Rui perdeu a paixão, ao fim de tantos
anos, se é que alguma vez a sentiu.
Queria ser salvo por quem o compreendesse,
mas a vida não funciona como um filme. A sua obra é agora um guião
desgovernado.
No café onde o escritor encontrava as
palavras, elas esgotaram-se. Acabaram! Cansaram-se de o auxiliar.
Não lhe resta mais nada.
Uma jovem toma um expresso em pé, ao
balcão. O que será que ela pensa? Tem olhos negros intensos. Pega numa pequena
mala preta que coloca ao ombro e desaparece para não mais regressar. Não é uma
cliente habitual. Rui lamenta a possibilidade da rapariga poder nunca mais ali
parar, e embrenha-se em pensamentos desconexos.
No café estão alguns idosos ocupados com
as leituras dos jornais, entretidos com passatempos de papel e lápis. Sentados,
isolados, tentam entender como é que o tempo lhes fugiu. Um deles discursa
enquanto lê, gesticula, como se também estivesse acompanhado de um companheiro
invisível. Sorri, vira a página do jornal, passa a mão pelas orelhas, mexe no
nariz e nos lábios, tudo isto é feito enquanto mantém uma animada conversa com
o amigo imaginário. Outros utilizam livros para voar.
Quando lhe falta a inspiração, recua e
avança por entre personagens reais e fictícias. Os ruídos são o que mais o
incomoda, todos os barulhos de fundo. As máquinas, a loiça a bater nas
travessas, a porta de entrada giratória, a música de fundo, sem chama nenhuma,
que procura criar ambiente, e todas as conversas. Tudo o distrai. Rui pratica o
exercício impossível de tentar encontrar o silêncio neste caos onde escreve. Ao
tentar encontrar palavras para as histórias, o escritor afasta tudo como velhas
cortinas e entra naquele mundo misterioso onde habitam os contadores de
histórias. Foi assim que ele criou as suas obras. Mas agora tudo mudou!
Não lhe resta mais nada.
- Tudo mudou, e depois tu apareceste! Não
sinto a chama de outrora, nem escuto as minhas vozes, apenas a tua. Mas não te
consigo ver, nem sei quem és. Tenho de escrever para viver, e isso tornou-se o
maior dos pesadelos. Talvez essa seja mesmo a razão principal para a minha
falta de inspiração. Antes, quando era apenas um ilustre desconhecido, sentia
cada letra como um doce e cada palavra era um sorriso.
- Lá estás tu, de novo, a divagar! Onde
estão as personagens que criaste? Ninguém quer saber se gostavas mais de
escrever antes do que agora. Quem é que quer saber disso para alguma coisa? O
que o leitor pretende é uma boa história, quer ser transportado para outros
universos, com enredos sofisticados, apaladados… e tu estavas a seguir no bom
caminho. As raparigas deviam ter-te inspirado, mas pensas demasiado nas coisas.
Andas tenso, desorientado. As razões que apontas para a tua falta de génio
parecem bater certo. Faltou-te mencionar a questão da preguiça. Tu és um gajo
preguiçoso, muito preguiçoso. Se não consegues escrever pela manhã, escreve à
hora de almoço, escreve durante a tarde, se não consegues escrever à tarde,
escreve à noite, se não consegues escrever à noite, escreve de madrugada,
escreve, escreve, escreve, escreve… deixa de arranjar desculpas, deixa de
encontrar barreiras, e não te distraias demasiado com o quotidiano. Se os
ruídos da vida te incomodam, procura locais silenciosos, se a luz te perturba,
procura o retiro da escuridão, se os passageiros dos dias te fazem pensar,
encontra a parede mais desinteressante para escreveres virado para ela. Não
arranjes mais desculpas para a tua obra ficar parada. E se as músicas de fundo
te aborrecem por não terem chama, escuta-me com atenção, escuta bem, ó
escritor. A bela pianista do último piso toca maravilhosamente! Está na hora de
lhe fazeres uma visita. A que história pertence a rapariga? Ela passou os
últimos dias a compor. Não comeu, não dormiu, não bebeu, esteve nua, cara a
cara com o universo. É disso que necessitas! Vai ter com ela para aprenderes
uma bela lição. Sobe! De que é que estás à espera? Vai ter com a tua irlandesa.
Foste tu que a descreveste, deves conhecê-la melhor do que ninguém.
- Imbecil! Não te vejo, mas continuas o
mesmo imbecil de sempre. – responde o escritor bastante irritado.
- Não entendes nada da vida. Esta viagem
ainda mal começou. Tu estás assim porque começaste a compreender. As cidades
mostram partes de ti que preferias não teres de conhecer. Chamas-me imbecil,
logo a mim que estou morto e apenas pretendo ajudar-te na construção da tua
obra.
- Cheira bem, cheira tão bem! Alguém
cozinhou bolos com aromas deliciosos.
Rui revê a imagem do corpo de Helen à
janela.
- Perdi-me! Estava novamente a divagar.
Pensava coisas que em nada contribuem para o avanço da minha história. Dou-te
razão, e devo-te um pedido de desculpas. A pianista toca magistralmente. É um
verdadeiro prodígio.
- Sim, a pianista é um espanto… e é capaz
de compor melodias como ninguém.
O escritor perdeu a paixão, ao fim de
tantos anos.
Rui ama a arte da escrita.
Através dela encontrou a mais perfeita
forma de salvação.