangues descontrolados terão por ele sido lançados ao ar? O génio cientista fazia tantas perguntas que até se esquecia de dormir. Foi rápido a entender que teria de ser ele próprio a encontrar as soluções.
Zé Paulo gostaria de assistir, por uma vez, à vitória deste improvisado pássaro de papel. O universo rege-se por princípios e leis que o homem ainda mal conhece, mas alguns conseguem preencher dezenas de volumes com teses e teorias opulentas.
- Este vai ser o livro que vencerá a gravidade. Perderá peso e massa, ganhará a consciência de uma borboleta monarca, e no último instante voará majestoso para bem longe daqui. – declama à janela com um brilhozinho nos olhos.
O livro esbraceja ainda mais nos últimos metros da viagem e atinge, com violência, o tejadilho de um Alfa Romeu branco que estava estacionado em cima do passeio. O alarme dispara com intenção de acordar toda a vizinhança.
- Que merda! Ainda não foi desta! A poderosa força gravítica do automóvel impôs-se a mais uma nobre tentativa. Só espero que o dono da viatura aprecie mais o livro do que eu. – desabafa enquanto vai observando as consequências do seu ato.
Na rua juntam-se alguns dos moradores do prédio, a presumível dona do carro e mais dois ou três anónimos que por ali passavam. Pela maneira como se movem, não suspeitam que o alarme tenha sido disparado por causa de um insólito meteorito quadrangular formado por páginas com teoremas excêntricos. O livro embateu no teto da viatura e ressaltou para o meio da estrada onde foi atropelado por três vezes. Está muito mal tratado. O universo premeditou esta humilhante estratégia de aniquilamento.
Zé Paulo liga a televisão com a janela aberta. Pode ser que o manual tenha aprendido a lição e regresse a casa menos altivo. A esta hora os canais não passam nada que tenha interesse. Filmes repetidos, inenarráveis novelas que se estendem pela madrugada dentro, os mesmos comentadores de sempre a tecerem pela milésima vez iguais considerações, e a notícia do dia. Imagens captadas por telemóvel mostram um homem a atirar-se do tabuleiro da ponte 25 de abril ao Tejo. Zé Paulo fica incomodado pela forma como o homem se lançou, mais do que pelo dramatismo do ato. De costas voltadas para o rio e para o mundo, assim se deixou ir, até que as águas o engoliram.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

ESCUTA AS VOZES COM ATENÇÃO



- Perdi-me na tua cidade. Passou-se um mês e a obra ficou parada. Lembro-me apenas de alguns fragmentos do que escrevi. Tinhas-me dito um mês, mas foram mais de trinta os dias que aqui passámos. Tenho de recuperar o tempo perdido. O que mais me incomoda é ter ficado com pouquíssimas recordações. O que viemos nós aqui fazer? As tuas bailarinas do prazer desapareceram. Guardo algumas memórias dos seus cheiros, mas são escassas para tantos dias.
- O universo alinhou-se durante este período. Era necessário que assim acontecesse. Tinhas de experimentar esta sensação de vazio. O tempo passou por ti, os ritmos de todas as coisas mantiveram-se imperturbáveis. Estiveste hibernado e só agora recuperaste a consciência. Andaram por aqui alguns mendigos. Os seguranças desta cidade convidaram-nos a sair para que se restabelecesse o fluxo temporal tal como tu o concebes. Os idosos estão de regresso às mesas do café e às conversas banais. Alguns estão sozinhos, sentados de pernas cruzadas, a observar as vidas dos outros. Outros resguardam-se nas leituras. Um pai adormece a sua filha. Escutas as mesmas músicas que estás cansado de ouvir, sons que te são familiares mas sem os quais não conseguirás criar. Um velho senta-se para tomar o café da manhã, duas mulheres e um homem conversam. Estás a acordar? És bem capaz de permanecer neste estado por mais um par de dias, até que a normalidade se restabeleça. A tua falta de inspiração devia-se ao tremendo cansaço que foste acumulando ao longo dos últimos anos. Deixaste que as tuas histórias tomassem conta de ti ao ponto de já não conseguires raciocinar. Escrevias de forma automática, obedecias às instruções do teu agente que satisfazia os interesses da editora e o teu gosto deixou de imperar. Há muito tempo que escrevias acerca de assuntos que já não eram teus. Foi por isso que me chamaste. Querias a minha ajuda, mesmo que afirmes o contrário.
Rui ainda mal acordou. As palavras do invisível conseguiram irritá-lo. Segundo esta estranha teoria, todo o tempo que esteve sem trabalhar serviu para que o universo se alinhasse e para que a sua inspiração se pudesse regenerar. Balelas, um completo disparate! Um mês, ou melhor, trinta e quatro dias passados a dormir, a hibernar na misteriosa cidade do prazer. Ora aí está uma façanha que não deseja ver acrescentada ao seu currículo. A obra esteve parada durante este longo período. O prazo para a entrega do texto encurtou-se e tornou a tarefa quase impossível.
- Queres-me fazer acreditar que daqui para a frente vou ganhar uma súbita inspiração que me fará escrever como nunca e a uma velocidade estonteante? – pergunta o escritor.
- Sim! – responde o amigo improvável de forma lacónica.
- Sim? Mas sim, como? Regresso ao meu apartamento, sento-me à mesa da sala, coloco as folhas vazias à minha frente e, sem mais nem menos, a obra surgirá. É assim que tudo irá acontecer?
- Sim! Tal e qual. – renova o invisível. – Tu talvez não te recordes, mas as baladas da compositora irlandesa protegeram a tua hibernação. Sofrerás o efeito dessas melodias quando escreveres.
Rui prefere não colocar mais questões. O tempo urge. Se a inspiração estiver de regresso, como lhe foi comunicado, o melhor mesmo é aproveitar.
Helen é uma personagem da sua história. Helen vive nesta cópia de Lisboa, num prédio onde bailarinas nuas dançam nas montras. A mulher que vive no prédio em frente ao do escritor não se chama Helen. A mulher que mora no prédio em frente ao seu, e que aparece nua à janela, não tem nome. Rui usou-a para criar a pianista da sua história e Helen foi o nome com que a batizou. Ele sabe que tem de regressar. A mão recomeçará a sua arte, as palavras irão surgir pois é urgente que a obra esteja concluída antes que o Lopes o mate.
- Não tenhas pressa. Tudo aquilo que tens para contar será contado. Mais importante do que os prazos, do que os temas, as modas ou as determinações da editora, mais importante do que tudo isso está o teu querer. Não cedas! Escreve acerca do que escutas. Se assim o fizeres, acabarás as tuas obras dentro dos prazos.
O escritor recebeu o conselho com bastante ceticismo.
- Estou para ver se as coisas vão mesmo acontecer como me estás a dizer. Benditos trinta e quatro dias, se assim for.
A cidade esfuma-se enquanto o escritor sobe os últimos degraus que dão acesso ao piso onde mora. Esta Lisboa que o viu descansar, não existe mais.
O invisível sorri.
Rui sabe bem o quanto precisa de uma boa história. Vai ter de se concentrar para escutar melhor as vozes que a contam.
A cadeira encontra-se no mesmo sítio de sempre, junto à janela que dá para a cidade. Rui mentiu ao afirmar que se tinha inspirado na mulher que mora no prédio em frente ao seu e que, por vezes, surgia nua à janela. Mentiu porque não existe nenhum prédio em frente ao seu. Da sua janela apenas vê as ruas e as avenidas de Lisboa.

- O sol está radioso. Tínhamos saudades de um dia assim. Recomeça a escrever, Rui. De agora em diante vais ter a nossa companhia todos os dias. É quase meio-dia. Estiveste um mês a descansar, mas ainda bem que assim aconteceu. Daqui para a frente a tua obra irá crescer. Só terás de anotar aquilo que nós, as “vozes“, temos para contar.

Rui está sentado e olha para trás, por instinto. A jovem irlandesa estava ali a fitá-lo. Foi só por um breve instante, mas viu-a com clareza. A pianista vestia umas calças de cabedal negras, uma blusa branca e um casaco azul-escuro de ganga. Trazia uma bolsa e umas botas pretas, e os longos cabelos alaranjados dançavam ao vento. De headphones colocados, como era seu hábito, observou-o e desapareceu como num sonho. Ressurgiu, pouco depois, com a sobrinha ao colo, a sorrir.
Na estante brilha um pequeno CD com músicas de Alexandre Desplat. Rui coloca-o na aparelhagem antes de recomeçar a escrever, e a melodia toma conta do salão.