Tudo se passa como se fosse uma história,
um conto, uma novela.
Carla sente-se uma personagem de um livro.
É que as coisas não acontecem assim na vida real. O que mais desejava, acabou
de se concretizar, e os ecos desse desejo ainda ecoam pelos prédios do bairro.
Caem-lhe lágrimas de alegria, de alívio,
de dor e de receio.
Não se consegue mexer.
A campainha toca.
Está alguém à porta.
Não se consegue mexer.
A campainha toca, está alguém à porta, não
se consegue mexer.
Não quer ver nem falar com ninguém.
O Armando teve aquilo que merecia. É só
nisso que consegue pensar.
O corpo e o rosto carregam as marcas de um
relacionamento tempestuoso que Carla pretende esquecer.
O Armando teve aquilo que merecia, o
Armando teve aquilo que merecia, o Armando teve aquilo que merecia, a campainha
não para de tocar, a campainha não para de tocar, o Armando teve aquilo que
merecia, o Armando teve aquilo que merecia, chora de alegria, de dor, de
emoção, chora de alívio, chora principalmente de alívio, o Armando teve o fim que
merecia.
A campainha para de tocar.
O telemóvel e o telefone não param de
tocar.
Carla sai da varanda.
Desliga o telemóvel.
Desliga o telefone, desliga-se de tudo o
que a incomoda, entra no quarto, fecha os estores, fecha a porta, fecha os
olhos cansados, o corpo dormente e marcado, fecha-se do universo debaixo das
roupas desfeitas da cama.
Alguém lê o livro com a história onde
Carla existe, porque coisas assim não acontecem na vida real.
O universo desapareceu pela janela nas
páginas do livro que Zé Paulo decidiu fazer voar. Asas feitas de folhas, páginas
e palavras que explicam os intrincados fenómenos que acontecem num suposto
universo elegante, e que relembra que as duas teorias que propiciaram
o fabuloso progresso da física nos últimos cem são mutuamente incompatíveis. A
tentativa ou o sucesso na resolução dos conflitos, leva-nos sempre até um outro
conflito, diz essa obra. Palavras que falam de forças, matéria, uma mão cheia
de teorias, princípios, explicações acerca dos mecanismos do universo, alguns
efeitos, conceitos, comparações, visões, incompatibilidades, e outros
pensamentos.
E o que dizer acerca dos buracos-negros, o
big-bang e a expansão do universo? A mente humana talvez nunca seja capaz de
entender como realmente opera o universo.
Mentiras, um chorrilho de mentiras
adocicadas por uma capa lustrosa
Os leitores da obra são enganados, ou
deixam-se enganar pela quantidade de falsas informações que o livro contém. Zé
Paulo sabe muito bem como funciona o universo, sempre o soube, e isso é a causa
principal das suas perturbações.
- Corre por aqui, mano! O pai é bem capaz
de te matar. Vamos fugir e esperar que ele se acalme. – Disse-lhe o Alexandre
naquela madrugada. Ele foi rápido a reagir, bem mais rápido que a mãe. Deolinda
teve um fugaz momento de hesitação que durou um segundo. Zé Paulo tinha as mãos
vincadas no pescoço do pai, mas ela não se moveu. O universo é um local
violento, que permaneceu tranquilo durante aquele segundo.
- Corre por aqui, mano! A mãe vai
acalmá-lo. Anda, sabe-se lá como é que o pai vai reagir a tudo isto.
Zé Paulo estava letárgico. As leis da
física quântica passavam-lhe umas atrás das outras pela cabeça, enquanto fugia,
nu, puxado por Alexandre.
- Nenhum tiro nos mataria, mano, nenhum!
As balas seriam atraídas pela inimaginável massa do buraco negro que gravita à
nossa volta. Seriam honestas connosco, deixar-nos-iam em paz. Acredita no que
te digo, mano. Amanhã, este dia e esta noite terão desaparecido para sempre.
Hoje ainda, durante o que resta desta noite, as lembranças serão uma mentira,
jamais a realidade, nem tão pouco representarão partes da realidade.
Construímos a nossa ideia de mundo partindo do pressuposto que todas as
memórias, todas as lembranças são reais. Isso só prova que somos uns tolos. Mas
uma coisa é certa, Alexandre, sem a tua amizade, este universo que habitamos já
não seria igual. Tu sabes isso melhor do que ninguém.
Os dois irmãos correram para longe de
casa, não fosse o revólver de Sepúlveda cuspir a última palavra.
- És louco? Tu é que és o louco desta
casa! Que pai corre atrás de um filho de arma na mão?
Os olhos de Sepúlveda brilharam como os de
um assassino.
A arma ardia-lhe nas mãos, o dedo tremia
no gatilho.
A boca estava seca.
As sombras, todas as sombras, eram
inimigas preparadas para o atacar.
O corredor cresceu, a mulher encolheu.
Jura ter visto a cara de Rogério a
espreitar por uma fresta da porta do quarto, jura, mas não sabe, não sabe nada,
e resolve começar a disparar.
- Desculpa, desculpa, desculpa, desculpa,
desculpa, mas tiveste aquilo que merecias.
O quarto está silencioso e escuro.
Carla pede desculpa pelo desejo concedido,
tapada pelos lençóis.
Filipa liga o rádio do carro enquanto
espera o pai e o sobrinho.
As notícias passam em quase todas as
estações:
“Uma
pessoa morreu quando o carro explodiu após ter, presumivelmente, rodado a chave
na ignição. Não há mais vítimas a lamentar, mas os estragos são muito
consideráveis. Dezenas de viaturas ficaram danificadas e os vidros dos prédios
vizinhos estilhaçaram com a violência da explosão. As
autoridades já se encontram junto ao local do rebentamento. Segundo fontes
próximas da polícia judiciária, suspeita-se que este seja o primeiro de uma
possível onda de atentados”.
- Mas onde raio é que eles se terão
metido? O pai nunca mais deixa o vício maldito… e precisamos de sair daqui
antes que se generalize a barafunda. Tinha logo de acontecer uma coisa destas
nesta altura.
Os dois surgem pelo meio dos veículos
estacionados sem que Filipa se tenha apercebido. Assusta-se com a abertura das
portas.
- CREDO! Nem vos vi chegar. Onde é que
estavam?
- Vamos embora, tia. A polícia vai efetuar
buscas ao aeroporto. Suspeitam de bombas no edifício. Não tarda nada, isto vai
ficar um caos completo.
Augusto pensa que um atentado terrorista
até pode ser uma coisa vantajosa. Se alguém destruísse por completo o
aeroporto, mas sem causar vítimas, todos ganhariam com isso. O homem não foi
feito para voar, o homem foi feito para caminhar com os pés bem assentes no
chão!
- Se não te importas, vou fumar no carro.
Desculpa lá, mas os nervos estão a dar-me cabo da paciência.
Filipa não responde ao pai. A fila para a
saída do parque avança muito devagar, mesmo com a polícia a obrigar os condutores
a saírem dali com rapidez.
A avenida está já ali, dentro em breve a rotunda,
depois a segunda circular. Mas que manhã atribulada. E para ajudar à festa, eis
que começa a chover com bastante intensidade.
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