Refugiou-se no café onde costumava
escrever.
O mês passou e as palavras não lhe
aconteciam. Outro mês se passou, e as palavras teimavam em não acontecer.
Sem elas, a vida deixa de fazer sentido.
Rui procurou outro café, um outro local
onde pudesse redescobrir as palavras que o abandonaram.
O Lopes insistia, com regularidade, e
outro mês voava sem o regresso da inspiração.
Foi assim ao longo do ano e meio que
demorou a escrever o último romance. Quase o dobro do tempo que gastara no
penúltimo. Os dois foram recebidos com indiferença e as vendas têm sido uma
desilusão.
A última obra é um perfeito exemplo da sua
falta de génio. Um rol de banalidades numa história sem chama com personagens confusas
e desinteressantes, embrulhadas numa escrita sem fulgor. O que mais lhe custou
foi ter de suportar o sorriso amarelo do Lopes, e as muitas pancadinhas nas
costas, servidas com palavras de circunstância:
- “Deixa
lá, são fases! Todos os criadores passam por situações semelhantes. O teu
próximo romance será uma verdadeira obra-prima! Começa desde já a pensar
nisso.”
Rui entrou em todos os cafés, sentou-se a
todas as cadeiras de todas as mesas. Em cada uma delas tentou escutar as
palavras das vozes que lhe contam as histórias. Em todas elas encontrou a
companhia do silêncio.
A deusa de ébano rasgou-lhe a roupa toda.
A deusa de ébano rasgou-lhe pedaços de
carne enquanto se deliciava com o corpo do escritor, com os seus sumos.
O invisível há muito não se escuta.
Helen toca uma melodia triste e envolvente
ao piano. O universo foi criado ao som de uma música semelhante.
-Começa a escrever! Aproveita estes
momentos únicos de inspiração, e escreve! – diz o companheiro invisível.
As bailarinas cantam em coro a música da
pianista.
A deusa de ébano mantém o escritor dentro
de si, sente-o e abraça-o, e ri-se, e sangra e chora, e aperta-lhe as mãos e os
dedos com força, e beija-o, e morde-lhe o lábio inferior, as orelhas, as
sobrancelhas, o queixo, o peito, o pescoço.
Agora já não se ouve a melodia da
irlandesa, nem os gritos estranhos do companheiro invisível, nem as vozes
afinadíssimas das bailarinas, nem o ruído do tempo que passa.
- Como te chamas? – pergunta Rui com as
mãos coladas nas nádegas da bailarina. Ela não responde. Continua com o jogo de
prazer que o escritor acompanha.
Duas vidraças partem-se e delas saem
mulheres de corpos esculturais.
- Porque escreves tu? – perguntam as
bailarinas que se juntam ao escritor e à deusa de ébano. – Porque escreves e te
esqueces de viver? Onde estão os teus filhos, ou filhas, a tua mulher, ou o teu
homem, onde está a tua vida? O que vieste aqui fazer? Quem te trouxe à cidade
inexistente? Porque te deixaste seduzir sem resistência? Porque nos chamaste,
porque nos desejas? Tens contigo quem te dê prazer como nunca antes sentiste.
Quem és tu, escritor, e o que pretendes?
Os corpos perfeitos das bailarinas são
páginas com capítulos que nunca ousou escrever. Rui reage como ele próprio não
esperaria.
- Isso, isso mesmo, rapaz! Inspira-te, sê
verdadeiro, aproveita bem o tempo nesta cidade.
Helen toca uma música melancólica, e Rui
perde-se nos corpos das três mulheres. Alimenta-se dos seios, dos cotovelos,
dos lábios e dos cabelos das dançarinas. Regressa da deusa de ébano, descobre a
deusa do norte. Tem as mãos saturadas com os odores do sexo das três mulheres,
com os odores dos suores, com as cores do sangue que escorre pelas pernas
feridas. Regressa da deusa do norte e descobre a deusa oriental, de olhos
rasgados e olhar profundo.
- Isso, isso mesmo meu rapaz! Inspira-te,
procura ser verdadeiro durante todo o tempo que aqui vamos passar.
A pianista ensaia uma estranha melodia,
diferente de tudo o que se conhece tocado ao piano. Helen descobre como tirar
partido do instrumento através de uma técnica inovadora. Suga-lhe os primeiros
sons de uma nova construção melódica que acrescenta à obra.
Rui mantém o calor das mulheres junto ao
seu. O dia passa, a noite e outro dia, e uma outra noite, outra vez.
A pianista irlandesa termina a primeira
parte da sua obra durante este tempo. Não dorme, não come, não bebe, não
descansa. Está nua, é assim que gosta de comunicar com o universo tocando o seu
instrumento de eleição.
Que estranha é a cidade que o invisível
lhe deu a conhecer.
A obra do escritor não cresce.
A obra de Helen começa a ganhar corpo,
sonoridades ímpares tocadas numa técnica inovadora.
-Vais ver como a tua escrita se vai
transformar. Esquece os cafés deselegantes e monótonos onde procuravas
inspiração, esquece as cadeiras e as mesas onde te escondias a escrever.
Esquece tudo isso. Mas nunca te esqueças deste mês incrível, caso contrário, o
meu esforço terá sido em vão.
O sangue das feridas espalha-se pelo corpo
do escritor.
- Sê bem-vindo à cidade inexistente. –
exclamam em coro as dançarinas. – Sê bem-vindo à cidade de todos os prazeres.
Este é o café que Rui procurava. As
cadeiras são feitas de corpos angelicais, as mesas são rostos delicados, e as
palavras que lhe fugiram, regressam transformadas em notas musicais tocadas por
uma extraordinária pianista.
Na cidade inexistente, as palavras não se
escondem, as histórias brotam das vitrinas, estão vivas, sangram, tomam conta
dos escritores para que estes possam continuar a criar as suas obras.
- Isso! Isso mesmo, rapaz! Inspira-te,
deixa-te levar pelos prazeres da cidade, não tenhas medo de ser verdadeiro.
As bailarinas regressam às vitrinas
estilhaçadas do edifício, que as recebem e ficam como novas. Saram as feridas e
dançam ao ritmo da melodia de Helen.
- ESTÚPIDO! Um grande, grande ESTÚPIDO! O
teu pai é mesmo um grande estúpido! O que vai ser agora de nós?
Sofia esperava muito da vida. Uma situação
assim acontece todos os dias a tantos casais. Em pesadelos que nunca desejou, o
cenário tinha-lhe sido participado. E agora, é bem real, está mesmo a
acontecer. A ingrata, cruel realidade, resolveu bater-lhe à porta.
O Tiago está muito assustado a olhar para
a mãe.
- O que foi que o pai te fez? O pai já não
gosta de nós? O pai deixou de gostar de nós?
Sofia está de joelhos abraçada ao filho.
Dor, raiva, desespero, o Tiago a soluçar, a fazer-lhe perguntas que não sabe
responder.
- O pai vai deixar de viver connosco, já
não vai voltar para casa? Vai ser como com os pais da Carlota, ela sabia que
eles iam separar-se, mas não queria ficar a viver sozinha com a mãe. Eu gosto
muito do pai, a sério, não consigo deixar de gostar dele, mãe. E tu? Vais
deixar de gostar de mim por causa disso?
Sofia aperta Tiago ainda com mais força.
Filha da puta da mulher que roubou o coração ao marido. Ela vai ter de as
pagar, e o patife do Afonso, um parvo como só os homens sabem ser. Besta, um
imbecil! Estúpido, mas que canalha tão parvo e tão estúpido lhe calhou como
marido.
Sem comentários:
Enviar um comentário