quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

ESTRANHOS



Estranhos, passeamos uns pelos outros, por entre outros, mas sempre como estranhos.
- Joel, olha só para a variedade de raças, de credos, de nacionalidades que se cruzam num só dia no aeroporto. Milhares de penteados, de rostos, de estilos de roupa, de línguas, de destinos, todos tão diferentes. Houve uma altura em que pensei trabalhar como hospedeira na TAP. Gostava de poder viajar por esse mundo fora, conhecer o maior número de países e de culturas. Ainda hoje me lembro de como foi fascinante o dia em que atravessei a fronteira de Vilar Formoso, com os teus avós e a tua mãe, pela primeira vez. Espanha! Vê lá tu bem! Tão longe… mas eu fiquei impressionada. Devia ter cinco ou seis anos. E depois, quando chegámos a França, percebi que o nosso planeta era gigantesco. Foi como se tivesse alcançado uma galáxia distante povoada por extraterrestres de chapéus bizarros, e que falavam a mais estranha das línguas. O teu avô nunca tinha andado de avião, e tem um medo de morte só de pensar neles. Mas, pelos vistos, lá o conseguiu superar.
O sobrinho mal ouviu as palavras da tia. Procurava pelo avô no meio dos passageiros recém-chegados. Tinham aterrado três voos quase ao mesmo tempo, e quinze minutos depois chegou um avião do Brasil e outro proveniente de Harare.
Sul-americanos, africanos e europeus vão saindo e recebem abraços, carinhos e saudações de quem veio recebê-los.
- O teu avô, até hoje, nada me disse acerca dos motivos desta viagem.
Joel sente nervosismo nas palavras da tia Filipa, e resolve responder com uma mentira:
- Não? A mim, entregou-me um envelope com a prenda, e disse que este ano tinha de ir até Paris ter com o tio António. Foi só isso, e depois, abraçou-me com mais força do que é habitual.
Seria desleal se Joel quebrasse o voto de silêncio que o avô lhe pediu. O tio António meteu-se em grandes sarilhos lá por França, e pediu encarecidamente a ajuda do avô Augusto. Não quis que a irmã soubesse de nada. Complicações de dinheiros, dívidas por saldar. O negócio tem andado a correr mal, e agora está a passar uma fase de grandes dificuldades. Ao neto, descansou-o, disse-lhe que para o curso nada lhe faltaria. Augusto sempre foi uma pessoa preocupada com os seus, por isso, anda sempre com um ar soturno, e é senhor de poucas palavras. Joel gostava de poder ter mais tempo para conversar com o avô, para lhe “sacar” histórias de outros tempos.
- Olha, Joel! É o avô que vem ali. Ainda não nos viu! PAI! PAI!!!
Filipa passou o Natal muito tensa, e não apenas por causa da súbita viagem do pai. Os últimos meses da sua vida têm sido um turbilhão de emoções. O telemóvel vibra, teimoso, dentro da mala, enquanto o pai desce a pequena rampa com o carrinho metálico da bagagem. Um forte abraço ao neto, primeiro, um beijo no rosto de Filipa, a seguir.
As sete chamadas não atendidas de Afonso iluminam a azul o visor do telefone de Filipa.
- O António vai regressar, definitivamente, no início do Verão! – declara Augusto, antes que alguém começasse a conversar! 

A chave descansava no sofá, e o carregador estava na mesa do hall de entrada do apartamento. Susana só tem de recordar onde estacionou o carro se quiser chegar a tempo da primeira aula da manhã. Os alunos já sabem que a “stora” Susana tem dificuldades em chegar a horas, e que muitas vezes corre até à sala para abrir a porta ao segundo toque da campainha.
- Hoje, o “stor” Afonso vai faltar! A funcionária já veio avisar que vamos ter aula de substituição. – grita o Francisco para os colegas que esperavam novidades junto da sala de aula.
- Vamos jogar para o campo antes que chegue outro professor. – gritam os rapazes da turma, deixando as meninas entregues à lotaria do feriado.

- Querias viver ou morrer? Se ficasses paralisado e não pudesses mexer um único músculo do teu corpo, o que desejarias? Que te mantivessem vivo ligado a uma máquina, ou que te deixassem seguir viagem? Os médicos retiravam-te o coágulo da cabeça a tempo, mas não sabiam como irias responder à operação. Talvez o resultado não fosse tão mau como no início se pensava. Davam-te dez por cento de probabilidades de tudo voltar a ser como antes do acidente. A tua família está derrotada na sala de espera a aguardar notícias. Os órgãos vitais do corpo são escravos do cérebro. É ele o ditador, e não sabes o que te acontecerá. Difícil, não é? Se isso te acontecesse, se fosses apanhado pelo destino numa situação tão terrível como esta, preferias não ter sobrevivido? E se nunca mais pudesses mergulhar nas águas frescas do oceano, nunca mais pudesses amar, cheirar, sentir, respirar, ver as coisas com clareza e nitidez? E se ficasses paralisado para sempre, preso num corpo sem movimento, e nada mais houvesse a fazer, a não ser escutar as palavras dos especialistas? A tua viagem só agora ia começar. As opções a acabar, a respiração torna-se muito difícil. O que farias? Querias viver ou morrer? Querias que te conseguissem compreender até te fazerem a pergunta final? Ficarias ligado à máquina mais de seis meses numa unidade de cuidados intensivos. O aparelho respiraria por ti, mas as memórias ainda seriam as tuas. Seriam elas a darem-te as informações. Não sentirias dores, só conseguirias mexer os olhos. Recordarias a sensação de frio provocada pela neve acabada de cair e relembrarias as coisas simples que te fizeram feliz. Então? O que farias se o destino te pregasse assim uma partida?

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