sexta-feira, 8 de março de 2013

NA COMPANHIA DO SILÊNCIO




Refugiou-se no café onde costumava escrever.
O mês passou e as palavras não lhe aconteciam. Outro mês se passou, e as palavras teimavam em não acontecer.
Sem elas, a vida deixa de fazer sentido.
Rui procurou outro café, um outro local onde pudesse redescobrir as palavras que o abandonaram.
O Lopes insistia, com regularidade, e outro mês voava sem o regresso da inspiração.
Foi assim ao longo do ano e meio que demorou a escrever o último romance. Quase o dobro do tempo que gastara no penúltimo. Os dois foram recebidos com indiferença e as vendas têm sido uma desilusão.
A última obra é um perfeito exemplo da sua falta de génio. Um rol de banalidades numa história sem chama com personagens confusas e desinteressantes, embrulhadas numa escrita sem fulgor. O que mais lhe custou foi ter de suportar o sorriso amarelo do Lopes, e as muitas pancadinhas nas costas, servidas com palavras de circunstância:
- “Deixa lá, são fases! Todos os criadores passam por situações semelhantes. O teu próximo romance será uma verdadeira obra-prima! Começa desde já a pensar nisso.”
Rui entrou em todos os cafés, sentou-se a todas as cadeiras de todas as mesas. Em cada uma delas tentou escutar as palavras das vozes que lhe contam as histórias. Em todas elas encontrou a companhia do silêncio.

A deusa de ébano rasgou-lhe a roupa toda.
A deusa de ébano rasgou-lhe pedaços de carne enquanto se deliciava com o corpo do escritor, com os seus sumos.
O invisível há muito não se escuta.
Helen toca uma melodia triste e envolvente ao piano. O universo foi criado ao som de uma música semelhante.
-Começa a escrever! Aproveita estes momentos únicos de inspiração, e escreve! – diz o companheiro invisível.
As bailarinas cantam em coro a música da pianista.
A deusa de ébano mantém o escritor dentro de si, sente-o e abraça-o, e ri-se, e sangra e chora, e aperta-lhe as mãos e os dedos com força, e beija-o, e morde-lhe o lábio inferior, as orelhas, as sobrancelhas, o queixo, o peito, o pescoço.
Agora já não se ouve a melodia da irlandesa, nem os gritos estranhos do companheiro invisível, nem as vozes afinadíssimas das bailarinas, nem o ruído do tempo que passa.
- Como te chamas? – pergunta Rui com as mãos coladas nas nádegas da bailarina. Ela não responde. Continua com o jogo de prazer que o escritor acompanha.
Duas vidraças partem-se e delas saem mulheres de corpos esculturais.
- Porque escreves tu? – perguntam as bailarinas que se juntam ao escritor e à deusa de ébano. – Porque escreves e te esqueces de viver? Onde estão os teus filhos, ou filhas, a tua mulher, ou o teu homem, onde está a tua vida? O que vieste aqui fazer? Quem te trouxe à cidade inexistente? Porque te deixaste seduzir sem resistência? Porque nos chamaste, porque nos desejas? Tens contigo quem te dê prazer como nunca antes sentiste. Quem és tu, escritor, e o que pretendes?
Os corpos perfeitos das bailarinas são páginas com capítulos que nunca ousou escrever. Rui reage como ele próprio não esperaria.
- Isso, isso mesmo, rapaz! Inspira-te, sê verdadeiro, aproveita bem o tempo nesta cidade.
Helen toca uma música melancólica, e Rui perde-se nos corpos das três mulheres. Alimenta-se dos seios, dos cotovelos, dos lábios e dos cabelos das dançarinas. Regressa da deusa de ébano, descobre a deusa do norte. Tem as mãos saturadas com os odores do sexo das três mulheres, com os odores dos suores, com as cores do sangue que escorre pelas pernas feridas. Regressa da deusa do norte e descobre a deusa oriental, de olhos rasgados e olhar profundo.
- Isso, isso mesmo meu rapaz! Inspira-te, procura ser verdadeiro durante todo o tempo que aqui vamos passar.
A pianista ensaia uma estranha melodia, diferente de tudo o que se conhece tocado ao piano. Helen descobre como tirar partido do instrumento através de uma técnica inovadora. Suga-lhe os primeiros sons de uma nova construção melódica que acrescenta à obra.
Rui mantém o calor das mulheres junto ao seu. O dia passa, a noite e outro dia, e uma outra noite, outra vez.
A pianista irlandesa termina a primeira parte da sua obra durante este tempo. Não dorme, não come, não bebe, não descansa. Está nua, é assim que gosta de comunicar com o universo tocando o seu instrumento de eleição.
Que estranha é a cidade que o invisível lhe deu a conhecer.
A obra do escritor não cresce.
A obra de Helen começa a ganhar corpo, sonoridades ímpares tocadas numa técnica inovadora.
-Vais ver como a tua escrita se vai transformar. Esquece os cafés deselegantes e monótonos onde procuravas inspiração, esquece as cadeiras e as mesas onde te escondias a escrever. Esquece tudo isso. Mas nunca te esqueças deste mês incrível, caso contrário, o meu esforço terá sido em vão.
O sangue das feridas espalha-se pelo corpo do escritor.
- Sê bem-vindo à cidade inexistente. – exclamam em coro as dançarinas. – Sê bem-vindo à cidade de todos os prazeres.

Este é o café que Rui procurava. As cadeiras são feitas de corpos angelicais, as mesas são rostos delicados, e as palavras que lhe fugiram, regressam transformadas em notas musicais tocadas por uma extraordinária pianista.
Na cidade inexistente, as palavras não se escondem, as histórias brotam das vitrinas, estão vivas, sangram, tomam conta dos escritores para que estes possam continuar a criar as suas obras.
- Isso! Isso mesmo, rapaz! Inspira-te, deixa-te levar pelos prazeres da cidade, não tenhas medo de ser verdadeiro.
As bailarinas regressam às vitrinas estilhaçadas do edifício, que as recebem e ficam como novas. Saram as feridas e dançam ao ritmo da melodia de Helen.

- ESTÚPIDO! Um grande, grande ESTÚPIDO! O teu pai é mesmo um grande estúpido! O que vai ser agora de nós?
Sofia esperava muito da vida. Uma situação assim acontece todos os dias a tantos casais. Em pesadelos que nunca desejou, o cenário tinha-lhe sido participado. E agora, é bem real, está mesmo a acontecer. A ingrata, cruel realidade, resolveu bater-lhe à porta.
O Tiago está muito assustado a olhar para a mãe.
- O que foi que o pai te fez? O pai já não gosta de nós? O pai deixou de gostar de nós?
Sofia está de joelhos abraçada ao filho. Dor, raiva, desespero, o Tiago a soluçar, a fazer-lhe perguntas que não sabe responder.
- O pai vai deixar de viver connosco, já não vai voltar para casa? Vai ser como com os pais da Carlota, ela sabia que eles iam separar-se, mas não queria ficar a viver sozinha com a mãe. Eu gosto muito do pai, a sério, não consigo deixar de gostar dele, mãe. E tu? Vais deixar de gostar de mim por causa disso?
Sofia aperta Tiago ainda com mais força. Filha da puta da mulher que roubou o coração ao marido. Ela vai ter de as pagar, e o patife do Afonso, um parvo como só os homens sabem ser. Besta, um imbecil! Estúpido, mas que canalha tão parvo e tão estúpido lhe calhou como marido.

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