quarta-feira, 1 de maio de 2013

UMA GRIPE DAS ANTIGAS



Fui apanhado pela gripe maldita. Tenho dificuldade em respirar, não consigo parar de tossir, mal consigo dormir, e o pior de tudo, deixei de escutar as vozes que me contam a história.

- Está um lindo dia. Vou mesmo ligar ao Rogério. Vai ficar contente quando lhe disser que o livro é ótimo. Voava tão bem como todos os outros que me ofereceu. Se ao menos hoje não me doesse tanto a cabeça como nos últimos dias. Isso seria mesmo o melhor que lhe podia acontecer.
- Sim, Rogério, sou mesmo eu, o Zé Paulo. Sim, está tudo bem, mais ou menos. Escuta, lembrei-me de te ligar para agradecer o presente. Tinhas razão, era mesmo de um livro assim que eu estava a precisar. Não, não fiz como de costume, desta vez li-o mesmo. É muito bom, nem imaginas! E aquelas palavras conseguiram fazer-me repensar algumas das minhas teorias de como o universo, na realidade, funciona. Não fazes ideia de como alguns assuntos estão bem esquematizados. Está muito bem escrito, não é como os anteriores. Claro que sim, já te disse que sim, Rogério, tem sido uma bela companhia, e não, não me estou a fazer desentendido, só te quis pôr a par da situação. É só isto! Mesmo! Se encontrares outro livro assim tão bom, não te esqueças de mim. Dá um beijo meu à Madalena e um abraço aos miúdos. Sim, claro que sim, mano, fica descansado que eu estou bastante melhor. Agora és tu que estás a ser um chato!
Rogério perde a ligação com o irmão.
Zé Paulo é atacado por um súbito ataque de riso.
Porque é que o irmão é assim?
O “miúdo” sempre foi ingénuo. Esteve quase a dizer-lhe que tinha atirado o livro pela janela, que o tinha visto a bater as asas como um pombo, que o tinha visto a voar mesmo antes de cair no teto do carro como um peso morto carregado de letras e palavras estéreis.
Se ao menos o manual tivesse sido capaz de voar, se ao menos o vento o tivesse ajudado, se ao menos a lua não estivesse tão brilhante a refletir-se na capa lustrosa, se ao menos o alarme do carro branco não tivesse disparado, se ao menos os automóveis que passaram na avenida não o tivessem atropelado, se ao menos ele conseguisse parar de pensar nestas variáveis de merda, talvez, ao menos, por uns instantes, ele conseguisse sentir-se minimamente feliz.
- Ontem vi uma playstation desafiar as leis da gravidade. Voou, como o meu livro, lançada de uma janela. Já vi sapatos, ovos, vestidos e livros serem lançados por janelas em tentativas desesperadas de derrotar a gravidade.
A televisão vai passando as notícias do homem que se lançou ao Tejo da ponte. Ninguém ficou a ganhar com aquele voo. O homem queria matar-se, e conseguiu.
- Que corajoso! – desabafa Zé Paulo

Jorge não trouxe os melhores sapatos para o passeio. Teria sido melhor se tivesse escolhido sapatilhas, mas ele não sabia que hoje ia embarcar nesta aventura.
O trânsito está muito complicado, num constante pára-arranca. As pessoas continuam cegas, alheias ao que as rodeia. As nuvens transformam-se em vários animais, em flores, em veículos gigantes, e apenas elas vão dando conta do miúdo a passear pela ponte. Ele começa a correr, imagina-se a voar, tão alta é a ponte, tão dourado é o céu. Tudo o que tinha imaginado é agora verdade, e o medo, as tremuras e os suores frios desapareceram com o início da corrida.
Até ao meio da ponte é sempre a subir, depois, daí até à outra margem, é sempre a descer. Jorge corre até ao lugar onde se recorda ter avistado o homem. O rapaz está preparado para tudo, e já ensaiou todas as perguntas. A mãe e o pai é que iriam ficar assustados e muito zangados se soubessem o que ele anda a fazer.
O mundo até parece mais pequeno visto ali de cima. A mochila começa a pesar-lhe. Decide andar mais um bocado para depois regressar. Se calhar o senhor já lá não está, pois passou muito tempo desde que o viu de manhãzinha. Não está seguro que o vá encontrar, mas foi um ótimo pretexto para cumprir com o seu desejo.
Jorge para junto ao gradeamento da ponte. Descobre, largados no chão, um chapéu da seleção e uns sapatos velhos e gastos com umas meias sujas dobradas lá dentro. Pertencem ao senhor que o Jorge viu de manhã, só podem ser dele. Porque os terá ali abandonado?
Se ao menos as nuvens pudessem falar, se ao menos o pai lhe tivesse dado ouvidos. Jorge começa a entender que algo de mau pode ter acontecido ao homem da ponte.

- Vês, é ou não é verdade o que eu te disse? Esta maldita gripe deixou-me de rastos. Tento continuar com a obra, mas é-me muito difícil. As palavras não fazem sentido. Tenho cada vez menos tempo para a acabar. Desta vez é que o Lopes me mata!
- Vai fazer um chá. – diz o invisível ao escritor, e olha pela janela. – Bebe muitos líquidos, toma um xarope e um antipirético. Acalma-te. Isto é só um pequeno contratempo. Escrever é a tua única tarefa, tens de te concentrar, não deixes que nada te interfira ou te distraia. O mundo não para de girar e tu não irás parar de escrever. Corre, corre para a tua folha branca e desenha-lhe as palavras que escutas. Eu vou deixar de ser-te útil, não sei mesmo se esse momento não terá chegado hoje.
Rui não estava à espera disto. Está debilitado com uma gripe das antigas. Anteontem estava cheio de febre, o corpo tremia-lhe e o sofá foi o seu porto seguro. Outra semana assim e ser-lhe-á impossível acabar a obra a tempo.
- Anda, deixa-te de conversas tolas. Vou fazer um chá para nós os dois, e depois, mãos à obra!

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