sábado, 19 de janeiro de 2013

O MERCADINHO


Está a chover. A cidade foi apanhada desprevenida. Foi sem aviso, pois o dia amanheceu azul. As pessoas correm para os abrigos mais próximos. Um corrupio de gente faz-se aos cafés, ao metro, às paragens de autocarro, às lojas.
- Devia chover assim mais vezes, ó Manel, quem nos cá dera esta clientela todos os dias! – alerta Josefa sorridente. O mercadinho encheu-se na entrada, pois a chuva não dá tréguas a quem segue nos passeios. O toldo aberto serve de chapéu-de-chuva aos que ali se resguardam, mas a fruta permanece estendida nas caixas, junto às hortaliças, cenouras, nabos e alfaces. A Dona Josefa avisa que no outro lado da loja também servem cafés e bolinhos. Tem cadeiras, e três mesas que servem para aquecer o vício enquanto a chuva não passa.
- Olha aí Manel, quatro bicas escaldadas, duas cheias, um descafeinado, e um Ucal morno de chocolate. Rápido rapaz, que hoje saiu-nos a sorte grande. A senhora também deseja um croissant simples e um com fiambre. É para o menino? Então deixe estar que eu vou cortar o fiambre num instante, bem fininho. Não foi meu querido, foi isso que pediste à mamã, fiambre bem fininho no croissant?
- Muito obrigado! Vês Rodrigo, como a Dona Josefa é simpática. Esta chuva é que não vem nada a calhar. Ele acordou febril e com tosse. Vamos ao centro de saúde. O dia hoje quis estar contra nós. Quem diria que ia chover.
Josefa corta o croissant e o fiambre para o menino, enquanto coloca a garrafa de leite de chocolate, um copo de galão, o outro croissant e a bica escaldada da Rita, num tabuleiro redondo.
- Manel, são mais duas bicas, e um galão. Anda lá rapaz, despacha o serviço enquanto chove…
Um vendaval súbito assusta quem passa na rua, e o pequeno mercadinho da rua enche-se com ainda mais gente.
- Quem nos cá dera mais dias assim, senhora Rita, quem nos cá dera…
Os olhos do Rodrigo estão vidrados. A sua bebida favorita vai fazê-lo sentir-se melhor, a par do sorriso da mãe.
- Não te preocupes, já me sinto melhor mamã. E já quase não tenho tosse.
Rita volta a colocar a mão na testa quente do filho.
- Não podemos demorar muito tempo. O pior é esta maldita chuva de que ninguém estava à espera. E logo hoje o teu pai tinha de sair mais cedo. É sempre assim. Estas coisas acontecem quase sempre na pior altura.

Corri desde o jardim até um mercadinho da rua onde existe um pequeno café. A chuva deixou-me encharcado como um pinto. Peço uma meia-de-leite bem quente. O passeio não me inspirou. Olho as pessoas que aqui se encontram. Pergunto-me que histórias têm para contar. Histórias vulgares de gente vulgar, muitas vezes são tudo menos vulgares. São surpreendentes os casos de vida que carregam, e alguns dariam romances extraordinários. Tenho de ser capaz de inventar uma história, até ao final da primavera, que seja capaz de prender os leitores. E como prender o leitor? Não posso, nem me quero preocupar com esse detalhe, mas o Lopes foi bem claro na última reunião que tivemos. - Procura escrever uma obra com uma componente misteriosa, cenários atípicos, maior dose de humor e, sobretudo, que seja bem provocante. - Tal e qual, como se me estivesse a encomendar um prato e me desse os ingredientes. Estou tramado! E no último romance os elementos foram o terror, uma vila pacata, e muita pressão psicológica. Sobre intensa pressão psicológica tenho eu andado só por lhe aturar as parvoeiras. – Olha que hoje em dia os nossos leitores são bem mais exigentes do que antes, e pretendem textos que sejam leves, inteligentes e criativos. – Mas o que ele me disse com aquelas palavras foi: - Faz um romance que venda mais do que os últimos dois, senão, pensa noutra editora! Resumindo, tenho de criar uma obra que seja leve, criativa, misteriosa, com uma equilibrada dose de humor, passada em cenários excecionais, provocante e muito inteligente.
- Posso dar a minha opinião? – pergunta o companheiro indesejado. – Deixei-te meditar, ficaste a sós embrulhado nos teus pensamentos, e a única coisa que aconteceu de importante foi ter começado a chover. Deixa que te diga que esses dados que referiste sobre o que tens de escrever são muito interessantes. Um romance deve ter sexo, para ser provocante, um bom crime e uma boa dose de mistério, tal como eu te disse. Descreves algo de trágico, para criar uma intriga inteligente, com uma ou várias mortes inexplicáveis, e com muita pancadaria e humor, pois essas são coisas leves. Ser criativo já é algo que terás de ser tu a procurar. Estás a ver? Verás que acabas de escrever antes do final da primavera, como é desejo do teu agente. Vai ser fácil!
Rui ficou com vontade de matar o companheiro, mas o próprio já se tinha encarregado dessa missão.
- Eu tinha-te pedido para ficar a sós com os meus pensamentos, não foi? Mas deixa lá, tens razão. Aceito a tua opinião. Começo a pensar que, se calhar, podes vir a ser-me útil na construção da obra.

- Olha, meu querido! Parou de chover! A mãe vai pagar. Acaba de beber o teu leite para irmos depressa até ao centro de saúde.

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