Fui apanhado pela gripe maldita. Tenho
dificuldade em respirar, não consigo parar de tossir, mal consigo dormir, e o
pior de tudo, deixei de escutar as vozes que me contam a história.
- Está um lindo dia. Vou mesmo ligar ao
Rogério. Vai ficar contente quando lhe disser que o livro é ótimo. Voava tão
bem como todos os outros que me ofereceu. Se ao menos hoje não me doesse tanto
a cabeça como nos últimos dias. Isso seria mesmo o melhor que lhe podia
acontecer.
- Sim, Rogério, sou mesmo eu, o Zé Paulo.
Sim, está tudo bem, mais ou menos. Escuta, lembrei-me de te ligar para
agradecer o presente. Tinhas razão, era mesmo de um livro assim que eu estava a
precisar. Não, não fiz como de costume, desta vez li-o mesmo. É muito bom, nem
imaginas! E aquelas palavras conseguiram fazer-me repensar algumas das minhas
teorias de como o universo, na realidade, funciona. Não fazes ideia de como alguns
assuntos estão bem esquematizados. Está muito bem escrito, não é como os
anteriores. Claro que sim, já te disse que sim, Rogério, tem sido uma bela
companhia, e não, não me estou a fazer desentendido, só te quis pôr a par da
situação. É só isto! Mesmo! Se encontrares outro livro assim tão bom, não te
esqueças de mim. Dá um beijo meu à Madalena e um abraço aos miúdos. Sim, claro
que sim, mano, fica descansado que eu estou bastante melhor. Agora és tu que
estás a ser um chato!
Rogério perde a ligação com o irmão.
Zé Paulo é atacado por um súbito ataque de
riso.
Porque é que o irmão é assim?
O “miúdo” sempre foi ingénuo. Esteve quase
a dizer-lhe que tinha atirado o livro pela janela, que o tinha visto a bater as
asas como um pombo, que o tinha visto a voar mesmo antes de cair no teto do
carro como um peso morto carregado de letras e palavras estéreis.
Se ao menos o manual tivesse sido capaz de
voar, se ao menos o vento o tivesse ajudado, se ao menos a lua não estivesse
tão brilhante a refletir-se na capa lustrosa, se ao menos o alarme do carro
branco não tivesse disparado, se ao menos os automóveis que passaram na avenida
não o tivessem atropelado, se ao menos ele conseguisse parar de pensar nestas
variáveis de merda, talvez, ao menos, por uns instantes, ele conseguisse
sentir-se minimamente feliz.
- Ontem vi uma playstation desafiar as leis da gravidade. Voou, como o meu livro,
lançada de uma janela. Já vi sapatos, ovos, vestidos e livros serem lançados
por janelas em tentativas desesperadas de derrotar a gravidade.
A televisão vai passando as notícias do
homem que se lançou ao Tejo da ponte. Ninguém ficou a ganhar com aquele voo. O homem
queria matar-se, e conseguiu.
- Que corajoso! – desabafa Zé Paulo
Jorge não trouxe os melhores sapatos para
o passeio. Teria sido melhor se tivesse escolhido sapatilhas, mas ele não sabia
que hoje ia embarcar nesta aventura.
O trânsito está muito complicado, num constante
pára-arranca. As pessoas continuam cegas, alheias ao que as rodeia. As nuvens
transformam-se em vários animais, em flores, em veículos gigantes, e apenas
elas vão dando conta do miúdo a passear pela ponte. Ele começa a correr, imagina-se
a voar, tão alta é a ponte, tão dourado é o céu. Tudo o que tinha imaginado é
agora verdade, e o medo, as tremuras e os suores frios desapareceram com o
início da corrida.
Até ao meio da ponte é sempre a subir,
depois, daí até à outra margem, é sempre a descer. Jorge corre até ao lugar
onde se recorda ter avistado o homem. O rapaz está preparado para tudo, e já
ensaiou todas as perguntas. A mãe e o pai é que iriam ficar assustados e muito
zangados se soubessem o que ele anda a fazer.
O mundo até parece mais pequeno visto ali
de cima. A mochila começa a pesar-lhe. Decide andar mais um bocado para depois
regressar. Se calhar o senhor já lá não está, pois passou muito tempo desde que
o viu de manhãzinha. Não está seguro que o vá encontrar, mas foi um ótimo
pretexto para cumprir com o seu desejo.
Jorge para junto ao gradeamento da ponte.
Descobre, largados no chão, um chapéu da seleção e uns sapatos velhos e gastos
com umas meias sujas dobradas lá dentro. Pertencem ao senhor que o Jorge viu de
manhã, só podem ser dele. Porque os terá ali abandonado?
Se ao menos as nuvens pudessem falar, se
ao menos o pai lhe tivesse dado ouvidos. Jorge começa a entender que algo de
mau pode ter acontecido ao homem da ponte.
- Vês, é ou não é verdade o que eu te disse?
Esta maldita gripe deixou-me de rastos. Tento continuar com a obra, mas é-me
muito difícil. As palavras não fazem sentido. Tenho cada vez menos tempo para a
acabar. Desta vez é que o Lopes me mata!
- Vai fazer um chá. – diz o invisível ao
escritor, e olha pela janela. – Bebe muitos líquidos, toma um xarope e um
antipirético. Acalma-te. Isto é só um pequeno contratempo. Escrever é a tua única
tarefa, tens de te concentrar, não deixes que nada te interfira ou te distraia.
O mundo não para de girar e tu não irás parar de escrever. Corre, corre para a tua
folha branca e desenha-lhe as palavras que escutas. Eu vou deixar de ser-te útil,
não sei mesmo se esse momento não terá chegado hoje.
Rui não estava à espera disto. Está debilitado
com uma gripe das antigas. Anteontem estava cheio de febre, o corpo tremia-lhe e
o sofá foi o seu porto seguro. Outra semana assim e ser-lhe-á impossível acabar
a obra a tempo.
- Anda, deixa-te de conversas tolas. Vou fazer
um chá para nós os dois, e depois, mãos à obra!
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