Como estava desinspirado, comecei a escrever
acerca das vidas de gente da cidade.
-
Escreve sobre a vida, sobre a vida depois da morte, sobre quem vive com medo da
morte, e por isso não vive. Fala da vida de heróis que não tenham medo da morte
e que tocam e abraçam as vidas dos outros. Se me orientares, posso ajudar-te
como ninguém nessa tua obra.
- O
que escrevi até agora são pequenos detalhes mal esboçados. Sem pensar, dei o
meu nome a um dos personagens, um homem que sai de casa para o emprego, ainda
de madrugada. Esse Rui é casado com a Rita, e têm um filho, o Rodrigo, com nove anos. O miúdo acordou com febre e vai ter de faltar à escola. A mulher dá-lhe a notícia, e diz que
o dia vai ser para esquecer, e que não há antipiréticos, e que lhe ligará por
volta das onze.
-
Hum! Não me parece grande coisa para início de um romance. Não escreveste mais
nada? Conta-me outro princípio.
-
Susana é uma jovem professora, muito distraída, que vive sozinha num prédio da
capital. O Afonso é seu colega, e tem um fraco por ela. A rapariga
esqueceu-se das chaves do carro em casa, e nem sabe onde o deixou estacionado.
Está atrasada, e volta para trás para as ir buscar. Tem o telemóvel quase sem
bateria, mas ainda liga ao Afonso para ele lhe dar boleia. O professor vinha a
conduzir, distrai-se com a chamada da Susana, e bate na traseira da viatura que
seguia à sua frente. O fulano que o conduzia é empregado de mesa num
restaurante da baixa que quase fechou o ano passado, e conta-lhe a vida toda
naqueles minutos que esperaram pela polícia.
-
Hum! Também não seduz. Essa tua historieta podia evoluir para um romance
tórrido entre os dois docentes, uma paixão com contornos picantes, pornográficos. Um
romance deve ter sexo, crime, uma boa dose de mistério e, de preferência, tudo
antes do final do primeiro capítulo. Acrescentas algo de trágico, uma ou várias mortes inexplicáveis, pancadaria, coisas assim desse género, estás
a ver? E nada de vampiros, putos a aprender magia em colégios, ou
extraterrestres. Sexo, morte, sangue e porrada com requintes de malvadez, isso
é que vende!
-
Não sei onde chegaremos com esta conversa. Estou com sérias dúvidas de que me
possas ajudar. Preferia estar sozinho com a minha desinspiração.
-
Tudo o que te disse é verdade, sabes bem que sim. E não tens outros inícios?
Conta mais!
Fecho
os olhos. Continuo a sentir a sua presença. Quero dar o passeio que ficou adiado
desde a chegada do visitante.
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Vou sair, dar uma volta. Tu vem, ou fica, faz como quiseres. Calculo que a tua
decisão não tenha em consideração a minha vontade.
-
Enquanto caminhares, conta-me as histórias que eu prometo não fazer mais
comentários.
Saio
para a rua e caminho largos minutos sem abrir a boca. Sigo, sem rumo definido,
pelo largo passeio da avenida. Subo até à rotunda e atravesso-a para o lado do
jardim. Sento-me num dos bancos vazios esperançado em ter perdido a companhia.
-
Se precisar de ficar sozinho com os meus pensamentos, de meditar para tentar
encontrar uma fonte de inspiração, posso contar com a tua compreensão?
-
Claro que sim! Basta falares comigo como agora fizeste. Diz, sem receio,
aquilo que pretendes de mim.
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