quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

ESTRANHOS



Estranhos, passeamos uns pelos outros, por entre outros, mas sempre como estranhos.
- Joel, olha só para a variedade de raças, de credos, de nacionalidades que se cruzam num só dia no aeroporto. Milhares de penteados, de rostos, de estilos de roupa, de línguas, de destinos, todos tão diferentes. Houve uma altura em que pensei trabalhar como hospedeira na TAP. Gostava de poder viajar por esse mundo fora, conhecer o maior número de países e de culturas. Ainda hoje me lembro de como foi fascinante o dia em que atravessei a fronteira de Vilar Formoso, com os teus avós e a tua mãe, pela primeira vez. Espanha! Vê lá tu bem! Tão longe… mas eu fiquei impressionada. Devia ter cinco ou seis anos. E depois, quando chegámos a França, percebi que o nosso planeta era gigantesco. Foi como se tivesse alcançado uma galáxia distante povoada por extraterrestres de chapéus bizarros, e que falavam a mais estranha das línguas. O teu avô nunca tinha andado de avião, e tem um medo de morte só de pensar neles. Mas, pelos vistos, lá o conseguiu superar.
O sobrinho mal ouviu as palavras da tia. Procurava pelo avô no meio dos passageiros recém-chegados. Tinham aterrado três voos quase ao mesmo tempo, e quinze minutos depois chegou um avião do Brasil e outro proveniente de Harare.
Sul-americanos, africanos e europeus vão saindo e recebem abraços, carinhos e saudações de quem veio recebê-los.
- O teu avô, até hoje, nada me disse acerca dos motivos desta viagem.
Joel sente nervosismo nas palavras da tia Filipa, e resolve responder com uma mentira:
- Não? A mim, entregou-me um envelope com a prenda, e disse que este ano tinha de ir até Paris ter com o tio António. Foi só isso, e depois, abraçou-me com mais força do que é habitual.
Seria desleal se Joel quebrasse o voto de silêncio que o avô lhe pediu. O tio António meteu-se em grandes sarilhos lá por França, e pediu encarecidamente a ajuda do avô Augusto. Não quis que a irmã soubesse de nada. Complicações de dinheiros, dívidas por saldar. O negócio tem andado a correr mal, e agora está a passar uma fase de grandes dificuldades. Ao neto, descansou-o, disse-lhe que para o curso nada lhe faltaria. Augusto sempre foi uma pessoa preocupada com os seus, por isso, anda sempre com um ar soturno, e é senhor de poucas palavras. Joel gostava de poder ter mais tempo para conversar com o avô, para lhe “sacar” histórias de outros tempos.
- Olha, Joel! É o avô que vem ali. Ainda não nos viu! PAI! PAI!!!
Filipa passou o Natal muito tensa, e não apenas por causa da súbita viagem do pai. Os últimos meses da sua vida têm sido um turbilhão de emoções. O telemóvel vibra, teimoso, dentro da mala, enquanto o pai desce a pequena rampa com o carrinho metálico da bagagem. Um forte abraço ao neto, primeiro, um beijo no rosto de Filipa, a seguir.
As sete chamadas não atendidas de Afonso iluminam a azul o visor do telefone de Filipa.
- O António vai regressar, definitivamente, no início do Verão! – declara Augusto, antes que alguém começasse a conversar! 

A chave descansava no sofá, e o carregador estava na mesa do hall de entrada do apartamento. Susana só tem de recordar onde estacionou o carro se quiser chegar a tempo da primeira aula da manhã. Os alunos já sabem que a “stora” Susana tem dificuldades em chegar a horas, e que muitas vezes corre até à sala para abrir a porta ao segundo toque da campainha.
- Hoje, o “stor” Afonso vai faltar! A funcionária já veio avisar que vamos ter aula de substituição. – grita o Francisco para os colegas que esperavam novidades junto da sala de aula.
- Vamos jogar para o campo antes que chegue outro professor. – gritam os rapazes da turma, deixando as meninas entregues à lotaria do feriado.

- Querias viver ou morrer? Se ficasses paralisado e não pudesses mexer um único músculo do teu corpo, o que desejarias? Que te mantivessem vivo ligado a uma máquina, ou que te deixassem seguir viagem? Os médicos retiravam-te o coágulo da cabeça a tempo, mas não sabiam como irias responder à operação. Talvez o resultado não fosse tão mau como no início se pensava. Davam-te dez por cento de probabilidades de tudo voltar a ser como antes do acidente. A tua família está derrotada na sala de espera a aguardar notícias. Os órgãos vitais do corpo são escravos do cérebro. É ele o ditador, e não sabes o que te acontecerá. Difícil, não é? Se isso te acontecesse, se fosses apanhado pelo destino numa situação tão terrível como esta, preferias não ter sobrevivido? E se nunca mais pudesses mergulhar nas águas frescas do oceano, nunca mais pudesses amar, cheirar, sentir, respirar, ver as coisas com clareza e nitidez? E se ficasses paralisado para sempre, preso num corpo sem movimento, e nada mais houvesse a fazer, a não ser escutar as palavras dos especialistas? A tua viagem só agora ia começar. As opções a acabar, a respiração torna-se muito difícil. O que farias? Querias viver ou morrer? Querias que te conseguissem compreender até te fazerem a pergunta final? Ficarias ligado à máquina mais de seis meses numa unidade de cuidados intensivos. O aparelho respiraria por ti, mas as memórias ainda seriam as tuas. Seriam elas a darem-te as informações. Não sentirias dores, só conseguirias mexer os olhos. Recordarias a sensação de frio provocada pela neve acabada de cair e relembrarias as coisas simples que te fizeram feliz. Então? O que farias se o destino te pregasse assim uma partida?

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

O CÉU E O INFERNO


 
- Vem visitar a cidade. Sai, aventura-te por estas ruas, avança pelo meio destes milhões, que vivem um dia de cada vez, num autêntico formigueiro humano. A noção de espaço é outra, os sonhos são pequenos, a segurança é uma ilusão, a vida é uma ilusão, e sobreviver a cada dia, a maior das conquistas. Céu e inferno andam por aqui de mãos dadas, e somos duramente confrontados com a verdadeira natureza de quem somos, e do que somos. Enches um pote de água suja, impura, andas pelo meio da favela suja, pútrida, durante muito tempo, aguardas na fila o necessário até que chegue a tua vez, pior ainda se fores mulher e estiveres menstruada, ou se a vontade te chegar durante a noite, em que necessitas de acordar os outros que contigo partilham o parco espaço onde tentas descansar. Pedes auxílio para não ires sozinho, ou sozinha, se fores criança ou uma jovem rapariga. Não há iluminação, a não ser a luz das velas ou fósforos que consigas encontrar, e essa simples ida pode ser perigosa, quem sabe até fatal. Não sabes quem encontrarás pelo caminho, as ruelas e becos da favela são escuros, sombrios, e o lixo amontoado um obstáculo labiríntico que procuras evitar. Escuso de relatar o que vem em seguida, quando alcanças a pública latrina, e resolves de vez o teu assunto. Abri a tua janela e dei comigo nesta cidade. Decidi deixar o caminho aberto para ti. O que achas? Ainda te sentes desinspirado? Nesta cidade as doenças propagam-se com facilidade, diarreias, cólera, hepatite e malária, a febre de dengue. As crianças vão às latrinas de pés descalços, não lavam as mãos, não têm hábitos de higiene, as moscas cantam à nossa volta e os mosquitos proliferam. Os teus pressupostos podem estar errados. Tens de ter a noção da obra como um todo, sentires todas as suas partes, e tens de saber como explicar as diferentes cambiantes. Senti que se caminhasses por esta cidade, a tua inspiração poderia regressar mais depressa.
Por todos os lados escuto os sons e os ecos que me chegam do exterior. Os ruídos da cidade são vencidos pelas minhas músicas. Mais de oitenta por cento dos meninos da rua são rapazes, e entre os que dormem e erram perdidos, mais de metade tem menos de dez anos. Ninguém os vê, são enxotados, são insetos indesejados que seguem perdidos, sombras no meio do reboliço da cidade com maior densidade do planeta.
- Imagino as razões que te fizeram trazer-me até aqui. – desabafa o escritor.
-Não, não imaginas. As vozes disseram-me que tenho de escolher um caminho, antes de regressar. Antes dessa escolha, terei de viajar por locais que não conheci, e que dificilmente poderiam ser visitados ao longo de dez vidas. Este é o primeiro de muitos. Consigo cheirar, mesmo depois de morto! Consigo, mas preferia não ter de o fazer. Escutas o som do piano que parece chorar? Foste tu quem escolheste a música do cd? Tens bom gosto. Assim torna-se menos penoso olhar os rostos destes jovens anónimos que passam por nós. Podias ser esse rapaz, aquele outro que ali vem, este que te estende a mão, o que dorme junto àquele muro, ou o que corre atrás dos camiões abarrotados de passageiros. Podias ser aquele que sobe ao camião, o que cai desamparado e não se queixa, o que segue agarrado junto à porta, o que não se move, deitado no chão.
O trânsito mal circula, o ar é abafado e poluído. Uma chuva imensa, intensa, quente, começa a cair. Ninguém se preocupa com isso. Os habitantes seguem os seus caminhos sem se inquietarem com o início da monção. As ruas já estavam caóticas antes da chuvada.

O cão dos vizinhos continua a ladrar, mesmo depois da empregada dos doutores o levar a passear. É um tormento! O animal não gosta de estar fechado no apartamento. A dona Fátima deve estar maluquinha por ter de trabalhar todo o dia naquele inferno! Fechou o cão na despensa, na varanda, na casa de banho, pensou em atirar o animal pela janela, em amordaçá-lo com fita isoladora. Já telefonou à senhora, que a descompôs. O bicho anda louco pela casa, salta de sofá em sofá, por cima da mesa da sala de estar, arranha a porta do escritório, arranha a porta da cozinha, a porta da sala, a porta de entrada do apartamento. O caniche branco está possuído pelo demónio, é o próprio demónio em forma de cão. O candeeiro do Ikea voou do aparador assim que o animal chegou da rua. Choveu, Fátima não ia preparada, e acabou por quase largar o Einstein. Teve pena de ter conseguido agarrar a trela a tempo.
 

sábado, 26 de janeiro de 2013

NASCEMOS PARA MORRER



As personagens do escritor regressam para o interior do invólucro, onde as repensa, onde conversam umas com as outras, mesmo não se conhecendo. Rui volta a refugiar-se num mundo imaginário que só ele conhece. Os universos existem em jarros transparentes, com passagens efémeras entre si, de portas invisíveis, e janelas cerradas. O cosmos deixou de fazer sentido. Zé Paulo tinha razão. Os universos são locais violentos, com toda a informação refletida nos seus horizontes mais longínquos, buracos negros semelhantes ao início de todos eles, universos que habitam nos seus interiores, universos comunicantes, onde realidade e sonho coexistem separados por membranas invisíveis às máquinas sofisticadas que o homem construiu.
Correr e escrever, sem dizer adeus, só até já. É sempre primavera quando encontramos as mensagens escondidas em cada uma das histórias. Rui, tenta encontrar a nova obra através do denso nevoeiro deste difícil recomeçar, sem escutar as vozes amigas, suas companheiras de sempre, e sem os pesadelos inovadores que sempre o ajudaram nas suas criações.
- Nascemos para morrer! Nascemos para morrer, e aprendemos, relembrando o que se perdeu nas memórias distantes de quem já fomos, como todos os universos existentes. As calças já não vão à máquina quase há dois meses. Trago pedaços do ano passado agarrados à ganga. Gosto de trazer fragmentos de coisas passadas colados à roupa, bocados de dias, de semanas, com viagens e viajantes que nunca conheci. Nesta outra cidade, as pessoas andam mais libertas de razão. O companheiro desapareceu, entendeu deixar-me sozinho com esta nova paisagem. Ainda não sei quem é, ou quem foi, melhor dizendo. Nem ele sabe porque me veio visitar. Não sabe nada, afinal, é isto que nos acontece quando morremos. A mesma dúvida surge quando compreendemos que estamos vivos a primeira vez. Então isto é que é estar vivo? Então isto é que é estar morto? Mas, o que é isto afinal? Estamos ali, estávamos ali, e depois, tudo passou num repente, e já lá não estamos, já estamos aqui, ou num outro lugar, num outro tempo, e não somos quem éramos, mas ainda somos, antes de deixarmos de existir. Esta neblina morna levou-me grande parte das palavras escritas. Não que elas fossem muito importantes, ainda nada de sério nelas tinha acontecido. Vou sair. Regressei a casa para ter esta surpresa. Uma prenda! Que cidade é esta, que rio será aquele, tão largo, tão imponente? Não me respondes? Trouxeste-me até aqui com o firme propósito de me sacudires a inspiração. Claro que sim, foi isso mesmo. Mostras-me os teus novos truques de alma nómada para me impressionar.

Quando jovem, Isilda passava as segundas-feiras de manhã na igreja do bairro, a ajudar na limpeza da sacristia. O padre Anacleto agradecia. Às terças-feiras servia refeições aos idosos nos lares, e ajudava, sempre que podia, nas entregas e visitas ao domicílio que eram organizadas pela paróquia. O padre Anacleto agradecia. Às quartas-feiras promovia reuniões com voluntários, na diocese, para organizar atividades de apoio às crianças e jovens desfavorecidos. O padre Anacleto agradecia. Às quintas-feiras, de quinze em quinze dias, dava aconselhamento a jovens acerca de planeamento familiar com mais duas caridosas voluntárias. O padre Anacleto agradecia. Às sextas-feiras, ajudava a recolher e a separar roupa usada que era oferecida pelos fiéis devotos, com outras duas caridosas voluntárias, na igreja do bairro. O padre Anacleto agradecia. Ao sábado, visitava a casa do prior, homem lindo, que nunca devia ter seguido a vocação, e que com ela se satisfazia, enquanto Isilda gemia, gritava e chorava de prazer. O padre Anacleto agradecia. Depois lavava-a, penteava, acariciava-a por longos minutos, como se assim ficasse esquecido o pecado vergonhoso que o obrigou a ser um escravo da impureza. - Que o senhor me faça louco, cego e delirante, que me castigue, mas que não me leve a tua pele macia e olhos doces, o teu hálito frutado, a tua candura. – repetia, vezes sem fim, enquanto a secava. Ao domingo, Isilda descansava, e o padre Anacleto agradecia.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

PALAVRAS SEM SENTIDO



Tudo o que Rui pretende é recomeçar a escrever. Tem de o fazer, não vale a pena continuar a adiar o inadiável, pois o problema não se resolve sozinho.
- Deixa-te levar pelo instinto, mas escreve. Dizem-me as vozes que tens de escrever. Qualquer coisa que seja, mas escreve. Não podes continuar a vaguear, à espera que a inspiração te seja entregue numa qualquer bandeja. Enquanto os dedos estiverem parados, a obra está parada, mas, como vês, a obra está tudo menos parada.
- És um filósofo! Depois de morto, teorias não te faltam. Desculpa, não era bem isto que queria dizer. Nem te conheço. A verdade, é que nem eu próprio me conheço. Penso muitas vezes que escrevo para tentar entender quem sou, para saber quantos outros eus em mim habitam.
Rui viaja por palavras que não esperava encontrar, na esperança que elas lhe façam regressar a inspiração. Está partido em pedaços, enredado em personagens desconexas, como as histórias que iniciou. Escuta vozes, e sente a presença de um dos seus donos que agora o acompanha. Nada é real, nada disto pode ser real.
- Pensas que a magia se perdeu nas noites e nos dias seguidos que te correm mal. Queres ter de volta dias azuis, sem canções tristes, só inspiração. Escreve! Pega na caneta e escreve! Assim que os dias maus terminarem, e o inverno acabar, os teus pecados regressarão e a tua escrita ficará tão colorida com um raio de sol. Junta os fragmentos dessas tuas ideias para construíres a obra, junta os restos, todos os pedaços, todas as sombras de todas as personagens que povoam o teu espírito. Junta-lhes sangue e suor, mistura as narrativas que ainda mal nasceram, atira-te para o branco da folha de corpo e alma, atira-te, e escreve, escreve, escreve, escreve, escreve… até te doerem os dedos, as mãos, os pulsos.
- O passeio só trouxe de volta a chuva, e pouco mais. As palavras não fazem sentido. Não sei quem és, porque te mataste, porque me escolheste para conversar. Prometo regressar às palavras se me disseres quem és, ou quem eras…
O vento escuta-se do lado de lá das vidraças da sala. A janela, fechada, abre-se sem intervenção do escritor, e um pequeno vendaval levanta todas as folhas da mesa, roubando algumas que voam para o céu da cidade, que se transforma. Uma outra cidade, de um novo continente, surge do lado de lá das paredes da casa. Um calor húmido invade o ambiente onde antes era Lisboa. Outro rio nasceu e por ali viaja.
- Hoje sinto que sou um abrigo, ontem era a parede, o muro que ninguém conseguiu quebrar. Só me apetecia morrer, sempre, a todos os instantes de cada dia, até que perdi a noção dos porquês dessa vontade. Ver para crer, pois as vozes que escuto assim me confiaram a tarefa. Por isso escreve, escreve, não adies! Vou aproveitar a transformação da cidade e passear por esta nova que apareceu no seu lugar.
- Foste tu que abriste a janela e fizeste com que tudo mudasse? – questiona o escritor.
- Claro. Estavas a necessitar de uma mudança de ares. Agora sai, ou delicia-te com a nova vista do apartamento. Eu, se fosse a ti, escrevia. Deixa que este calor húmido tome conta de ti. Escuta os sons que aqui habitam, observa a luz intensa, inebriante, alaranjada, quente.
O tempo parou, deixou de passar por aqui. Alguns habitantes estão junto ao rio, a receber o novo dia. Dizem que as noites, por aqui, não são feitas para dormir. Entretêm-se a contemplar bailados de fumo nas margens do rio, por onde navegam velhas barcaças ao ritmo dos braços castanhos dos remadores. O nevoeiro envolve-os, e parte da cidade desaparece debaixo do manto espesso que a cobre.
- O que esperas alcançar com este teu truque de ilusionismo?
Rui está inquieto, nervoso.
O mundo e as suas regras, escolheram este dia para se modificarem.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

O UNIVERSO É UM LOCAL VIOLENTO


Os congressos são uma chatice, e dão um trabalho dos diabos. É uma canseira, a que se soma este surto que não deixa ninguém parado. Rogério não tem tempo para nada. Esquece-se das refeições, almoça dois cigarros para abanar a rotina, depois de um café, e quase não vê os miúdos. Madalena, quando chega janeiro, aflora de mansinho a data que ele sempre esquece. Este ano são quinze anos de casados. Para onde foram, como desapareceram tão rapidamente? Uma merda, é o que é! Sempre sonhou ser astronauta, ou então engenheiro naval. A família dizia que o menino tinha de ser médico, e só ficou satisfeita quando o filho mais novo do doutor Sepúlveda acabou por fazer-lhe a vontade. Antes dele, torraram da mesma forma a paciência as dois irmãos. Alexandre, o mais velho, fugiu para a Venezuela no início dos anos noventa, e a coisa ainda hoje não está bem esclarecida entre ele e os pais, com quem mantém contactos furtuitos duas ou três vezes por ano. O pior foi o Zé Paulo, que acabou por se revelar o mais fraco e permissivo dos três, até que a corda explodiu de maneira cruel.
Rogério recorda vezes demais os episódios tristes que quase levaram o irmão à loucura. - O universo é um local violento. – dizia o Zé Paulo. – Somos seres conscientes mas não entendemos o esquema que nos rege, e a sua complexidade. Teorias, fórmulas, milhares de milhões de estrelas observáveis, e é nas árvores e no céu que, segundo ele, se encontram encriptados os ritmos matemáticos com infinita precisão. O caos e a irregularidade deram-nos a existência e moldaram-nos conforme somos. As leis que tudo comandam não são assim tão engenhosas. – insistia. - Esta afinação delicada tem como papel encobrir o que, na realidade, importa. Uma obra vastíssima, um número incompreensível de universos paralelos, impossíveis de decifrar ou compreender, encontram-se algures colados a esta outra obra, ligados apenas pelo cálculo matemático da absurda e improvável hipótese estatística. Foi fácil gerar uma multitude de universos, se um só foi assim criado, e a teoria final acabará por nos levar até ao mais profundo dos níveis de conhecimento. – repetia vezes sem conta, para, no fim, me questionar. - Quantas são as dimensões invisíveis de quem somos, do que somos, e de tudo aquilo que nos rodeia?
José Paulo dizia-se capaz de conseguir detetar as mais pequenas variações das dimensões de todos os universos. O pior é que, para o fazer, para decifrar as suas variações, para sentir todas essas vibrações, despia-se e caminhava nu pela “superfície” do nosso universo, fisicamente inacessível aos restantes. Aproximava-se e deixava-se “arrastar” para essas outras dimensões, como tantas vezes lhes chamava. Numa dessas viagens, caminhou nu até ao quarto dos pais, apertou o pescoço de Sepúlveda e quase o matou.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

HELEN



O comboio avança paralelo ao rio. Isilda escolheu a mesma roupa de ontem, o mesmo estilo, a mesma carteira, os mesmos óculos, os mesmos anéis e pulseiras de sempre, o mesmo penteado, o mesmo lenço, os mesmos sapatos, a mesma invisibilidade, a mesma caixa de medicamentos, as mesmas desilusões, o mesmo toque de perfume, o mesmo ar sério, o mesmo olhar afiado, a mesma frieza. A jovem rapariga muda de lugar, coloca-se à sua frente, escolhe um novo cardápio musical, enfrenta o olhar gelado de Isilda com um sorriso quase angelical, enquanto aumenta o volume do que escuta. Lá fora chove, e a vidraça suja da carruagem ganha vida. As gotas caem ao som de Sakamoto. Ao seu lado senta-se um jovem que lhe sorri. Helen refugia-se no semblante carregado de Isilda, onde nada se move, onde as marcas invisíveis do tempo lhe desenharam esta penumbra onde se refugia. A jovem pianista lê a pauta nas gotas que vão dançando no vidro, notas que saltam à vista e lhe trazem outras melodias, outras notas que bailam num piano que toca sozinho como no filme. As teclas brancas e pretas são a sua vida. A música, a sua paixão, os sentidos sempre alerta, desde que acorda até que se deita. O amor nunca acaba, a vida nunca acaba. Procura no tempo, nas pessoas, a marca ímpar para a melodia que deseja compor. A cidade que escolheu para viver tem uma luz única, e um povo misteriosamente acolhedor. Sentiu-se em casa desde o primeiro ano que para cá veio estudar, e todos os dias se sente inspirada. A irlandesa aprecia o sol, a praia, as gentes, a vida da capital, as paisagens junto ao Guincho. Ao calor dos sorrisos, extrai os temperos necessários à criação. Dedilha a música que lê na vidraça do comboio, nas rugas de Isilda, no sorriso atrevido do rapaz, nas pinturas espalhadas pelas paredes que passam apressadas, no tempo parado, espalhado por todo o lado, um passo sempre mais próximo da obra que pretende iniciar. Para Helen, hoje é dia de Guincho, de mar, de passeio salgado, e logo prepara-se para mais uma noite nos braços de quem ainda não conheceu a alma, só o corpo. O amor, sempre o amor, necessário para a construção da obra, dos sons, dos ritmos da balada que irá apresentar. Não receia nada do que vê, não receia mais corações partidos, não receia deixar de ter quem a escute, nem quem a ame de verdade. Foi aprendendo a deixar-se levar pelo vento, pela música, pelas palavras da cidade e dos que a escutam. Os silêncios também contam, os corpos consolados, o quarto vazio, partido em pedaços onde antes existiu amor, e agora só existe Helen, a compositora. Esta é a cidade escolhida pela jovem pianista irlandesa para se dar a conhecer ao mundo.

sábado, 19 de janeiro de 2013

O MERCADINHO


Está a chover. A cidade foi apanhada desprevenida. Foi sem aviso, pois o dia amanheceu azul. As pessoas correm para os abrigos mais próximos. Um corrupio de gente faz-se aos cafés, ao metro, às paragens de autocarro, às lojas.
- Devia chover assim mais vezes, ó Manel, quem nos cá dera esta clientela todos os dias! – alerta Josefa sorridente. O mercadinho encheu-se na entrada, pois a chuva não dá tréguas a quem segue nos passeios. O toldo aberto serve de chapéu-de-chuva aos que ali se resguardam, mas a fruta permanece estendida nas caixas, junto às hortaliças, cenouras, nabos e alfaces. A Dona Josefa avisa que no outro lado da loja também servem cafés e bolinhos. Tem cadeiras, e três mesas que servem para aquecer o vício enquanto a chuva não passa.
- Olha aí Manel, quatro bicas escaldadas, duas cheias, um descafeinado, e um Ucal morno de chocolate. Rápido rapaz, que hoje saiu-nos a sorte grande. A senhora também deseja um croissant simples e um com fiambre. É para o menino? Então deixe estar que eu vou cortar o fiambre num instante, bem fininho. Não foi meu querido, foi isso que pediste à mamã, fiambre bem fininho no croissant?
- Muito obrigado! Vês Rodrigo, como a Dona Josefa é simpática. Esta chuva é que não vem nada a calhar. Ele acordou febril e com tosse. Vamos ao centro de saúde. O dia hoje quis estar contra nós. Quem diria que ia chover.
Josefa corta o croissant e o fiambre para o menino, enquanto coloca a garrafa de leite de chocolate, um copo de galão, o outro croissant e a bica escaldada da Rita, num tabuleiro redondo.
- Manel, são mais duas bicas, e um galão. Anda lá rapaz, despacha o serviço enquanto chove…
Um vendaval súbito assusta quem passa na rua, e o pequeno mercadinho da rua enche-se com ainda mais gente.
- Quem nos cá dera mais dias assim, senhora Rita, quem nos cá dera…
Os olhos do Rodrigo estão vidrados. A sua bebida favorita vai fazê-lo sentir-se melhor, a par do sorriso da mãe.
- Não te preocupes, já me sinto melhor mamã. E já quase não tenho tosse.
Rita volta a colocar a mão na testa quente do filho.
- Não podemos demorar muito tempo. O pior é esta maldita chuva de que ninguém estava à espera. E logo hoje o teu pai tinha de sair mais cedo. É sempre assim. Estas coisas acontecem quase sempre na pior altura.

Corri desde o jardim até um mercadinho da rua onde existe um pequeno café. A chuva deixou-me encharcado como um pinto. Peço uma meia-de-leite bem quente. O passeio não me inspirou. Olho as pessoas que aqui se encontram. Pergunto-me que histórias têm para contar. Histórias vulgares de gente vulgar, muitas vezes são tudo menos vulgares. São surpreendentes os casos de vida que carregam, e alguns dariam romances extraordinários. Tenho de ser capaz de inventar uma história, até ao final da primavera, que seja capaz de prender os leitores. E como prender o leitor? Não posso, nem me quero preocupar com esse detalhe, mas o Lopes foi bem claro na última reunião que tivemos. - Procura escrever uma obra com uma componente misteriosa, cenários atípicos, maior dose de humor e, sobretudo, que seja bem provocante. - Tal e qual, como se me estivesse a encomendar um prato e me desse os ingredientes. Estou tramado! E no último romance os elementos foram o terror, uma vila pacata, e muita pressão psicológica. Sobre intensa pressão psicológica tenho eu andado só por lhe aturar as parvoeiras. – Olha que hoje em dia os nossos leitores são bem mais exigentes do que antes, e pretendem textos que sejam leves, inteligentes e criativos. – Mas o que ele me disse com aquelas palavras foi: - Faz um romance que venda mais do que os últimos dois, senão, pensa noutra editora! Resumindo, tenho de criar uma obra que seja leve, criativa, misteriosa, com uma equilibrada dose de humor, passada em cenários excecionais, provocante e muito inteligente.
- Posso dar a minha opinião? – pergunta o companheiro indesejado. – Deixei-te meditar, ficaste a sós embrulhado nos teus pensamentos, e a única coisa que aconteceu de importante foi ter começado a chover. Deixa que te diga que esses dados que referiste sobre o que tens de escrever são muito interessantes. Um romance deve ter sexo, para ser provocante, um bom crime e uma boa dose de mistério, tal como eu te disse. Descreves algo de trágico, para criar uma intriga inteligente, com uma ou várias mortes inexplicáveis, e com muita pancadaria e humor, pois essas são coisas leves. Ser criativo já é algo que terás de ser tu a procurar. Estás a ver? Verás que acabas de escrever antes do final da primavera, como é desejo do teu agente. Vai ser fácil!
Rui ficou com vontade de matar o companheiro, mas o próprio já se tinha encarregado dessa missão.
- Eu tinha-te pedido para ficar a sós com os meus pensamentos, não foi? Mas deixa lá, tens razão. Aceito a tua opinião. Começo a pensar que, se calhar, podes vir a ser-me útil na construção da obra.

- Olha, meu querido! Parou de chover! A mãe vai pagar. Acaba de beber o teu leite para irmos depressa até ao centro de saúde.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

A LIÇÃO



Afonso sofre um tremendo aperto no peito. Já não sente amor pela mulher. A paixão acabou, partiu como os pássaros migram para onde o instinto lhes comanda, como as ondas, as marés, como os ventos ou a chuva que o acarinha. Desassossegados, falaram os dois com uma angústia tão forte que se sentiram insetos. Olhou para o rosto da “sua” Sofia. Já não era a mesma por quem se tinha apaixonado. Evitou uma lágrima, fustigou o peito e a voz, deixou segredos antigos iluminarem-lhe a memória. Um castigo! Não sente remorsos, nem culpa. A vida entregou-lhe outra paixão, sem vergonha nem sombra de pecados.
- Pai, é mesmo verdade que tu e a mãe se vão separar? – pergunta Tiago de playstation nas mãos. O miúdo aperta-a com força, gostava de poder comandar o pai e a mãe com aqueles botões. Fariam parte de um jogo que ele pudesse controlar.
- Já não gostam mais um do outro, pai? Foi por causa daquilo que eu fiz no outro dia?
Afonso rebenta, sente os órgãos despedaçarem-se em biliões de átomos. Deseja ser céu, uma nuvem, o vento, a matéria negra por onde as galáxias flutuam na dimensão infinita do universo.
Põe as mãos geladas nas bochechas do filho. Estão húmidas e mornas.
- Não chores, Tiago! Não tens culpa nenhuma do que se está a passar! São coisas de adultos, coisas que nem os adultos conseguem explicar. É muito importante que entendas que não tens culpa nenhuma, absolutamente nenhuma.
Sofia escutou parte da conversa e intervém, agressiva.
- Ainda aí estás? Porque é que não te foste embora? Deixa o miúdo em paz!
Tiago não para de chorar. Um rio desce-lhe a cara de criança assustada, como se o mundo tivesse acabado ali, naquele instante.
- Eu já estava de saída! – responde Afonso. – Estava mesmo de saída.
A playstation voou, furiosa, como um relâmpago abençoado, e estilhaçou o vidro da janela da sala. Desapareceu em direção ao desconhecido.
Sofia e Afonso pararam. Ficaram transformados em estátuas de sal a olhar o filho.
Tiago não desejava crescer mais depressa do que era suposto. Queria ver os pais amarem-se para sempre como nas histórias dos seus heróis.
A vida é como as árvores, como o céu, como a noite, como os ventos gelados que chegam do norte, como as monções peregrinas dos vales indianos.
A vida nem sempre é um livro com final feliz, e teve pressa em lhe ensinar esta lição.

COMPREENSÃO

   
 Como estava desinspirado, comecei a escrever acerca das vidas de gente da cidade.
- Escreve sobre a vida, sobre a vida depois da morte, sobre quem vive com medo da morte, e por isso não vive. Fala da vida de heróis que não tenham medo da morte e que tocam e abraçam as vidas dos outros. Se me orientares, posso ajudar-te como ninguém nessa tua obra.
- O que escrevi até agora são pequenos detalhes mal esboçados. Sem pensar, dei o meu nome a um dos personagens, um homem que sai de casa para o emprego, ainda de madrugada. Esse Rui é casado com a Rita, e têm um filho, o Rodrigo, com nove anos. O miúdo acordou com febre e vai ter de faltar à escola. A mulher dá-lhe a notícia, e diz que o dia vai ser para esquecer, e que não há antipiréticos, e que lhe ligará por volta das onze.
- Hum! Não me parece grande coisa para início de um romance. Não escreveste mais nada? Conta-me outro princípio.
- Susana é uma jovem professora, muito distraída, que vive sozinha num prédio da capital. O Afonso é seu colega, e tem um fraco por ela. A rapariga esqueceu-se das chaves do carro em casa, e nem sabe onde o deixou estacionado. Está atrasada, e volta para trás para as ir buscar. Tem o telemóvel quase sem bateria, mas ainda liga ao Afonso para ele lhe dar boleia. O professor vinha a conduzir, distrai-se com a chamada da Susana, e bate na traseira da viatura que seguia à sua frente. O fulano que o conduzia é empregado de mesa num restaurante da baixa que quase fechou o ano passado, e conta-lhe a vida toda naqueles minutos que esperaram pela polícia.
- Hum! Também não seduz. Essa tua historieta podia evoluir para um romance tórrido entre os dois docentes, uma paixão com contornos picantes, pornográficos. Um romance deve ter sexo, crime, uma boa dose de mistério e, de preferência, tudo antes do final do primeiro capítulo. Acrescentas  algo de trágico, uma ou várias mortes inexplicáveis, pancadaria, coisas assim desse género, estás a ver? E nada de vampiros, putos a aprender magia em colégios, ou extraterrestres. Sexo, morte, sangue e porrada com requintes de malvadez, isso é que vende!
- Não sei onde chegaremos com esta conversa. Estou com sérias dúvidas de que me possas ajudar. Preferia estar sozinho com a minha desinspiração.
- Tudo o que te disse é verdade, sabes bem que sim. E não tens outros inícios? Conta mais!
Fecho os olhos. Continuo a sentir a sua presença. Quero dar o passeio que ficou adiado desde a chegada do visitante.
- Vou sair, dar uma volta. Tu vem, ou fica, faz como quiseres. Calculo que a tua decisão não tenha em consideração a minha vontade.
- Enquanto caminhares, conta-me as histórias que eu prometo não fazer mais comentários.
Saio para a rua e caminho largos minutos sem abrir a boca. Sigo, sem rumo definido, pelo largo passeio da avenida. Subo até à rotunda e atravesso-a para o lado do jardim. Sento-me num dos bancos vazios esperançado em ter perdido a companhia.
- Se precisar de ficar sozinho com os meus pensamentos, de meditar para tentar encontrar uma fonte de inspiração, posso contar com a tua compreensão?
- Claro que sim! Basta falares comigo como agora fizeste. Diz, sem receio, aquilo que pretendes de mim.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

RECEIO



- Como te disse, comecei a escrever mas nada tem interesse. Pela primeira vez em anos, procuro um rumo e não o encontro. Um medo genuíno apoderou-se de mim, e a tua presença é um sinal preocupante. Isolei-me. Construí histórias onde gostaria de ter participado e mundos que gostaria de ter visitado. Vivo com emoção as viagens dos meus heróis, envolvo-me nelas de tal forma que me custa regressar à claustrofóbica realidade onde é suposto encontrar inspiração. Será que entendes o que quero dizer?
- A ponte é tão alta. Naquele instante entre o saltar e o ficar, tentei esvaziar as memórias, sem sucesso. Só conseguia pensar quão alta era a ponte. Os automóveis passavam, o coração destroçado, a cabeça prestes a explodir, sempre a doer, as mesmas imagens desfocadas, os mesmos pensamentos, e o gigantesco beco sem saída a esmagar-me, como sempre acontecia. Senti-me leve, saltei, e o mundo acelerou durante o voo. Ficou do tamanho de um minúsculo grão de areia, estrela única num firmamento despojado de estrelas. A pequena célula brilhante voltou a crescer, assumiu a forma de uma esfera de cristal e nela pude assistir ao que acabara de fazer. Depois, voltou a diminuir até quase desaparecer na escuridão. Não sei, ao certo, quanto tempo terá passado desde então. Aprendi a atravessar paredes, a transitar através de corpos vivos, e a voar. Posso visitar todos os lugares, se assim o desejar, e posso assistir aos acontecimentos do passado e do presente. Mas por qualquer estranha razão, dei por mim sentado nesta cadeira da tua sala. Enquanto não terminares a tua obra, serei o teu parceiro, e estarei preparado para tudo aquilo que necessitares. Assim me comandaram as vozes num evento muito estranho, e não vale a pena tentarmos encontrar explicações para estes acontecimentos.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

AUGUSTO



Augusto trabalhava de sol a sol, quase arrancava os dedos das mãos, as mãos dos braços e os braços do corpo com tanto esforço. A terra não se compadecia com agruras, cansaços ou doenças, precisava sempre de quem a amanhasse. Tinha de se sentir arejada e limpa. Depois era preciso gradear tudo para espalhar as sementes do trigo e do centeio, andar com sacos de mais de quinze quilos às costas, talhar com os olhos uma courela até que todo o terreno estivesse coberto. Lavrar bem a terra, duas, três vezes, a intervalos regulares, comandar a junta de bois, com o arado, rego a rego ir enterrando as sementes e ter o cuidado de preparar linhas de água, não fossem as chuvas dar cabo do trabalho. Depois das sementeiras seguia-se a monda. Ter um bom controlo dos animais, e firmeza a comandar a rabiça do arado, não fosse este arrancar o que não devia, e depois com um sacho, sachar, e com a faca, cortar. Ele e os irmãos andavam por ali a aprender, com o pai, a aproveitar todos os pedaços do terreno, e de enxada na mão cavavam as marradas, e o milagre lá acontecia. Ainda hoje lhe é difícil entender como se esventravam aquelas terras e delas se retirava a sobrevivência, com ímpar honraria, e todos, mal ou bem, lá se acabaram por criar.
Voar é bom para os pássaros, e viajar de avião é coisa do diabo. Um medo, um nervoso miudinho quase o matava durante o regresso. Custou-lhe respirar, nunca se sentira assim. O mundo desaparecia, e regressava, em imagens retorcidas, mas o orgulho impediu-o de dar conta disso e quase desfaleceu antes da aterragem. Para lá, não se recorda da viagem. Desligou essa memória, tal o pesadelo da experiência. Estava mais alto que as nuvens, mais alto que o monte, a montanha e as serras. Coisa alguma devia poder passear por ali, só Deus e o Demónio, mais ninguém. Mas tinha de ser, este ano assim teve de acontecer. De Paris, daqueles arredores cheio de silêncios, de vidas sofridas, de sonhos por concretizar, regressa com a alma ainda mais cansada.

NÃO ESCREVER É O MESMO QUE ESTAR MORTO




Estou sozinho, envolvido com esta angústia, esta terrível falta de inspiração. Nenhuma técnica me salva. Escrever, sempre, todos os dias. Mas como, e para quê se nada do que escrevo tem interesse. Escuto as paredes da sala, a luz que entra pela janela, as vozes dos que passam lá fora, o ruído, repetitivo, do ponteiro do relógio merdoso que me enlouquece cada dia mais um pouco. Olho as nuvens passageiras, os tectos dos edifícios, as paredes dos prédios que guardam histórias em cada centímetro quadrado. Escuto os ruídos, todos os ruídos, as conversas idiotas e banais de todos os dias, e nada. Pego num, em dois, em três livros da estante para tentar encontrar caminhos, um rumo, uma linha, um raciocínio. Um muro espesso, alto e cinzento barra-me as palavras. Quanto mais procuro, mais se afastam, como os destinos dos sonhos, que fogem a cada passo. Detesto a planificação inicial, montar locais, antecipar personagens, rumos ou sinopses do que irá acontecer. Imaginava, como nas histórias anteriores, que alguém me iria contar esta que agora procuro iniciar. Só que isso não está a acontecer. Desprezo por completo a planificação, qualquer tipo de planificação. Este ano novo chegou seco, um deserto, areias milenares toldam-me a inspiração, impedem-me de criar. Tentei correr, caminhar, dar longos passeios na tentativa de encontrar um ponto de equilíbrio, uma centelha que me devolvesse a euforia da criatividade, que me devolvesse o seu movimento. Escrever é a mais difícil das tarefas, e é a minha forma de vida. Em breve terei notícias das palavras, pode ser que resolvam regressar. Ninguém vai escrever por mim, mas estou esperançado que os meus contadores de histórias não me tenham abandonado de vez. Sento-me, escrevo, e nada acontece. Puxaria os cabelos da puta da musa se soubesse onde a vadia se esconde. Batia-me à porta todas as manhãs, quase sempre à mesma hora. Deixou de saber o número, a rua onde vivo, a cidade em que habito, e tomou a decisão consciente de abandonar-me. Sou um profissional de trampa que nem sabe escrever. Não sei sobre o que escrever, e a única razão porque escrevo, é porque tenho de comer.
- Uma bela merda de discurso, sim senhor. Deve ter sido alguma coisa que bebeste hoje ao pequeno-almoço. Então só escreves porque tens de comer? Se é essa a razão que te faz correr, pensa em arranjar outra profissão. Que grande parvo! Gostava de saber o que me terá trazido até aqui. Dizem-me que tenho de te ajudar a construir a obra. Não sei como. Aliás, esta coisa de estar morto tem muito o que se lhe diga. Preciso de me conformar com a ideia. Passaram poucos minutos. Ainda estou a digerir a informação.
O morto terá vindo para ficar? E continua a ler-me os pensamentos. A sua presença é forte. O que terá levado este homem a matar-se desta maneira?
- Boa pergunta, ó poeta, muito boa pergunta. Vais ver que, com essa inteligência, não chegas a velho.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

NÃO CONSIGO ESCREVER


Não consigo escrever.
As palavras custam a sair.
Desenho pedaços inverosímeis de silêncios, relatos perdidos de sonhos, fragmentos, reflexos distorcidos e sem sentido.
A folha em branco é minha inimiga. Aguardo um rumo, uma orientação, um caminho, guias a quem possa obedecer. Deixei de escutar os contadores de histórias que em mim se escondem. Talvez amanhã voltem a acordar.
A luz da manhã afaga as colinas.
Tanta solidão, tantos sonhos, e receio que este dia termine sem o canto dos meus pássaros.
A cidade roubou-me as palavras. Domina, imperial, o rumo de todas coisas.
Que poeta sou, se nada do que escrevo me pertence, se nada do que conto é real? Perdi-me no denso nevoeiro das palavras, como um menino inocente que se deixa enganar.
Eis a folha branca, à minha frente, e não consigo escrever.
As vozes que me aqueciam a esperança, transformadas em silêncio.
Onde encontrarei as histórias que tenho de contar?
Como construirei mais um romance?
As estratégias mudaram. Os contadores de histórias abandonaram-me, e os prazos são muito apertados.
Eis-me perante o horror da folha vazia, sem paisagem, sem personagens, sem verbo ou opinião.
Olho pela janela da sala. A cidade está igual a ontem, tão igual ao ano que terminou, tão igual. Se ela falasse, se ela me encontrasse passageiros para a nova viagem, mas tem outros assuntos com que se preocupar.
Tenho de escrever. Quem sabe se, de repente, não me surge a inspiração.
Este vazio incomoda bem mais que todos os silêncios. E se eu não mais conseguir escrever? Vou abrir a janela, talvez as vozes da rua me possam inspirar.
Conversas banais, olhares inquietos e ausentes. Um país à deriva.
Se escrever sobre o que escuto, descrevo o desalento, a falta de esperança, a desilusão e o cansaço. Relatos de nuvens sombrias e carregadas.
Procuro um início, um princípio para a obra, uma frase que me ajude a começar. As palavras, teimosas, não acordam.
Vou sair. É melhor adiar por mais um dia o início do romance. Logo à tardinha telefono para a editora e regateio outras datas.
Onde estarão as minhas vozes? Resolveram tirar férias na pior altura.

- Não estavas atento às notícias! Tinhas o televisor no silêncio quando a jornalista referiu a minha morte. Foi há pouco. Olha que só agora as sirenes chegaram à margem do Tejo. Assim ser-te-á difícil escrever uma crónica, quanto mais um romance. Tens de estar em permanente estado de alerta, tens de aprender a escutar o pulsar do universo, possuir a visão atenta do falcão, e estar preparado para percorrer caminhos imprevistos. Posso contar-te a história. É tão simples. Eu caminhava pela ponte e ninguém se preocupou. O pessoal anda ocupado com a vida, cada qual sabe de si e Deus de todos, não é assim que se diz? Deves ser um dos raros escritores no mundo a quem um morto se oferece para contar histórias. Se eu tivesse sabido da tua falta de inspiração, talvez não me tivesse atirado da ponte. Um anúncio teria sido suficiente. – escritor desinspirado e desanimado procura um contador de histórias para um possível romance ( dos que acabam nas livrarias com capas atraentes, e não dos que fazem o peito arder de paixão ). – Qualquer coisa deste género. Um aviso assim ter-me-ia feito pensar antes de saltar. Como vês, tens matéria suficiente para o teu início. O simples facto de me escutares é motivo suficiente para deixares de ter folhas em branco. O que achas da minha proposta? Não adies mais o princípio da obra. E não precisas de me fazeres perguntas, basta um aceno com a cabeça, ou pegares na caneta. Qualquer um desses sinais será suficiente para mim.

Volto para dentro de casa, desejando não ter enlouquecido.
Sento-me, antes que as pernas fraquejem de vez.
Com as mãos trementes, pego no telemóvel e ligo ao Lopes.
- Lopes?! Não vais acreditar no que me está a acontecer. Um gajo que se atirou da ponte abaixo está aqui comigo para me ajudar a escrever!
- RUI! Grande Rui! Até que enfim! Eu não te tinha dito que, mais tarde ou mais cedo, acabarias por encontrar inspiração? Não percas tempo, aproveita! Queremos a obra concluída antes do início do Verão, já sabes como é. Agora vou ter de desligar, estou a conduzir. Só atendi porque eras tu. Um abraço…
Quero ligar a televisão para confirmar a veracidade das palavras do meu “aliado”, mas receio que as notícias lhe deem razão.
- A tua casa tem vistas espetaculares. Muitos artistas matariam para ter uma musa assim. É verdadeiramente magnífica a vista aqui do alto.

A última coisa que esperaria, era receber a visita de uma alma do outro mundo. Esta é a evidência que comprova a loucura. Escuto a voz de um recém-falecido, sinto a presença do fantasma, apesar de não o ver. Porque será que veio a minha casa?
- Belas vistas, sim senhor. As coisas começam agora a fazer algum sentido. Então é isto que acontece quando morremos!
- Isto, mas isto o quê? E quem és tu? Porque te escuto e sinto com tanta facilidade? O que pretendes de mim?
Louco, fiquei doido! Não só ouço vozes como falo com um dos seus donos. Maldita profissão a minha. Tenho de conseguir inventar argumentos, construir histórias, enredos, peripécias, personagens, e manter a originalidade e criatividade sempre acesas. Um cansaço tremendo! E a editora a encurtar os prazos, sempre a pressionar, com as últimas semanas passadas em branco, sem uma ideia, a darem cabo de mim.
- Estás a falar comigo ou estás só a meditar? Não te incomodes com a tua aparente falta de juízo. Anda por aí muita gente como tu, que também nos escuta, só não dizem nada com receio de passarem por parvos.
O falecido tem razão. Consegue ler os pensamentos, o que é deveras preocupante.
- Não te preocupes com isso, eu não conto nada a ninguém. Palavra de defunto! E depois, quem é que quer saber o que tu pensas? Quem é que se importa com aquilo que te incomoda? Olha, acabei de tocar num dos teus pontos fracos, não é verdade? Deixa lá! Esse também foi um dos que me fez voar até ao Tejo. Hoje em dia, são poucos os que se preocupam com alguém, acredita no que te digo. Um anónimo a passear pela ponte 25 de abril, em plena hora de ponta, e ninguém quis saber o que é que eu estava por ali a fazer. Parei, tentei ganhar coragem durante uma porrada de tempo, a olhar para o vazio, à espera. Nada! Nenhuma lembrança, nenhum sonho, nenhuma palavra, nenhum grito, nenhuma mão, nenhuma flor, nenhuma merda de carro parou, nenhum gigante do tamanho do Cristo albatroz me veio resgatar. Esperei! Estive ali parado, como uma bandeira desfraldada, e cansei-me de esperar. Deixei-me cair de costas a olhar o céu.
- E desde quando a morte é uma resposta? Não te conheço, não me conheces. Continuo sem saber o que estás aqui a fazer.
- Vim ajudar-te na obra! Precisas de uma história, estás sem inspiração, e com prazos apertados para a conclusão da empreitada. Tu é que me fizeste vir até aqui.
Estarei a imaginar coisas? Será que esta situação bizarra me veio esclarecer, enfim, quem foram os autores de todas as minhas histórias? O meu processo criativo não tem nada de misterioso. Sempre o afirmei, nunca o escondi. Sento-me, concentro-me, e escuto as vozes que me contam as histórias. Mas nunca, como agora, senti a presença forte de um dos seus donos.
- Não te vejo, não te consigo ver, mas sei onde estás sentado a observar-me. É estranho saber que me observas e escutas com tão pouco tempo passado após a tua desventura.
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