Está a chover. A cidade foi apanhada
desprevenida. Foi sem aviso, pois o dia amanheceu azul. As pessoas correm para
os abrigos mais próximos. Um corrupio de gente faz-se aos cafés, ao metro, às
paragens de autocarro, às lojas.
- Devia chover assim mais vezes, ó Manel,
quem nos cá dera esta clientela todos os dias! – alerta Josefa sorridente. O
mercadinho encheu-se na entrada, pois a chuva não dá tréguas a quem segue nos
passeios. O toldo aberto serve de chapéu-de-chuva aos que ali se resguardam,
mas a fruta permanece estendida nas caixas, junto às hortaliças, cenouras,
nabos e alfaces. A Dona Josefa avisa que no outro lado da loja também servem
cafés e bolinhos. Tem cadeiras, e três mesas que servem para aquecer o vício
enquanto a chuva não passa.
- Olha aí Manel, quatro bicas escaldadas,
duas cheias, um descafeinado, e um Ucal morno de chocolate. Rápido rapaz, que
hoje saiu-nos a sorte grande. A senhora também deseja um croissant simples e um
com fiambre. É para o menino? Então deixe estar que eu vou cortar o fiambre num
instante, bem fininho. Não foi meu querido, foi isso que pediste à mamã,
fiambre bem fininho no croissant?
- Muito obrigado! Vês Rodrigo, como a Dona
Josefa é simpática. Esta chuva é que não vem nada a calhar. Ele acordou febril
e com tosse. Vamos ao centro de saúde. O dia hoje quis estar contra nós. Quem
diria que ia chover.
Josefa corta o croissant e o fiambre para
o menino, enquanto coloca a garrafa de leite de chocolate, um copo de galão, o
outro croissant e a bica escaldada da Rita, num tabuleiro redondo.
- Manel, são mais duas bicas, e um galão.
Anda lá rapaz, despacha o serviço enquanto chove…
Um vendaval súbito assusta quem passa
na rua, e o pequeno mercadinho da rua enche-se com ainda mais gente.
- Quem nos cá dera mais dias assim,
senhora Rita, quem nos cá dera…
Os olhos do Rodrigo estão vidrados. A sua
bebida favorita vai fazê-lo sentir-se melhor, a par do sorriso da mãe.
- Não te preocupes, já me sinto melhor mamã.
E já quase não tenho tosse.
Rita volta a colocar a mão na testa quente
do filho.
- Não podemos demorar muito tempo. O pior
é esta maldita chuva de que ninguém estava à espera. E logo hoje o teu pai
tinha de sair mais cedo. É sempre assim. Estas coisas acontecem quase sempre na
pior altura.
Corri desde o jardim até um mercadinho da
rua onde existe um pequeno café. A chuva deixou-me encharcado como um pinto.
Peço uma meia-de-leite bem quente. O passeio não me inspirou. Olho as pessoas
que aqui se encontram. Pergunto-me que histórias têm para contar. Histórias
vulgares de gente vulgar, muitas vezes são tudo menos vulgares. São
surpreendentes os casos de vida que carregam, e alguns dariam romances
extraordinários. Tenho de ser capaz de inventar uma história, até ao final da
primavera, que seja capaz de prender os leitores. E como prender o leitor? Não
posso, nem me quero preocupar com esse detalhe, mas o Lopes foi bem claro na
última reunião que tivemos. - Procura escrever uma obra com uma componente
misteriosa, cenários atípicos, maior dose de humor e, sobretudo, que seja bem
provocante. - Tal e qual, como se me estivesse a encomendar um prato e me desse
os ingredientes. Estou tramado! E no último romance os elementos foram o
terror, uma vila pacata, e muita pressão psicológica. Sobre intensa pressão
psicológica tenho eu andado só por lhe aturar as parvoeiras. – Olha que hoje em
dia os nossos leitores são bem mais exigentes do que antes, e pretendem textos
que sejam leves, inteligentes e criativos. – Mas o que ele me disse com aquelas
palavras foi: - Faz um romance que venda mais do que os últimos dois, senão, pensa
noutra editora! Resumindo, tenho de criar uma obra que seja leve, criativa,
misteriosa, com uma equilibrada dose de humor, passada em cenários excecionais,
provocante e muito inteligente.
- Posso dar a minha opinião? – pergunta o
companheiro indesejado. – Deixei-te meditar, ficaste a sós embrulhado nos teus
pensamentos, e a única coisa que aconteceu de importante foi ter começado a
chover. Deixa que te diga que esses dados que referiste sobre o que tens de
escrever são muito interessantes. Um romance deve ter
sexo, para ser provocante, um bom crime e uma boa dose de mistério, tal como eu
te disse. Descreves algo de trágico, para criar uma intriga inteligente, com
uma ou várias mortes inexplicáveis, e com muita pancadaria e humor, pois essas
são coisas leves. Ser criativo já é algo que terás de ser tu a procurar. Estás
a ver? Verás que acabas de escrever antes do final da primavera, como é desejo
do teu agente. Vai ser fácil!
Rui ficou com vontade de matar o
companheiro, mas o próprio já se tinha encarregado dessa missão.
- Eu tinha-te pedido para ficar a
sós com os meus pensamentos, não foi? Mas deixa lá, tens razão. Aceito a tua
opinião. Começo a pensar que, se calhar, podes vir a ser-me útil na construção
da obra.
- Olha, meu querido! Parou de
chover! A mãe vai pagar. Acaba de beber o teu leite para irmos depressa até ao
centro de saúde.
Sem comentários:
Enviar um comentário