Helen ainda não apagou por completo a
imagem da sobrinha mais nova. As pessoas no comboio devem pensar que ela é uma
tonta, pois não para de sorrir. As praias da linha brilham neste dia de
inverno. Isto é impensável acontecer na sua ilha verde. Aqui escuta as melodias
com maior clareza, soam puras e cristalinas. A luz da capital portuguesa tem
este dom particular, e cativou-a como não aconteceu em mais nenhum lugar. Aqui
nunca sentiu a angústia da falta de inspiração. A música soa-lhe de todos os
lados, está presente em todos os rostos e em todos os edifícios.
A irlandesa percorreu vezes sem conta as
ruas e os becos de Alfama, do Castelo, junto à Sé, de Marvila, e do Bairro
Alto, para tentar compreender esse património lusitano chamado Fado. Ensaiou
acordes idênticos ao dessas canções, ao piano. Galgou veredas e atravessou um
oceano para lhes acrescentar sonoridades celtas, gaélicas, e partituras tão
antigas como a idade das duas nações, a sua Irlanda e este Portugal que a
recebeu. Sente-se aqui tão em casa como em Cork, a sua terra natal. Helen não
hesitou quando um dos projetos da Cork School
of Music propunha passar uma temporada em Lisboa, cidade que sempre
desejara conhecer.
Passaram quase dois anos e meio, e a sua
vida transformou-se desde que chegou.
Hoje é dia de passeio, de Cascais e de
Guincho.
Isilda ainda não apagou por completo a
imagem do mendigo que estava sentado à entrada da estação. Porque diabo terá
ela recuado quando o desgraçado lhe estendeu a mão? Porque diabo tem assim estes
repentes de que se arrepende? A jovem que está sentada ao seu lado cheira muito
bem. Vê-se logo que é estrangeira, com um cabelo ruivo impecável, umas sardas
encantadoras e umas roupas vistosas e originais. E tem um sorriso bonito.
A porta da casa de Anacleto tinha o número
treze pintado a branco num quadrado negro por cima da cantaria que embelezava a
entrada da habitação. Sempre considerou que aquela coincidência mais não era
que um sinal divino. O padre era o homem mais lindo que jamais vira. Foi um
crime ter seguido aquela vocação antes de a conhecer. Vida maldita! Isilda
sempre carregou às costas a má fama da mãe, ela que sempre conseguiu dar
chapadas nas faces do destino, até ao dia em que se lembrou de ir rezar um Pai
Nosso à igreja de São Roque. Cheirava tão bem o Anacleto, quase tão bem como o
perfume quente e adocicado da rapariga ruiva. Foi uma hora amaldiçoada aquela
em que se lembrou de rezar. Era uma manhã de sexta-feira. No sábado seguinte já
Anacleto a lavava, a penteava, a acariciava e agradecia a sua candura pela
primeira vez. Aquela foi a maior paixão da sua vida. Ela jamais conseguiu
apagar da memória o corpo perfeito do amante, as suas mãos aveludadas e o seu
cabelo comprido.
Hoje o dia começou estranho, e trouxe-lhe
as mesmas lembranças de sempre. Nunca se livrará delas, e os seus esforços
nesse sentido acabam sempre por ter o resultado oposto ao desejado.
O rapaz de dentes de metal está encantado
com as sardas da pianista, e com o seu sorriso luminoso. É bem gira a rapariga!
Quando for mais crescido, vai arranjar uma namorada tão bonita quanto ela.
- O chá está pronto! Vou deixar a caneca
aqui em cima da mesa. Vem beber, se quiseres. Sabes bem que me é impossível
descobrir por onde te deslocas, e não te quero mais ouvir dizer que já não me
fazes falta! Neste momento, saber-te aqui perto de mim, é a única razão que me
faz ter coragem para escrever.
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