terça-feira, 29 de janeiro de 2013

O CÉU E O INFERNO


 
- Vem visitar a cidade. Sai, aventura-te por estas ruas, avança pelo meio destes milhões, que vivem um dia de cada vez, num autêntico formigueiro humano. A noção de espaço é outra, os sonhos são pequenos, a segurança é uma ilusão, a vida é uma ilusão, e sobreviver a cada dia, a maior das conquistas. Céu e inferno andam por aqui de mãos dadas, e somos duramente confrontados com a verdadeira natureza de quem somos, e do que somos. Enches um pote de água suja, impura, andas pelo meio da favela suja, pútrida, durante muito tempo, aguardas na fila o necessário até que chegue a tua vez, pior ainda se fores mulher e estiveres menstruada, ou se a vontade te chegar durante a noite, em que necessitas de acordar os outros que contigo partilham o parco espaço onde tentas descansar. Pedes auxílio para não ires sozinho, ou sozinha, se fores criança ou uma jovem rapariga. Não há iluminação, a não ser a luz das velas ou fósforos que consigas encontrar, e essa simples ida pode ser perigosa, quem sabe até fatal. Não sabes quem encontrarás pelo caminho, as ruelas e becos da favela são escuros, sombrios, e o lixo amontoado um obstáculo labiríntico que procuras evitar. Escuso de relatar o que vem em seguida, quando alcanças a pública latrina, e resolves de vez o teu assunto. Abri a tua janela e dei comigo nesta cidade. Decidi deixar o caminho aberto para ti. O que achas? Ainda te sentes desinspirado? Nesta cidade as doenças propagam-se com facilidade, diarreias, cólera, hepatite e malária, a febre de dengue. As crianças vão às latrinas de pés descalços, não lavam as mãos, não têm hábitos de higiene, as moscas cantam à nossa volta e os mosquitos proliferam. Os teus pressupostos podem estar errados. Tens de ter a noção da obra como um todo, sentires todas as suas partes, e tens de saber como explicar as diferentes cambiantes. Senti que se caminhasses por esta cidade, a tua inspiração poderia regressar mais depressa.
Por todos os lados escuto os sons e os ecos que me chegam do exterior. Os ruídos da cidade são vencidos pelas minhas músicas. Mais de oitenta por cento dos meninos da rua são rapazes, e entre os que dormem e erram perdidos, mais de metade tem menos de dez anos. Ninguém os vê, são enxotados, são insetos indesejados que seguem perdidos, sombras no meio do reboliço da cidade com maior densidade do planeta.
- Imagino as razões que te fizeram trazer-me até aqui. – desabafa o escritor.
-Não, não imaginas. As vozes disseram-me que tenho de escolher um caminho, antes de regressar. Antes dessa escolha, terei de viajar por locais que não conheci, e que dificilmente poderiam ser visitados ao longo de dez vidas. Este é o primeiro de muitos. Consigo cheirar, mesmo depois de morto! Consigo, mas preferia não ter de o fazer. Escutas o som do piano que parece chorar? Foste tu quem escolheste a música do cd? Tens bom gosto. Assim torna-se menos penoso olhar os rostos destes jovens anónimos que passam por nós. Podias ser esse rapaz, aquele outro que ali vem, este que te estende a mão, o que dorme junto àquele muro, ou o que corre atrás dos camiões abarrotados de passageiros. Podias ser aquele que sobe ao camião, o que cai desamparado e não se queixa, o que segue agarrado junto à porta, o que não se move, deitado no chão.
O trânsito mal circula, o ar é abafado e poluído. Uma chuva imensa, intensa, quente, começa a cair. Ninguém se preocupa com isso. Os habitantes seguem os seus caminhos sem se inquietarem com o início da monção. As ruas já estavam caóticas antes da chuvada.

O cão dos vizinhos continua a ladrar, mesmo depois da empregada dos doutores o levar a passear. É um tormento! O animal não gosta de estar fechado no apartamento. A dona Fátima deve estar maluquinha por ter de trabalhar todo o dia naquele inferno! Fechou o cão na despensa, na varanda, na casa de banho, pensou em atirar o animal pela janela, em amordaçá-lo com fita isoladora. Já telefonou à senhora, que a descompôs. O bicho anda louco pela casa, salta de sofá em sofá, por cima da mesa da sala de estar, arranha a porta do escritório, arranha a porta da cozinha, a porta da sala, a porta de entrada do apartamento. O caniche branco está possuído pelo demónio, é o próprio demónio em forma de cão. O candeeiro do Ikea voou do aparador assim que o animal chegou da rua. Choveu, Fátima não ia preparada, e acabou por quase largar o Einstein. Teve pena de ter conseguido agarrar a trela a tempo.
 

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