As
personagens do escritor regressam para o interior do invólucro, onde as
repensa, onde conversam umas com as outras, mesmo não se conhecendo. Rui volta
a refugiar-se num mundo imaginário que só ele conhece. Os universos existem em
jarros transparentes, com passagens efémeras entre si, de portas invisíveis, e
janelas cerradas. O cosmos deixou de fazer sentido. Zé Paulo tinha razão. Os
universos são locais violentos, com toda a informação refletida nos seus
horizontes mais longínquos, buracos negros semelhantes ao início de todos eles,
universos que habitam nos seus interiores, universos comunicantes, onde
realidade e sonho coexistem separados por membranas invisíveis às máquinas
sofisticadas que o homem construiu.
Correr
e escrever, sem dizer adeus, só até já. É sempre primavera quando encontramos as
mensagens escondidas em cada uma das histórias. Rui, tenta encontrar a nova
obra através do denso nevoeiro deste difícil recomeçar, sem escutar as vozes
amigas, suas companheiras de sempre, e sem os pesadelos inovadores que sempre o
ajudaram nas suas criações.
-
Nascemos para morrer! Nascemos para morrer, e aprendemos, relembrando o que se
perdeu nas memórias distantes de quem já fomos, como todos os universos
existentes. As calças já não vão à máquina quase há dois meses. Trago pedaços
do ano passado agarrados à ganga. Gosto de trazer fragmentos de coisas passadas
colados à roupa, bocados de dias, de semanas, com viagens e viajantes que nunca
conheci. Nesta outra cidade, as pessoas andam mais libertas de razão. O
companheiro desapareceu, entendeu deixar-me sozinho com esta nova paisagem.
Ainda não sei quem é, ou quem foi, melhor dizendo. Nem ele sabe porque me veio
visitar. Não sabe nada, afinal, é isto que nos acontece quando morremos. A
mesma dúvida surge quando compreendemos que estamos vivos a primeira vez. Então
isto é que é estar vivo? Então isto é que é estar morto? Mas, o que é isto
afinal? Estamos ali, estávamos ali, e depois, tudo passou num repente, e já lá
não estamos, já estamos aqui, ou num outro lugar, num outro tempo, e não somos
quem éramos, mas ainda somos, antes de deixarmos de existir. Esta neblina morna
levou-me grande parte das palavras escritas. Não que elas fossem muito
importantes, ainda nada de sério nelas tinha acontecido. Vou sair. Regressei a
casa para ter esta surpresa. Uma prenda! Que cidade é esta, que rio será
aquele, tão largo, tão imponente? Não me respondes? Trouxeste-me até aqui com o
firme propósito de me sacudires a inspiração. Claro que sim, foi isso mesmo. Mostras-me
os teus novos truques de alma nómada para me impressionar.
Quando
jovem, Isilda passava as segundas-feiras de manhã na igreja do bairro, a ajudar
na limpeza da sacristia. O padre Anacleto agradecia. Às terças-feiras servia
refeições aos idosos nos lares, e ajudava, sempre que podia, nas entregas e
visitas ao domicílio que eram organizadas pela paróquia. O padre Anacleto
agradecia. Às quartas-feiras promovia reuniões com voluntários, na diocese,
para organizar atividades de apoio às crianças e jovens desfavorecidos. O padre
Anacleto agradecia. Às quintas-feiras, de quinze em quinze dias, dava
aconselhamento a jovens acerca de planeamento familiar com mais duas caridosas
voluntárias. O padre Anacleto agradecia. Às sextas-feiras, ajudava a recolher e
a separar roupa usada que era oferecida pelos fiéis devotos, com outras duas
caridosas voluntárias, na igreja do bairro. O padre Anacleto agradecia. Ao sábado,
visitava a casa do prior, homem lindo, que nunca devia ter seguido a vocação, e
que com ela se satisfazia, enquanto Isilda gemia, gritava e chorava de prazer. O
padre Anacleto agradecia. Depois lavava-a, penteava, acariciava-a por longos minutos,
como se assim ficasse esquecido o pecado vergonhoso que o obrigou a ser um escravo
da impureza. - Que o senhor me faça louco, cego e delirante, que me castigue, mas
que não me leve a tua pele macia e olhos doces, o teu hálito frutado, a tua candura.
– repetia, vezes sem fim, enquanto a secava. Ao domingo, Isilda descansava, e o
padre Anacleto agradecia.
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