Tudo o que Rui pretende é recomeçar a escrever. Tem de o fazer, não vale a
pena continuar a adiar o inadiável, pois o problema não se resolve sozinho.
- Deixa-te levar pelo instinto, mas escreve. Dizem-me as vozes que tens de
escrever. Qualquer coisa que seja, mas escreve. Não podes continuar a vaguear,
à espera que a inspiração te seja entregue numa qualquer bandeja. Enquanto os
dedos estiverem parados, a obra está parada, mas, como vês, a obra está tudo
menos parada.
- És um filósofo! Depois de morto, teorias não te faltam. Desculpa, não era
bem isto que queria dizer. Nem te conheço. A verdade, é que nem eu próprio me
conheço. Penso muitas vezes que escrevo para tentar entender quem sou, para
saber quantos outros eus em mim habitam.
Rui viaja por palavras que não esperava encontrar, na esperança que elas
lhe façam regressar a inspiração. Está partido em pedaços, enredado em
personagens desconexas, como as histórias que iniciou. Escuta vozes, e sente a
presença de um dos seus donos que agora o acompanha. Nada é real, nada disto
pode ser real.
- Pensas que a magia se perdeu nas noites e nos dias seguidos que te correm
mal. Queres ter de volta dias azuis, sem canções tristes, só inspiração.
Escreve! Pega na caneta e escreve! Assim que os dias maus terminarem, e o
inverno acabar, os teus pecados regressarão e a tua escrita ficará tão colorida
com um raio de sol. Junta os fragmentos dessas tuas ideias para construíres a
obra, junta os restos, todos os pedaços, todas as sombras de todas as
personagens que povoam o teu espírito. Junta-lhes sangue e suor, mistura as
narrativas que ainda mal nasceram, atira-te para o branco da folha de corpo e
alma, atira-te, e escreve, escreve, escreve, escreve, escreve… até te doerem os
dedos, as mãos, os pulsos.
- O passeio só trouxe de volta a chuva, e pouco mais. As palavras não fazem
sentido. Não sei quem és, porque te mataste, porque me escolheste para
conversar. Prometo regressar às palavras se me disseres quem és, ou quem eras…
O vento escuta-se do lado de lá das vidraças da sala. A janela, fechada,
abre-se sem intervenção do escritor, e um pequeno vendaval levanta todas as
folhas da mesa, roubando algumas que voam para o céu da cidade, que se
transforma. Uma outra cidade, de um novo continente, surge do lado de lá das
paredes da casa. Um calor húmido invade o ambiente onde antes era Lisboa. Outro
rio nasceu e por ali viaja.
- Hoje sinto que sou um abrigo, ontem era a parede, o muro que ninguém
conseguiu quebrar. Só me apetecia morrer, sempre, a todos os instantes de cada
dia, até que perdi a noção dos porquês dessa vontade. Ver para crer, pois as
vozes que escuto assim me confiaram a tarefa. Por isso escreve, escreve, não adies!
Vou aproveitar a transformação da cidade e passear por esta nova que apareceu
no seu lugar.
- Foste tu que abriste a janela e fizeste com que tudo mudasse? – questiona
o escritor.
- Claro. Estavas a necessitar de uma mudança de ares. Agora sai, ou delicia-te
com a nova vista do apartamento. Eu, se fosse a ti, escrevia. Deixa que este
calor húmido tome conta de ti. Escuta os sons que aqui habitam, observa a luz
intensa, inebriante, alaranjada, quente.
O tempo parou, deixou de passar por aqui. Alguns habitantes estão junto ao
rio, a receber o novo dia. Dizem que as noites, por aqui, não são feitas para
dormir. Entretêm-se a contemplar bailados de fumo nas margens do rio, por onde
navegam velhas barcaças ao ritmo dos braços castanhos dos remadores. O nevoeiro
envolve-os, e parte da cidade desaparece debaixo do manto espesso que a cobre.
- O que esperas alcançar com este teu truque de ilusionismo?
Rui está inquieto, nervoso.
O mundo e as suas regras, escolheram este dia para se modificarem.
Sem comentários:
Enviar um comentário