Não consigo escrever.
As palavras custam a sair.
Desenho pedaços inverosímeis de silêncios, relatos
perdidos de sonhos, fragmentos, reflexos distorcidos e sem sentido.
A folha em branco é minha inimiga. Aguardo um rumo,
uma orientação, um caminho, guias a quem possa obedecer. Deixei de escutar os
contadores de histórias que em mim se escondem. Talvez amanhã voltem a acordar.
A luz da manhã afaga as colinas.
Tanta solidão, tantos sonhos, e receio que este dia
termine sem o canto dos meus pássaros.
A cidade roubou-me as palavras. Domina, imperial, o
rumo de todas coisas.
Que poeta sou, se nada do que escrevo me pertence, se
nada do que conto é real? Perdi-me no denso nevoeiro das palavras, como um
menino inocente que se deixa enganar.
Eis a folha branca, à minha frente, e não consigo
escrever.
As vozes que me aqueciam a esperança, transformadas em
silêncio.
Onde encontrarei as histórias que tenho de contar?
Como construirei mais um romance?
As estratégias mudaram. Os contadores de histórias
abandonaram-me, e os prazos são muito apertados.
Eis-me perante o horror da folha vazia, sem paisagem,
sem personagens, sem verbo ou opinião.
Olho pela janela da sala. A cidade está igual a ontem,
tão igual ao ano que terminou, tão igual. Se ela falasse, se ela me encontrasse
passageiros para a nova viagem, mas tem outros assuntos com que se preocupar.
Tenho de escrever. Quem sabe se, de repente, não me
surge a inspiração.
Este vazio incomoda bem mais que todos os silêncios. E
se eu não mais conseguir escrever? Vou abrir a janela, talvez as vozes da rua
me possam inspirar.
Conversas banais, olhares inquietos e ausentes. Um
país à deriva.
Se escrever sobre o que escuto, descrevo o desalento,
a falta de esperança, a desilusão e o cansaço. Relatos de nuvens sombrias e
carregadas.
Procuro um início, um princípio para a obra, uma frase
que me ajude a começar. As palavras, teimosas, não acordam.
Vou sair. É melhor adiar por mais um dia o início do
romance. Logo à tardinha telefono para a editora e regateio outras datas.
Onde estarão as minhas vozes? Resolveram tirar férias
na pior altura.
- Não estavas atento às notícias! Tinhas o televisor
no silêncio quando a jornalista referiu a minha morte. Foi há pouco. Olha que
só agora as sirenes chegaram à margem do Tejo. Assim ser-te-á difícil escrever
uma crónica, quanto mais um romance. Tens de estar em permanente estado de
alerta, tens de aprender a escutar o pulsar do universo, possuir a visão atenta
do falcão, e estar preparado para percorrer caminhos imprevistos. Posso
contar-te a história. É tão simples. Eu caminhava pela ponte e ninguém se
preocupou. O pessoal anda ocupado com a vida, cada qual sabe de si e Deus de
todos, não é assim que se diz? Deves ser um dos raros escritores no mundo a
quem um morto se oferece para contar histórias. Se eu tivesse sabido da tua
falta de inspiração, talvez não me tivesse atirado da ponte. Um anúncio teria
sido suficiente. – escritor desinspirado
e desanimado procura um contador de histórias para um possível romance ( dos
que acabam nas livrarias com capas atraentes, e não dos que fazem o peito arder
de paixão ). – Qualquer coisa deste género. Um aviso assim ter-me-ia feito
pensar antes de saltar. Como vês, tens matéria suficiente para o teu início. O
simples facto de me escutares é motivo suficiente para deixares de ter folhas
em branco. O que achas da minha proposta? Não adies mais o princípio da obra. E
não precisas de me fazeres perguntas, basta um aceno com a cabeça, ou pegares
na caneta. Qualquer um desses sinais será suficiente para mim.
Volto para dentro de casa, desejando não ter
enlouquecido.
Sento-me, antes que as pernas fraquejem de vez.
Com as mãos trementes, pego no telemóvel e ligo ao
Lopes.
- Lopes?! Não vais acreditar no que me está a
acontecer. Um gajo que se atirou da ponte abaixo está aqui comigo para me
ajudar a escrever!
- RUI! Grande Rui! Até que enfim! Eu não te tinha dito
que, mais tarde ou mais cedo, acabarias por encontrar inspiração? Não percas
tempo, aproveita! Queremos a obra concluída antes do início do Verão, já sabes
como é. Agora vou ter de desligar, estou a conduzir. Só atendi porque eras tu.
Um abraço…
Quero ligar a televisão para confirmar a veracidade
das palavras do meu “aliado”, mas receio que as notícias lhe deem razão.
- A tua casa tem vistas espetaculares. Muitos artistas
matariam para ter uma musa assim. É verdadeiramente magnífica a vista aqui do
alto.
A última coisa que esperaria, era receber a visita de
uma alma do outro mundo. Esta é a evidência que comprova a loucura. Escuto a
voz de um recém-falecido, sinto a presença do fantasma, apesar de não o ver.
Porque será que veio a minha casa?
- Belas vistas, sim senhor. As coisas começam agora a
fazer algum sentido. Então é isto que acontece quando morremos!
- Isto, mas isto o quê? E quem és tu? Porque te escuto
e sinto com tanta facilidade? O que pretendes de mim?
Louco, fiquei doido! Não só ouço vozes como falo com
um dos seus donos. Maldita profissão a minha. Tenho de conseguir inventar
argumentos, construir histórias, enredos, peripécias, personagens, e manter a
originalidade e criatividade sempre acesas. Um cansaço tremendo! E a editora a encurtar
os prazos, sempre a pressionar, com as últimas semanas passadas em branco, sem
uma ideia, a darem cabo de mim.
- Estás a falar comigo ou estás só a meditar? Não te
incomodes com a tua aparente falta de juízo. Anda por aí muita gente como tu,
que também nos escuta, só não dizem nada com receio de passarem por parvos.
O falecido tem razão. Consegue ler os pensamentos, o
que é deveras preocupante.
- Não te preocupes com isso, eu não conto nada a
ninguém. Palavra de defunto! E depois, quem é que quer saber o que tu pensas?
Quem é que se importa com aquilo que te incomoda? Olha, acabei de tocar num dos
teus pontos fracos, não é verdade? Deixa lá! Esse também foi um dos que me fez
voar até ao Tejo. Hoje em dia, são poucos os que se preocupam com alguém,
acredita no que te digo. Um anónimo a passear pela ponte 25 de abril, em plena
hora de ponta, e ninguém quis saber o que é que eu estava por ali a fazer.
Parei, tentei ganhar coragem durante uma porrada de tempo, a olhar para o
vazio, à espera. Nada! Nenhuma lembrança, nenhum sonho, nenhuma palavra, nenhum
grito, nenhuma mão, nenhuma flor, nenhuma merda de carro parou, nenhum gigante
do tamanho do Cristo albatroz me veio resgatar. Esperei! Estive ali parado,
como uma bandeira desfraldada, e cansei-me de esperar. Deixei-me cair de costas
a olhar o céu.
- E desde quando a morte é uma resposta? Não te
conheço, não me conheces. Continuo sem saber o que estás aqui a fazer.
- Vim ajudar-te na obra! Precisas de uma história,
estás sem inspiração, e com prazos apertados para a conclusão da empreitada. Tu
é que me fizeste vir até aqui.
Estarei a imaginar coisas? Será que esta situação
bizarra me veio esclarecer, enfim, quem foram os autores de todas as minhas
histórias? O meu processo criativo não tem nada de misterioso. Sempre o
afirmei, nunca o escondi. Sento-me, concentro-me, e escuto as vozes que me
contam as histórias. Mas nunca, como agora, senti a presença forte de um dos seus
donos.
- Não te vejo, não te consigo ver, mas sei onde estás
sentado a observar-me. É estranho saber que me observas e escutas com tão pouco
tempo passado após a tua desventura.
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