quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

NÃO CONSIGO ESCREVER


Não consigo escrever.
As palavras custam a sair.
Desenho pedaços inverosímeis de silêncios, relatos perdidos de sonhos, fragmentos, reflexos distorcidos e sem sentido.
A folha em branco é minha inimiga. Aguardo um rumo, uma orientação, um caminho, guias a quem possa obedecer. Deixei de escutar os contadores de histórias que em mim se escondem. Talvez amanhã voltem a acordar.
A luz da manhã afaga as colinas.
Tanta solidão, tantos sonhos, e receio que este dia termine sem o canto dos meus pássaros.
A cidade roubou-me as palavras. Domina, imperial, o rumo de todas coisas.
Que poeta sou, se nada do que escrevo me pertence, se nada do que conto é real? Perdi-me no denso nevoeiro das palavras, como um menino inocente que se deixa enganar.
Eis a folha branca, à minha frente, e não consigo escrever.
As vozes que me aqueciam a esperança, transformadas em silêncio.
Onde encontrarei as histórias que tenho de contar?
Como construirei mais um romance?
As estratégias mudaram. Os contadores de histórias abandonaram-me, e os prazos são muito apertados.
Eis-me perante o horror da folha vazia, sem paisagem, sem personagens, sem verbo ou opinião.
Olho pela janela da sala. A cidade está igual a ontem, tão igual ao ano que terminou, tão igual. Se ela falasse, se ela me encontrasse passageiros para a nova viagem, mas tem outros assuntos com que se preocupar.
Tenho de escrever. Quem sabe se, de repente, não me surge a inspiração.
Este vazio incomoda bem mais que todos os silêncios. E se eu não mais conseguir escrever? Vou abrir a janela, talvez as vozes da rua me possam inspirar.
Conversas banais, olhares inquietos e ausentes. Um país à deriva.
Se escrever sobre o que escuto, descrevo o desalento, a falta de esperança, a desilusão e o cansaço. Relatos de nuvens sombrias e carregadas.
Procuro um início, um princípio para a obra, uma frase que me ajude a começar. As palavras, teimosas, não acordam.
Vou sair. É melhor adiar por mais um dia o início do romance. Logo à tardinha telefono para a editora e regateio outras datas.
Onde estarão as minhas vozes? Resolveram tirar férias na pior altura.

- Não estavas atento às notícias! Tinhas o televisor no silêncio quando a jornalista referiu a minha morte. Foi há pouco. Olha que só agora as sirenes chegaram à margem do Tejo. Assim ser-te-á difícil escrever uma crónica, quanto mais um romance. Tens de estar em permanente estado de alerta, tens de aprender a escutar o pulsar do universo, possuir a visão atenta do falcão, e estar preparado para percorrer caminhos imprevistos. Posso contar-te a história. É tão simples. Eu caminhava pela ponte e ninguém se preocupou. O pessoal anda ocupado com a vida, cada qual sabe de si e Deus de todos, não é assim que se diz? Deves ser um dos raros escritores no mundo a quem um morto se oferece para contar histórias. Se eu tivesse sabido da tua falta de inspiração, talvez não me tivesse atirado da ponte. Um anúncio teria sido suficiente. – escritor desinspirado e desanimado procura um contador de histórias para um possível romance ( dos que acabam nas livrarias com capas atraentes, e não dos que fazem o peito arder de paixão ). – Qualquer coisa deste género. Um aviso assim ter-me-ia feito pensar antes de saltar. Como vês, tens matéria suficiente para o teu início. O simples facto de me escutares é motivo suficiente para deixares de ter folhas em branco. O que achas da minha proposta? Não adies mais o princípio da obra. E não precisas de me fazeres perguntas, basta um aceno com a cabeça, ou pegares na caneta. Qualquer um desses sinais será suficiente para mim.

Volto para dentro de casa, desejando não ter enlouquecido.
Sento-me, antes que as pernas fraquejem de vez.
Com as mãos trementes, pego no telemóvel e ligo ao Lopes.
- Lopes?! Não vais acreditar no que me está a acontecer. Um gajo que se atirou da ponte abaixo está aqui comigo para me ajudar a escrever!
- RUI! Grande Rui! Até que enfim! Eu não te tinha dito que, mais tarde ou mais cedo, acabarias por encontrar inspiração? Não percas tempo, aproveita! Queremos a obra concluída antes do início do Verão, já sabes como é. Agora vou ter de desligar, estou a conduzir. Só atendi porque eras tu. Um abraço…
Quero ligar a televisão para confirmar a veracidade das palavras do meu “aliado”, mas receio que as notícias lhe deem razão.
- A tua casa tem vistas espetaculares. Muitos artistas matariam para ter uma musa assim. É verdadeiramente magnífica a vista aqui do alto.

A última coisa que esperaria, era receber a visita de uma alma do outro mundo. Esta é a evidência que comprova a loucura. Escuto a voz de um recém-falecido, sinto a presença do fantasma, apesar de não o ver. Porque será que veio a minha casa?
- Belas vistas, sim senhor. As coisas começam agora a fazer algum sentido. Então é isto que acontece quando morremos!
- Isto, mas isto o quê? E quem és tu? Porque te escuto e sinto com tanta facilidade? O que pretendes de mim?
Louco, fiquei doido! Não só ouço vozes como falo com um dos seus donos. Maldita profissão a minha. Tenho de conseguir inventar argumentos, construir histórias, enredos, peripécias, personagens, e manter a originalidade e criatividade sempre acesas. Um cansaço tremendo! E a editora a encurtar os prazos, sempre a pressionar, com as últimas semanas passadas em branco, sem uma ideia, a darem cabo de mim.
- Estás a falar comigo ou estás só a meditar? Não te incomodes com a tua aparente falta de juízo. Anda por aí muita gente como tu, que também nos escuta, só não dizem nada com receio de passarem por parvos.
O falecido tem razão. Consegue ler os pensamentos, o que é deveras preocupante.
- Não te preocupes com isso, eu não conto nada a ninguém. Palavra de defunto! E depois, quem é que quer saber o que tu pensas? Quem é que se importa com aquilo que te incomoda? Olha, acabei de tocar num dos teus pontos fracos, não é verdade? Deixa lá! Esse também foi um dos que me fez voar até ao Tejo. Hoje em dia, são poucos os que se preocupam com alguém, acredita no que te digo. Um anónimo a passear pela ponte 25 de abril, em plena hora de ponta, e ninguém quis saber o que é que eu estava por ali a fazer. Parei, tentei ganhar coragem durante uma porrada de tempo, a olhar para o vazio, à espera. Nada! Nenhuma lembrança, nenhum sonho, nenhuma palavra, nenhum grito, nenhuma mão, nenhuma flor, nenhuma merda de carro parou, nenhum gigante do tamanho do Cristo albatroz me veio resgatar. Esperei! Estive ali parado, como uma bandeira desfraldada, e cansei-me de esperar. Deixei-me cair de costas a olhar o céu.
- E desde quando a morte é uma resposta? Não te conheço, não me conheces. Continuo sem saber o que estás aqui a fazer.
- Vim ajudar-te na obra! Precisas de uma história, estás sem inspiração, e com prazos apertados para a conclusão da empreitada. Tu é que me fizeste vir até aqui.
Estarei a imaginar coisas? Será que esta situação bizarra me veio esclarecer, enfim, quem foram os autores de todas as minhas histórias? O meu processo criativo não tem nada de misterioso. Sempre o afirmei, nunca o escondi. Sento-me, concentro-me, e escuto as vozes que me contam as histórias. Mas nunca, como agora, senti a presença forte de um dos seus donos.
- Não te vejo, não te consigo ver, mas sei onde estás sentado a observar-me. É estranho saber que me observas e escutas com tão pouco tempo passado após a tua desventura.
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