terça-feira, 7 de maio de 2013

O VERDADEIRO AMOR



- Precisaste de muitos estudos para seres escritor? Quando começaste a aprender a tua arte? E se mais não fosses que um simples aprendiz? Como tu mesmo afirmaste, eu sou a razão por que ainda tens coragem para escrever. Praticas a tua escrita há mais de dez anos, como se as histórias fossem realmente tuas. Já desde essa altura as vozes te seguiam, e ainda bem que as escutavas. Andavas tão sozinho, escondias-te de tudo e de todos, um pouco como ainda fazes agora. Concentravas-te nos detalhes mais técnicos da escrita, e quase esqueceste a essência e beleza das palavras. Construíste a tua primeira obra em pouco menos de um ano, sempre encerrado nesse teu mundo, até que a encontraste, e os teus problemas deixaram de te incomodar. Escreveste como nunca, tinhas encontrado o teu verdadeiro amor. Estavas apaixonado. Escutaste melhor as vozes que te contavam as histórias, e escrevias, e escrevias, e escrevias, como um autêntico iluminado. Colocaste de lado as técnicas da escrita e abraçaste a nobreza das palavras. Assim construíste as tuas mais belas obras. Nasceste para escrever. Contra isso não podes lutar! Tinhas a certeza de quase tudo aquilo que fazias, mas começaste a imaginar como seria a tua vida se a viesses a perder.
Rui não faz ideia de como o invisível sabe tantas coisas a seu respeito. O escritor tenciona não dar grande importância ao discurso do amigo improvável, mas não consegue deixar de pensar nas palavras que acaba de ouvir. Ele continua a receber as frases com que vai construindo a sua nova obra, por isso tem certeza que este não é o momento ideal para conversas. A gripe também não lhe permite a concentração necessária para um confronto de ideias. Talvez a palestra do invisível mais não seja que uma peça que ele terá de saber usar para fazer crescer a obra.
O Lopes fartou-se de telefonar e o Rui nunca atendeu. O agente está sempre a insistir no mesmo, que um escritor não pode dar-se ao luxo de perder a inspiração, e que ele deve continuar a acreditar nos seus dotes.
- Sabes o que é o inferno? A tua ideia de inferno faz algum sentido? A verdade é que não tens feito grandes progressos e isso tem-te causado uma grande angústia. Sem as tuas vozes, como criarias? Eu cá acho que tu pensas demais, e nem te apercebes de como o teu rosto anda triste e fechado. Tu nem escreves nada mal. A vista da tua janela não para de me encantar. Chega mesmo a ser irónico não seres capaz de te inspirar com o que daqui se avista. Até eu, que nunca escrevi nada, sou capaz de imaginar histórias ao observar esta paisagem. Da próxima vez que o Lopes te ligar, vais ter de atender. Se não o fizeres, sabe-se lá se ele voltará a insistir! – avisa o companheiro invisível.
Tudo o que Rui pretende é conseguir viver uma vida normal. Nenhum escritor gostaria de viver uma vida normal, como é que alguém consegue ser escritor vivendo apenas uma vida normal?
Helen tocava piano como ninguém. Assim que Rui a escutou pela primeira vez, ficou encantado com a magia dos acordes e das suas melodias. Ter-se-ia apaixonado pela irlandesa ou pela arte da pianista? O escritor é capaz de matar só para voltar a senti-la nos seus braços. É impossível explicar um amor assim. Nenhum deles sabia ao certo quanto tempo duraria aquela paixão, ou talvez a pianista sempre o soubesse. Ela adorava colocar um lenço de seda perfumada depois de fazerem amor. E como cheirava bem aquela fragância inesquecível!
Rui pensa muitas vezes na irlandesa, dificilmente consegue deixar de pensar nela, e tem cada vez menos tempo para terminar a sua obra. Precisa mesmo de se concentrar.
- Não sei se já reparaste, mas acabei de beber o chá que me ofereceste. Porque não pões a tocar esse CD que gostas de ouvir enquanto escreves?
O escritor tinha jurado que não lhe iria responder, não hoje, não com esta gripe que o tem trazido tão debilitado, mas acaba por desistir, e desabafa:
- Merda! Uma merda é o que isto é! Envolvi-me demasiado com a rapariga, perdi-me de amores por ela como nunca imaginei. E quanto ao resto, é tudo mentira! As vozes que escuto são minhas, por isso quem inventa as personagens, os enredos, e os mundos por onde se movimentam, sou eu! Estas são as minhas palavras, as minhas histórias, os meus amores, os meus sentidos, as minhas paisagens, os gestos que escolhi, os odores que decidi. É tudo criado pela minha imaginação! Mas se eu fosse o autor dessa maldita história em que me apaixonei desesperadamente por Helen, o nosso amor jamais teria acabado!

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