quarta-feira, 29 de maio de 2013

OS UNIVERSOS TAMBÉM DESCANSAM


Um universo jovem transporta um bebé ao colo. Pede um lanche ao balcão do café enquanto bebe água de um copo. Coloca a quantia exata nas mãos da empregada, aperta o farnel no meio de um pequeno guardanapo de papel retangular e desaparece com o filho bem seguro no braço esquerdo. Trazia um rabo-de-cavalo construído à pressa e uma mala atirada para trás das costas.
Outro universo jovem está sentado a uma mesa com a filha amparada na coxa esquerda. A bebé olha de baixo para cima e vislumbra o queixo do pai, que lhe faculta uma chupeta amarela e um minúsculo urso de peluche acastanhado com barriga e olhos azuis. O carrinho da bebé está colocado ao lado da mesa, onde mora uma chávena de café vazia que o universo jovem já bebeu. Ele fala ao telemóvel e a menina mexe nos pés aquecidos pelo babygrow, aperta o urso, leva-o à boca, mexe no tampo branco e liso da mesa, chucha no polegar da mão direita e observa, com atenção, tudo o que acontece ao seu redor. O universo jovem coloca a bebé no carrinho e desaparece empurrando a viatura. Trazia um casaco de fato de treino atado em volta da cintura.

Zé Paulo é um universo complexo, quase tão complexo como todas as suas teorias. A imagem das suas mãos cravadas no pescoço do pai nunca lhe saiu da cabeça, por isso detesta gravatas e homens engravatados, detesta tudo o que possa condicionar os movimentos do pescoço. Golas altas, laços, lacinhos, laçarotes, lenços, cachecóis, são inimigos que prefere não ter de enfrentar. Usar esse tipo de vestuário é invocar a memória do passado que assim regressa para o assombrar.
Zé Paulo teve, um dia, a perceção de que talvez ele funcionasse como um universo. Se tal consideração estivesse correta, todos os seres vivos se comportariam como universos e o próprio universo onde todos existem e coabitam, seria uma entidade viva, um fractal infinito, eterno, dinâmico e dificílimo de descrever.
Zé Paulo sabe que a teoria é absurda, quase ridícula. Surgiu-lhe durante uma daquelas noites em que a cabeça lhe pregou uma grande partida. Os dias e as madrugadas misturaram-se como corantes distintos, as luzes feriram-lhe a vista, as palavras deixaram de fazer sentido, o tempo distorceu-se e o chão ora se movia, ora permanecia quieto como era suposto acontecer. Nada era real, e tudo era mais do que real. Metade do universo estava desligado, e a outra metade latejava intensamente como se fosse explodir, mas nada parecia ser mais autêntico do que essa metade do universo que se mantinha desligada.
- Não quero recordar os meus pais, não posso ficar doente outra vez. Vou fazer tudo o que prometi ao Rogério, antes que me arrependa. Os universos são lugares violentos, de equilíbrios instáveis e difíceis de manter. Gosto demasiado da Sofia e do Tiago para estar contente com o que lhes está a acontecer. Porque será que não consigo deixar de estar contente com o que lhes está a acontecer?
Na televisão passam as imagens da explosão que ocorreu numa rua movimentada de Lisboa. Em rodapé surge a notícia de um homem que decidiu acabar de vez com o seu universo, atirando-se ao Tejo do alto da ponte 25 de Abril. Zé Paulo volta a considerar a teoria dos universos paralelos cada vez menos inverosímil. As suas apreciações estão a bater certo - o universo está a ficar cada vez mais vazio à medida que vai envelhecendo e que ele o compreende.
Pena é que o gigantesco buraco negro que tudo suga não se canse de trabalhar, mesmo estando a outra metade do universo a descansar.

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