O comboio avança paralelo ao rio. Isilda escolheu a mesma roupa de ontem, o
mesmo estilo, a mesma carteira, os mesmos óculos, os mesmos anéis e pulseiras
de sempre, o mesmo penteado, o mesmo lenço, os mesmos sapatos, a mesma
invisibilidade, a mesma caixa de medicamentos, as mesmas desilusões, o mesmo
toque de perfume, o mesmo ar sério, o mesmo olhar afiado, a mesma frieza. A jovem
rapariga muda de lugar, coloca-se à sua frente, escolhe um novo cardápio
musical, enfrenta o olhar gelado de Isilda com um sorriso quase angelical, enquanto
aumenta o volume do que escuta. Lá fora chove, e a vidraça suja da carruagem ganha
vida. As gotas caem ao som de Sakamoto. Ao seu lado senta-se um jovem que lhe
sorri. Helen refugia-se no semblante carregado de Isilda, onde nada se move,
onde as marcas invisíveis do tempo lhe desenharam esta penumbra onde se refugia.
A jovem pianista lê a pauta nas gotas que vão dançando no vidro, notas que
saltam à vista e lhe trazem outras melodias, outras notas que bailam num piano
que toca sozinho como no filme. As teclas brancas e pretas são a sua vida. A
música, a sua paixão, os sentidos sempre alerta, desde que acorda até que se
deita. O amor nunca acaba, a vida nunca acaba. Procura no tempo, nas pessoas, a
marca ímpar para a melodia que deseja compor. A cidade que escolheu para viver
tem uma luz única, e um povo misteriosamente acolhedor. Sentiu-se em casa desde
o primeiro ano que para cá veio estudar, e todos os dias se sente inspirada. A
irlandesa aprecia o sol, a praia, as gentes, a vida da capital, as paisagens junto
ao Guincho. Ao calor dos sorrisos, extrai os temperos necessários à criação. Dedilha
a música que lê na vidraça do comboio, nas rugas de Isilda, no sorriso atrevido
do rapaz, nas pinturas espalhadas pelas paredes que passam apressadas, no tempo
parado, espalhado por todo o lado, um passo sempre mais próximo da obra que
pretende iniciar. Para Helen, hoje é dia de Guincho, de mar, de passeio
salgado, e logo prepara-se para mais uma noite nos braços de quem ainda não conheceu
a alma, só o corpo. O amor, sempre o amor, necessário para a construção da
obra, dos sons, dos ritmos da balada que irá apresentar. Não receia nada do que
vê, não receia mais corações partidos, não receia deixar de ter quem a escute,
nem quem a ame de verdade. Foi aprendendo a deixar-se levar pelo vento, pela
música, pelas palavras da cidade e dos que a escutam. Os silêncios também
contam, os corpos consolados, o quarto vazio, partido em pedaços onde antes
existiu amor, e agora só existe Helen, a compositora. Esta é a cidade escolhida
pela jovem pianista irlandesa para se dar a conhecer ao mundo.
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