quarta-feira, 29 de maio de 2013

OS UNIVERSOS TAMBÉM DESCANSAM


Um universo jovem transporta um bebé ao colo. Pede um lanche ao balcão do café enquanto bebe água de um copo. Coloca a quantia exata nas mãos da empregada, aperta o farnel no meio de um pequeno guardanapo de papel retangular e desaparece com o filho bem seguro no braço esquerdo. Trazia um rabo-de-cavalo construído à pressa e uma mala atirada para trás das costas.
Outro universo jovem está sentado a uma mesa com a filha amparada na coxa esquerda. A bebé olha de baixo para cima e vislumbra o queixo do pai, que lhe faculta uma chupeta amarela e um minúsculo urso de peluche acastanhado com barriga e olhos azuis. O carrinho da bebé está colocado ao lado da mesa, onde mora uma chávena de café vazia que o universo jovem já bebeu. Ele fala ao telemóvel e a menina mexe nos pés aquecidos pelo babygrow, aperta o urso, leva-o à boca, mexe no tampo branco e liso da mesa, chucha no polegar da mão direita e observa, com atenção, tudo o que acontece ao seu redor. O universo jovem coloca a bebé no carrinho e desaparece empurrando a viatura. Trazia um casaco de fato de treino atado em volta da cintura.

Zé Paulo é um universo complexo, quase tão complexo como todas as suas teorias. A imagem das suas mãos cravadas no pescoço do pai nunca lhe saiu da cabeça, por isso detesta gravatas e homens engravatados, detesta tudo o que possa condicionar os movimentos do pescoço. Golas altas, laços, lacinhos, laçarotes, lenços, cachecóis, são inimigos que prefere não ter de enfrentar. Usar esse tipo de vestuário é invocar a memória do passado que assim regressa para o assombrar.
Zé Paulo teve, um dia, a perceção de que talvez ele funcionasse como um universo. Se tal consideração estivesse correta, todos os seres vivos se comportariam como universos e o próprio universo onde todos existem e coabitam, seria uma entidade viva, um fractal infinito, eterno, dinâmico e dificílimo de descrever.
Zé Paulo sabe que a teoria é absurda, quase ridícula. Surgiu-lhe durante uma daquelas noites em que a cabeça lhe pregou uma grande partida. Os dias e as madrugadas misturaram-se como corantes distintos, as luzes feriram-lhe a vista, as palavras deixaram de fazer sentido, o tempo distorceu-se e o chão ora se movia, ora permanecia quieto como era suposto acontecer. Nada era real, e tudo era mais do que real. Metade do universo estava desligado, e a outra metade latejava intensamente como se fosse explodir, mas nada parecia ser mais autêntico do que essa metade do universo que se mantinha desligada.
- Não quero recordar os meus pais, não posso ficar doente outra vez. Vou fazer tudo o que prometi ao Rogério, antes que me arrependa. Os universos são lugares violentos, de equilíbrios instáveis e difíceis de manter. Gosto demasiado da Sofia e do Tiago para estar contente com o que lhes está a acontecer. Porque será que não consigo deixar de estar contente com o que lhes está a acontecer?
Na televisão passam as imagens da explosão que ocorreu numa rua movimentada de Lisboa. Em rodapé surge a notícia de um homem que decidiu acabar de vez com o seu universo, atirando-se ao Tejo do alto da ponte 25 de Abril. Zé Paulo volta a considerar a teoria dos universos paralelos cada vez menos inverosímil. As suas apreciações estão a bater certo - o universo está a ficar cada vez mais vazio à medida que vai envelhecendo e que ele o compreende.
Pena é que o gigantesco buraco negro que tudo suga não se canse de trabalhar, mesmo estando a outra metade do universo a descansar.

sexta-feira, 24 de maio de 2013

A OBRA NÃO CRESCE



Ninguém tem nada para dizer. A viagem segue silenciosa, e Filipa mal consegue esconder o nervosismo. É sempre assim quando o pai está por perto. Os dois nunca tiveram uma boa relação, e ela era ainda muito jovem quando entre eles se formou um fosso imenso, que cresceu de forma irreversível.
Uma fila interminável de veículos arrasta-se com lentidão pelas três faixas de rodagem, em ambos os sentidos. O dia está a ser difícil. Augusto tinha razão quando disse que a ponte Vasco da Gama teria sido uma melhor opção para o trajeto.
Mais uma viatura dos bombeiros tenta furar o tráfego, escoltada por motorizadas da polícia.
Filipa agarra-se ao volante com uma força tremenda, como se o desejasse arrancar. O António nunca teve o hábito de lhe contar coisas acerca da sua vida lá por França.
Joel entretém-se a observar os aviões que passam por cima deles e se fazem à pista da Portela. Nestas situações seria bom ter um carro voador. Os filmes de ficção científica, que tanto adora, antecipam futuros com veículos voadores a sobrevoarem prédios gigantescos, mas já chegámos ao século XXI e nada disto é ainda realidade. Continuamos a desperdiçar imenso tempo, arrastando-nos com lentidão num tremendo consumo de energia que nos desgasta os nervos. As cabeças deixam de raciocinar, os reflexos tornam-se lentos, e as rotinas e os cansaços tomam conta de todos os dias.

Pensei desistir!
A pressão dos prazos tem sido insuportável, e as minhas últimas obras ressentiram-se da situação.
Ela observava, com curiosidade, tudo o que se passava em seu redor. Olhava para tudo com atenção, e olhou para mim, tentando entender porque estaria alguém a escrever naquele lugar. Mirou-me, como mirara outros. Ao início foi assim, até que recomecei a escrever e os olhos da bonita ruiva voltaram-se para mim. Estava sentada na mesa em frente à minha. O café, naquele dia, àquela hora, estava pouco movimentado. Uma luz muito clara e difusa entrava pela grande janela e iluminava o espaço. Os nossos olhares cruzaram-se, mais uma vez, como se ela me questionasse: - O que escreves? Porque escreves? Porque o fazes aqui, neste lugar? Como consegues inspirar-te nesta constante agitação, com tantas conversas e ruídos de fundo. Qual é o teu nome?
Os volumes das conversas ampliavam-se cada vez mais. Um homem discursava ao telemóvel, quase a gritar, uma senhora conversava, aos berros, com as amigas, para melhor se fazer escutar. As duas pequenas televisões de ecrã plano passavam, em silêncio, as imagens com as notícias de dois diferentes canais de informação. Quatro homens entraram, sentaram-se e pediram cervejas, num tom de voz desagradável e autoritário, à empregada que limpava as mesas vazias. O homem do telemóvel continuava a gritar, talvez com receio que a sua voz não chegasse ao outro lado da chamada.
O senhor Abílio, empregado de longa duração deste café-restaurante da baixa, já preparava as mesas para o almoço. O estabelecimento esteve quase para fechar pois a concorrência era cada vez mais feroz. Os donos conseguiram revitalizar o negócio com algumas modernices e uma adequada estratégia de preços para estes tempos difíceis.
Os nossos olhares cruzaram-se uma vez mais.
Admirei a beleza da jovem, que esboçou um pequeno sorriso.
- Quem és tu? – pensei sem verbalizar. – Porque olhas para mim? O que fazes tu no “meu” café?
Pedi uma bica ao senhor Abílio, e quando os meus olhos tentaram redescobrir os olhos da rapariga, ela tinha desaparecido. Levantou-se da mesa durante esse instante, e foi-se embora sem que eu me tivesse apercebido. Descobri-a na rua, a passar em frente à grande vidraça que está virada para a praça da avenida. Seguia de mochila às costas e com uns grandes auriculares nas orelhas. Antes que ela desaparecesse para sempre, fui atrás dela com o firme propósito de a conhecer. Que mal poderia acontecer? Quanto muito, chamar-me-ia de parvo, ou um qualquer outro nome. Nada disso sucedeu. A rapariga era uma pianista irlandesa que se encontrava a estudar em Lisboa ao abrigo do programa Erasmus. Era muito simpática e linda de morrer.

A obra não cresce.
A pressão do tempo é enorme.
As personagens estão enclausuradas numa imensa teia invisível que Rui não consegue derrotar.
O enredo não se desenvolve.

Nessa noite, transformada em madrugada, a bela irlandesa mostrou-me como as suas mãos brancas de dedos ágeis viajavam pelas teclas do piano mágico, e redefiniu a minha conceção de genialidade.
Avançou para mim depois de terminar de tocar.
O chão do apartamento recebeu os nossos corpos desnudados, foi a nossa cama e os nossos lençóis.
Ainda hoje não faço a mais pequena ideia de como ali chegámos com tanta rapidez.


quinta-feira, 16 de maio de 2013

A RAZÃO DA FOLHA EM BRANCO


Um vazio.
Um espaço em branco.
A folha de papel mantém-se estática, cruel.
A obra mal avança. Confesso que tem sido um martírio tentar encontrar inspiração nestes últimos dias. A conversa com o invisível também não tem ajudado. Bem pelo contrário! Fiquei perturbado com as coisas que ele sabe a meu respeito.
Observo a cor do papel.
Escuto o seu silêncio.
Compreendo o vazio que o preenche e destrói.
Tenho de ligar ao Lopes, deve estar chateadíssimo comigo, coitado! Talvez me possa ajudar.
Converso comigo mesmo em busca de frases, tento dar-lhes um rumo pelo meio deste deserto.
Tenho sonhado mais do que o habitual, uns sonhos incómodos e perturbadores. Sonhos que se entranham na memória. Não gosto disso, e nem sequer foram capazes de me proporcionar pistas ou deixas para o desenvolvimento do romance, como antes acontecia. Serão, talvez, os restos das memórias dos dias em que estive hibernado.
- Está, Lopes, sou eu. Bom dia. Como é que vão as coisas contigo?
- Rui, até que enfim! Que bom é ouvir a tua voz, meu caro amigo! Que bom é ouvir de novo a tua voz. Então, já temos novidades acerca do trabalho?
Rui sorri, e observa a vista da janela.
- Ó Lopes, antes de mais nada, quero pedir-te desculpa por não ter atendido as tuas chamadas. Estou com um terrível peso na consciência, e resolvi ligar-te. Tenho sentido dificuldades em manter o ritmo de trabalho adequado às exigências desta obra. Não seria correto da minha parte continuar a esconder-te estas contrariedades. De qualquer maneira, a pouco e pouco, a obra lá vai crescendo. Tenho é sérias dúvidas se estará pronta no prazo previsto.
- Quando é que eu posso passar aí por casa para conversarmos melhor acerca deste assunto, Rui? Será que hoje seria um abuso da minha parte? Não? Pode ser. Ótimo! Então estarei aí por volta das três, três e meia. Fica combinado. Um abraço, até logo, foi um prazer falar contigo!
O Lopes vai querer dar uma vista de olhos ao texto que já escrevi. É sempre assim que as coisas acontecem, para que se evitarem as surpresas desagradáveis.
As folhas continuam brancas, caladas, surdas, à espera da tinta da minha pena.
Olham-me.
Chamam-me.
Eu tento escutar as vozes que me contam as histórias, mas só relembro aquilo que não queria.
Porque terá ela deixado de me amar? Será que alguma vez me amou, será que tudo o que vivemos teve algum significado para si?
- Lá estás tu, de novo, a pensar na pianista. Não vivas do passado, deve ser por isso que tens pesadelos e sonhos agitados. Quer gostes, quer não gostes, vais ter de encarar o futuro de outra maneira. – exclama o amigo invisível.
- Mas que grande lata a tua! Um suicida a opinar acerca do meu futuro. Estarei a ouvir bem? – responde Rui com ironia.
- Não brinques com coisas sérias! Sabes lá o que se está a passar. Desconheces, por completo, tudo aquilo que aconteceu. Tu não sabes nada acerca de coisa alguma! És um peão à deriva no meio de uma imensa tempestade. Obrigaram-me a vir ter contigo, mas não me deram qualquer instrução. Neste momento, até duvido que me consigas escutar. Estás transformado num perfeito idiota! Como podes compreender o que se passa em teu redor, se passas o tempo enclausurado nestas quatro paredes à procura de palavras para a obra? Isso é estratégia para um perfeito e refinado idiota! Um escritor tem de respirar nos espaços que escreve e que cria, tem de sair, tem de viajar, tem de conhecer, tem de sofrer, tem de sentir, tem de existir. Um escritor não se deixa abater pela dor, pelas doenças, por palavras amargas, por críticas ácidas, pelas modas, mas acima de tudo, um escritor não se pode deixar derrotar pela solidão. Observa com atenção essa folha branca que ainda agora tinhas à tua frente. O que vês? O que te diz a folha carregada com as palavras que lhe ofereceste? Lê! Interpreta esses teus sonhos, esses diálogos, as questões que colocaste, as insinuações, os dilemas escondidos, os diálogos de cada personagem. Deixa de ser um idiota! Porque razão não posso julgar tudo o que fazes? Se calhar, é mesmo só para isso que eu aqui estou!


UM MUNDO DE PERNAS PARA O AR




Rogério gostaria que alguém lhe explicasse o que se está a passar. Ele deu instruções muito claras para que os doentes fossem encaminhados para as urgências de outros hospitais, mas lá fora a fila de ambulâncias não para de aumentar.
Hoje é um daqueles dias em que só lhe apetece desaparecer.
Madalena entra de rompante no gabinete do marido, que fica visivelmente perturbado com a situação.
- Credo, mulher! Estás parva ou quê? Mas será que hoje toda a gente resolveu endoidecer?
- Só se fores tu! Ninguém tem culpa que não consigas recusar os convites que te fazem. Como se já não bastasse o trabalho que tens acumulado, ainda aceitaste fazer parte da organização do colóquio e participar nessas conferências que tanto te aborrecem. Será possível que ainda não saibas o que aconteceu? Andas mesmo muitíssimo ocupado, Rogério!
O mundo hoje resolveu virar-se de pernas para o ar. O que será que Madalena está a insinuar? O médico não entende as palavras da mulher, e pede-lhe uma explicação.
- Ó Rogério, com franqueza! Ninguém fala noutra coisa! Um carro explodiu em frente ao nosso prédio. Acabei agora mesmo de telefonar à Fátima, que me disse que fecharam a rua e que há muitos edifícios com as janelas todas estilhaçadas. As autoridades suspeitam de um atentado terrorista. Os noticiários estão a passar as imagens em direto, mas tu não sabes de nada! Estás sempre tão atarefado! E olha que mais logo vai ter de ser um de nós a ir buscar os miúdos à escola. A Fátima está com os nervos em franja. Tinha acabado de chegar da rua com o Einstein quando o carro foi pelos ares. Foi por pouco que escaparam à explosão.
Rogério continua com a cabeça de tal maneira sobrecarregada com os assuntos do hospital, que a voz de Madalena soa-lhe distante e distorcida. Este é mesmo um daqueles dias em que gostaria de desaparecer. Necessitaria de um dia com quarenta e oito horas para conseguir colocar em ordem todas as tarefas e os mil e um documentos que se acumulam em cima da secretária do gabinete.
Madalena envelheceu, ele próprio sente-se mais velho.
Esta história parece saída de um filme com um péssimo enredo.
O computador deixa de funcionar. Comunica-lhe uma série de erros através de umas letras brancas num fundo azul que embeleza o ecrã. Que bela altura para fazer um intervalo.
- Mas que raio de história é essa?! Uma explosão? Por causa de um atentado? E foi mesmo em frente ao prédio? Aconteceu alguma coisa ao nosso apartamento?
Madalena sente-se muito mais velha, mas o Rogério parece ter envelhecido uns cinco ou seis anos neste ano que passou. Responsabilidade, inquietações, preocupações, excesso de trabalho, falta de descanso, falta de férias, e tudo isso, para quê? O rosto do marido atraiçoa-o, já não consegue esconder as pavorosas marcas da malfadada rotina, que não mata mas mói! Terá sido por isso que ela recordou os seus dias de infância na Beira, quando o pai a abraçava e com ela dançava pelo salão do hotel como se o mundo ficasse para todo o sempre eternizado na magia daquele instante? Foi ontem que aconteceu. Ontem, só ontem. Assim volta a jurar!
- Porque não vamos passar uma semana de férias com os miúdos a Florença, Rogério? O que me dizes a descansar uns dias, e abalarmos daqui para fora? Estamos cansados, tu estás exausto, e o pior de tudo é que nem dás conta disso. Então, o que achas da minha ideia?
Definitivamente, este dia não amanheceu igual aos outros. Uma qualquer estranha confluência dos astros, como diria o irmão, está a transformá-lo nesta irreal sucessão de acontecimentos.
- Tens cada uma, mulher! A sério? Só mesmo tu para falares de férias numa altura destas. Florença, e porque não o Cairo, Banguecoque, Miami ou Sidney?
Onde está o sentido de humor e de aventura do marido? Madalena sente a falta desses seus predicados, e do sorriso rasgado com que costumava iluminar todas as conversas. Para onde terão eles desaparecido?

Jorge sente um pequeno aperto no peito. Alguns carros buzinam ao passarem perto de si. O menino continua intrigado com os sapatos que ali encontrou, e com as meias bem dobradas e assim guardadas lá dentro. Porque terá o homem largado o bonito chapéu da seleção nacional? Gostaria de conhecê-lo para lhe perguntar porque abandonou estas peças de vestuário. Talvez o senhor não esteja lá muito bom da cabeça. Uma pessoa, quando está triste, é capaz de fazer coisas muito estranhas. Pelo menos é isso que acontece quase sempre com a sua mãe. E para onde terá fugido este homem misterioso?

- Sabes, Rogério, li num artigo que a maior parte das pessoas não tem coragem para romper com as rotinas. O curioso da situação, é que conseguem, em média, ter três ou quatro excelentes ideias de como o poderiam fazer. Acho que seria muito bom para nós se conseguíssemos tomar uma decisão que fosse acerca do que nos está a acontecer, ao invés de assumirmos esta postura de trampa que nos tem vindo a sufocar nestes últimos meses! Mas preferiste ter uma atitude de merda e gozaste com a minha proposta! Estás a ficar cada vez mais idiota à medida que o tempo passa, e quanto aos miúdos, não te incomodes que eu passarei pela escola para os ir buscar!

Jorge não resiste, e coloca o chapéu na cabeça.
Que vista tão bonita se tem daqui de cima.
Este está a ser um dia verdadeiramente especial.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

A MAIOR DE TODAS AS REDES



Zé Paulo sabe que a sua vida é um bailado igual às chamas de um fogo aceso debaixo de um céu estrelado, iluminado pela lua. As estrelas saltaram da concha, e dançam no espaço, num mundo sem fim, escuro de noite, iluminado de dia. Tempos houve em que ele se entretinha a contar essas estrelas, durante a noite, e catalogava-as, durante o dia. Queria descobrir as fronteiras de tudo, e foi então que lhe surgiram as nebulosas, numa dessas noites frias e escuras. Há muita coisa no céu que é de difícil medição. O espaço imenso, infinito, com ou sem esquinas, está carregado de supernovas perturbadoras mas de extrema importância.
Zé Paulo acredita na existência de outros universos. Estudou milhares de estrelas com características muito subtis, e centenas de supernovas e de pulsares. Esses estudos confirmaram aquilo que ele já sabia - tudo o que existe está a afastar-se e a ficar cada vez mais distante. A descoberta da nebulosa de Andrómeda permitiu calcular melhor os limites do universo, que se alargaram desde que a distância até essa galáxia foi calculada. Tudo está tão incrivelmente perto e afastado, e não mais se pensou da mesma maneira. Onde estão, agora, os limites do universo, as suas fronteiras? Qual é a verdadeira dimensão e forma do espaço? Como se terá tornado luminoso este universo com quase catorze mil milhões de anos de idade? Qual é a rua onde mora, e em que prédio habita? Onde fica, de verdade, o lugar onde tudo isto acontece, e quais são regras que permitem transformar ficção em realidade?
Não existe apenas um espaço e um universo. Tudo é curvo e retorcido, e as dimensões, que não são apenas três, são prensadas e forjadas em fornos invisíveis chamados buracos negros. O Cosmos é um espaço curvo e distorcido, com formas e estruturas maleáveis onde as ações acontecem de forma não convencional.
O universo é inconstante, chega mesmo a parecer absurdo. Todas as galáxias se afastam e o imenso lençol onde se aninham, também cresce a uma velocidade inimaginável. Um poderosíssimo buraco negro atrai para as profundezas do universo o próprio universo onde o buraco negro habita, tornando ainda mais complexa a compreensão desse fenómeno. A luz do universo em expansão perde intensidade, tal como as ondas que surgiram nesse longínquo instante inicial.
O brilho das estrelas que conseguimos observar é um brilho sortudo e mentiroso. Conseguiu chegar até ao nosso firmamento, ao contrário da luz de tantas outras. As estrelas e galáxias que avistamos, são as mais jovens e as que estão mais próximas de nós. Algumas delas já pereceram, e como a morte é escura, à noite, também o céu se tornou escuro.
Filamentos de triliões de estrelas unem as galáxias umas às outras. É uma rede, a maior de todas as redes, mas também ela já mudou, e tudo se tornará mais sombrio. Esta nossa moradia vai-se alongando, pois é sugada pelo maior de todos os buracos negros, ao qual alguns chamam de energia negra.
Zé Paulo sabe, e acredita, que o espaço entre todas as coisas ficará tão grande e tão vasto, que nenhuma luz o conseguirá atravessar. É nesse horizonte longínquo, que tudo aquilo que imaginamos e compreendemos acabará pura e simplesmente por desaparecer.
Mas tudo isto não passa de um conjunto de teorias, hipotéticas explicações tão doces ou tão amargas como simples enganos grosseiros!

quarta-feira, 8 de maio de 2013

UM DIA IGUAL AOS OUTROS



Como de costume, Sofia preparava-se para levar o Tiago à escola antes do seu mundo ruir. Um vazio profundo e um nevoeiro denso tomaram conta de si. O menino tem a mochila preparada junto à porta de casa, uma escultura de lona vermelha e azul, com desenhos do homem-aranha a esvoaçar por entre arranha-céus.
Sofia chora, em silêncio. Tiago continua de pé, a olhar a mãe, sem saber o que dizer. Os pais vão mesmo separar-se. A discussão desta manhã foi a prova de que entre eles tudo acabou. Ao que parece, o pai gosta de outra mulher.
A mãe mexe e remexe no telemóvel como se nele existissem coisas muito importantes. No meio da névoa, Sofia olha para o filho e pede-lhe que vá acabar de arrumar o quarto. Hesita um milhão de vezes antes de ligar ao Afonso. Menos nervosa, resolve fazer a chamada. O estúpido tinha logo que se ter enfiado na cama com outra. Parvalhão! Cabrão de merda!
Ao contrário do que imaginou, o Afonso atende.
- Sim, diz lá o que é que queres. Olha que não posso demorar muito, acabei de ter um acidente. Não, não foi grave, eu vinha distraído e bati na traseira do carro que seguia à minha frente. Foi uma tolice.
- Então, ligo-te mais tarde. Precisamos mesmo de conversar, eu e tu.
Tiago regressa do quarto. Não fez a cama, não conseguiu, ou melhor, não estava com vontade nenhuma de a fazer. Escutou as últimas palavras de Sofia, e pergunta-lhe:
- Quem era, mãe? Estavas a falar com o pai?
Ela diz-lhe que sim através de um rio de lágrimas que não consegue evitar.
Toca a campainha da porta.
Quem poderá ser a esta hora da manhã?
A campainha volta a tocar.
Sofia espreita e vê que é o vizinho do lado. O que quererá ele?
- Olá, bom-dia. Peço desculpa, Sofia, não a vou incomodar por muito tempo.
Tiago aproxima-se da porta e coloca-se ao lado da mãe.
- Olá, Tiago, estás bom? – cumprimenta o vizinho.
- Olá, senhor José! – responde o menino.
Um silêncio estranho e incómodo instala-se por segundos, até que o homem começa a falar:
- Sabe, Sofia, ontem, pela noitinha, aconteceu-me uma coisa completamente absurda. Eu estava junto à janela da sala a ler um livro que o meu irmão me ofereceu pelo Natal quando, sem querer, ele escorregou das minhas mãos. Caiu da janela abaixo! O pior é que aterrou mesmo em cima do vosso carro e fez disparar o alarme. Quando olhei, vi que muitos vizinhos já estavam na rua a tentar compreender o que se tinha passado. Foi por isso que só hoje decidi vir apresentar as minhas sinceras desculpas pelo ocorrido. Se o carro estiver danificado, eu pago todos os danos causados pelo incidente. Uma coisa destas nunca me tinha acontecido, até me sinto envergonhado…
Sofia não estava à espera disto. O vizinho é, e sempre foi, muitíssimo educado, e algo misterioso também. O Tiago acha-lhe imensa graça. É uma pena que um homem assim tão bonito tenha quase sempre uma expressão entristecida.
- Não se preocupe, Zé Paulo, a sério. Não merece a pena. Essa é mesma a última coisa com que se deve preocupar.
O Tiago achou piada à história do livro. Será que a sua playstation também aterrou em cima de algum automóvel? Isso teria sido uma coisa “bué da fixe”!
- Não? Olhe que eu faço questão em pagar os danos que vos tenha causado. Nem ficaria de bem com a minha consciência se isso não vier a acontecer. – insiste Zé Paulo.
Por qualquer razão misteriosa, Sofia imagina o galante José a segurá-la pela mão, a pegar-lhe ao colo, a beijá-la com ardor, e a levá-la até ao seu quarto para fazerem amor o resto do dia.
Por qualquer razão misteriosa, este pensamento foi de curtíssima duração. O Tiago trouxe-a de volta à realidade.
- Então, mãe, como vai ser? Hoje não me levas à escola?
Zé Paulo sorri. Pela primeira vez Sofia descobre a beleza singular do sorriso do vizinho.
- Tens razão, Tiago. A culpa é toda minha! Estou a atrasar-vos. Vou-me já embora. Sofia, não se esqueça. Se houver algum dano no carro, diga-me imediatamente. Olhe que ficarei zangado se não o fizer.
Por qualquer razão misteriosa, Sofia também sorri. De verdade. Um sorriso. Quem diria? Depois de tudo aquilo por que já passou neste dia de merda.
- Anda, Tiago, vamos lá. Eu levo-te à escola. Vamos fazer de conta que este é um dia tão normal como qualquer outro.

terça-feira, 7 de maio de 2013

O VERDADEIRO AMOR



- Precisaste de muitos estudos para seres escritor? Quando começaste a aprender a tua arte? E se mais não fosses que um simples aprendiz? Como tu mesmo afirmaste, eu sou a razão por que ainda tens coragem para escrever. Praticas a tua escrita há mais de dez anos, como se as histórias fossem realmente tuas. Já desde essa altura as vozes te seguiam, e ainda bem que as escutavas. Andavas tão sozinho, escondias-te de tudo e de todos, um pouco como ainda fazes agora. Concentravas-te nos detalhes mais técnicos da escrita, e quase esqueceste a essência e beleza das palavras. Construíste a tua primeira obra em pouco menos de um ano, sempre encerrado nesse teu mundo, até que a encontraste, e os teus problemas deixaram de te incomodar. Escreveste como nunca, tinhas encontrado o teu verdadeiro amor. Estavas apaixonado. Escutaste melhor as vozes que te contavam as histórias, e escrevias, e escrevias, e escrevias, como um autêntico iluminado. Colocaste de lado as técnicas da escrita e abraçaste a nobreza das palavras. Assim construíste as tuas mais belas obras. Nasceste para escrever. Contra isso não podes lutar! Tinhas a certeza de quase tudo aquilo que fazias, mas começaste a imaginar como seria a tua vida se a viesses a perder.
Rui não faz ideia de como o invisível sabe tantas coisas a seu respeito. O escritor tenciona não dar grande importância ao discurso do amigo improvável, mas não consegue deixar de pensar nas palavras que acaba de ouvir. Ele continua a receber as frases com que vai construindo a sua nova obra, por isso tem certeza que este não é o momento ideal para conversas. A gripe também não lhe permite a concentração necessária para um confronto de ideias. Talvez a palestra do invisível mais não seja que uma peça que ele terá de saber usar para fazer crescer a obra.
O Lopes fartou-se de telefonar e o Rui nunca atendeu. O agente está sempre a insistir no mesmo, que um escritor não pode dar-se ao luxo de perder a inspiração, e que ele deve continuar a acreditar nos seus dotes.
- Sabes o que é o inferno? A tua ideia de inferno faz algum sentido? A verdade é que não tens feito grandes progressos e isso tem-te causado uma grande angústia. Sem as tuas vozes, como criarias? Eu cá acho que tu pensas demais, e nem te apercebes de como o teu rosto anda triste e fechado. Tu nem escreves nada mal. A vista da tua janela não para de me encantar. Chega mesmo a ser irónico não seres capaz de te inspirar com o que daqui se avista. Até eu, que nunca escrevi nada, sou capaz de imaginar histórias ao observar esta paisagem. Da próxima vez que o Lopes te ligar, vais ter de atender. Se não o fizeres, sabe-se lá se ele voltará a insistir! – avisa o companheiro invisível.
Tudo o que Rui pretende é conseguir viver uma vida normal. Nenhum escritor gostaria de viver uma vida normal, como é que alguém consegue ser escritor vivendo apenas uma vida normal?
Helen tocava piano como ninguém. Assim que Rui a escutou pela primeira vez, ficou encantado com a magia dos acordes e das suas melodias. Ter-se-ia apaixonado pela irlandesa ou pela arte da pianista? O escritor é capaz de matar só para voltar a senti-la nos seus braços. É impossível explicar um amor assim. Nenhum deles sabia ao certo quanto tempo duraria aquela paixão, ou talvez a pianista sempre o soubesse. Ela adorava colocar um lenço de seda perfumada depois de fazerem amor. E como cheirava bem aquela fragância inesquecível!
Rui pensa muitas vezes na irlandesa, dificilmente consegue deixar de pensar nela, e tem cada vez menos tempo para terminar a sua obra. Precisa mesmo de se concentrar.
- Não sei se já reparaste, mas acabei de beber o chá que me ofereceste. Porque não pões a tocar esse CD que gostas de ouvir enquanto escreves?
O escritor tinha jurado que não lhe iria responder, não hoje, não com esta gripe que o tem trazido tão debilitado, mas acaba por desistir, e desabafa:
- Merda! Uma merda é o que isto é! Envolvi-me demasiado com a rapariga, perdi-me de amores por ela como nunca imaginei. E quanto ao resto, é tudo mentira! As vozes que escuto são minhas, por isso quem inventa as personagens, os enredos, e os mundos por onde se movimentam, sou eu! Estas são as minhas palavras, as minhas histórias, os meus amores, os meus sentidos, as minhas paisagens, os gestos que escolhi, os odores que decidi. É tudo criado pela minha imaginação! Mas se eu fosse o autor dessa maldita história em que me apaixonei desesperadamente por Helen, o nosso amor jamais teria acabado!

segunda-feira, 6 de maio de 2013

UM SONHO SEM GRAÇA NENHUMA



Carla é assombrada por um pesadelo debaixo dos lençóis. Passou muitas noites sem dormir, e acabou por adormecer. As imagens deste sonho não a deixam descansar. Ela vê-se ao lado da viatura em chamas, mas não é afetada pelo aparato daquele mundo às avessas. A sua vida mudou, com a sua vontade, e no sonho vai construindo um gigantesco castelo com cartas de tarot. Volta a agarrar-se com força ao travesseiro. O colchão onde repousa passou a ser de palha de arroz, de trigo, de palha de milho forrado com um tecido áspero às riscas. Há muita comida espalhada pelos lençóis e pelo chão, talheres esquecidos, guardanapos e bichos que rastejam junto aos pés da cama. Apesar desta desarrumação, a comida tem um aspeto delicioso. Carla está cheia de apetite neste sonho, e sente-se febril. Merda de vida a sua que nem os sonhos a alegram. Alguns miúdos entretêm-se a jogar à bola dentro do quarto, passam por cima dos pratos, dos talheres, da comida, dos guardanapos e dos bichos que rastejam pela carpete. Não querem estar fechados entre quatro paredes, abrem os estores, as portadas, as janelas, e saltam para o exterior dando pontapés na bola. Que puta de vida e que merda de sonho este! Carla puxa para junto de si mais uma almofada. Quer descansar, e quer que o pesadelo acabe.
- Os meus sonhos nunca são iguais. Eu, quando dormia com os meus quatro irmãos na mesma cama, cabeça contra os pés para melhor lá cabermos, muito me divertiam os sonhos de então. Mas esta porcaria de sonho, não tem mesmo graça nenhuma!