- Vem visitar
a cidade. Sai, aventura-te por estas ruas, avança pelo meio destes milhões, que
vivem um dia de cada vez, num autêntico formigueiro humano. A noção de espaço é
outra, os sonhos são pequenos, a segurança é uma ilusão, a vida é uma ilusão, e
sobreviver a cada dia, a maior das conquistas. Céu e inferno andam por aqui de
mãos dadas, e somos duramente confrontados com a verdadeira natureza de quem
somos, e do que somos. Enches um pote de água suja, impura, andas pelo meio da
favela suja, pútrida, durante muito tempo, aguardas na fila o necessário até
que chegue a tua vez, pior ainda se fores mulher e estiveres menstruada, ou se
a vontade te chegar durante a noite, em que necessitas de acordar os outros que
contigo partilham o parco espaço onde tentas descansar. Pedes auxílio para não
ires sozinho, ou sozinha, se fores criança ou uma jovem rapariga. Não há
iluminação, a não ser a luz das velas ou fósforos que consigas encontrar, e
essa simples ida pode ser perigosa, quem sabe até fatal. Não sabes quem
encontrarás pelo caminho, as ruelas e becos da favela são escuros, sombrios, e
o lixo amontoado um obstáculo labiríntico que procuras evitar. Escuso de
relatar o que vem em seguida, quando alcanças a pública latrina, e resolves de
vez o teu assunto. Abri a tua janela e dei comigo nesta cidade. Decidi deixar o
caminho aberto para ti. O que achas? Ainda te sentes desinspirado? Nesta cidade
as doenças propagam-se com facilidade, diarreias, cólera, hepatite e malária, a
febre de dengue. As crianças vão às latrinas de pés descalços, não lavam as
mãos, não têm hábitos de higiene, as moscas cantam à nossa volta e os mosquitos
proliferam. Os teus pressupostos podem estar errados. Tens de ter a noção da
obra como um todo, sentires todas as suas partes, e tens de saber como explicar
as diferentes cambiantes. Senti que se caminhasses por esta cidade, a tua
inspiração poderia regressar mais depressa.
Por todos os
lados escuto os sons e os ecos que me chegam do exterior. Os ruídos da cidade
são vencidos pelas minhas músicas. Mais de oitenta por cento dos meninos da rua
são rapazes, e entre os que dormem e erram perdidos, mais de metade tem menos
de dez anos. Ninguém os vê, são enxotados, são insetos indesejados que seguem
perdidos, sombras no meio do reboliço da cidade com maior densidade do planeta.
- Imagino as
razões que te fizeram trazer-me até aqui. – desabafa o escritor.
-Não, não
imaginas. As vozes disseram-me que tenho de escolher um caminho, antes de
regressar. Antes dessa escolha, terei de viajar por locais que não conheci, e
que dificilmente poderiam ser visitados ao longo de dez vidas. Este é o
primeiro de muitos. Consigo cheirar, mesmo depois de morto! Consigo, mas
preferia não ter de o fazer. Escutas o som do piano que parece chorar? Foste tu
quem escolheste a música do cd? Tens bom gosto. Assim torna-se menos penoso
olhar os rostos destes jovens anónimos que passam por nós. Podias ser esse
rapaz, aquele outro que ali vem, este que te estende a mão, o que dorme junto
àquele muro, ou o que corre atrás dos camiões abarrotados de passageiros.
Podias ser aquele que sobe ao camião, o que cai desamparado e não se queixa, o
que segue agarrado junto à porta, o que não se move, deitado no chão.
O trânsito mal
circula, o ar é abafado e poluído. Uma chuva imensa, intensa, quente, começa a
cair. Ninguém se preocupa com isso. Os habitantes seguem os seus caminhos sem
se inquietarem com o início da monção. As ruas já estavam caóticas antes da
chuvada.
O cão dos
vizinhos continua a ladrar, mesmo depois da empregada dos doutores o levar a
passear. É um tormento! O animal não gosta de estar fechado no apartamento. A
dona Fátima deve estar maluquinha por ter de trabalhar todo o dia naquele
inferno! Fechou o cão na despensa, na varanda, na casa de banho, pensou em
atirar o animal pela janela, em amordaçá-lo com fita isoladora. Já telefonou à
senhora, que a descompôs. O bicho anda louco pela casa, salta de sofá em sofá,
por cima da mesa da sala de estar, arranha a porta do escritório, arranha a
porta da cozinha, a porta da sala, a porta de entrada do apartamento. O caniche
branco está possuído pelo demónio, é o próprio demónio em forma de cão. O
candeeiro do Ikea voou do aparador assim que o animal chegou da rua. Choveu,
Fátima não ia preparada, e acabou por quase largar o Einstein. Teve pena de ter
conseguido agarrar a trela a tempo.
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