sexta-feira, 24 de maio de 2013

A OBRA NÃO CRESCE



Ninguém tem nada para dizer. A viagem segue silenciosa, e Filipa mal consegue esconder o nervosismo. É sempre assim quando o pai está por perto. Os dois nunca tiveram uma boa relação, e ela era ainda muito jovem quando entre eles se formou um fosso imenso, que cresceu de forma irreversível.
Uma fila interminável de veículos arrasta-se com lentidão pelas três faixas de rodagem, em ambos os sentidos. O dia está a ser difícil. Augusto tinha razão quando disse que a ponte Vasco da Gama teria sido uma melhor opção para o trajeto.
Mais uma viatura dos bombeiros tenta furar o tráfego, escoltada por motorizadas da polícia.
Filipa agarra-se ao volante com uma força tremenda, como se o desejasse arrancar. O António nunca teve o hábito de lhe contar coisas acerca da sua vida lá por França.
Joel entretém-se a observar os aviões que passam por cima deles e se fazem à pista da Portela. Nestas situações seria bom ter um carro voador. Os filmes de ficção científica, que tanto adora, antecipam futuros com veículos voadores a sobrevoarem prédios gigantescos, mas já chegámos ao século XXI e nada disto é ainda realidade. Continuamos a desperdiçar imenso tempo, arrastando-nos com lentidão num tremendo consumo de energia que nos desgasta os nervos. As cabeças deixam de raciocinar, os reflexos tornam-se lentos, e as rotinas e os cansaços tomam conta de todos os dias.

Pensei desistir!
A pressão dos prazos tem sido insuportável, e as minhas últimas obras ressentiram-se da situação.
Ela observava, com curiosidade, tudo o que se passava em seu redor. Olhava para tudo com atenção, e olhou para mim, tentando entender porque estaria alguém a escrever naquele lugar. Mirou-me, como mirara outros. Ao início foi assim, até que recomecei a escrever e os olhos da bonita ruiva voltaram-se para mim. Estava sentada na mesa em frente à minha. O café, naquele dia, àquela hora, estava pouco movimentado. Uma luz muito clara e difusa entrava pela grande janela e iluminava o espaço. Os nossos olhares cruzaram-se, mais uma vez, como se ela me questionasse: - O que escreves? Porque escreves? Porque o fazes aqui, neste lugar? Como consegues inspirar-te nesta constante agitação, com tantas conversas e ruídos de fundo. Qual é o teu nome?
Os volumes das conversas ampliavam-se cada vez mais. Um homem discursava ao telemóvel, quase a gritar, uma senhora conversava, aos berros, com as amigas, para melhor se fazer escutar. As duas pequenas televisões de ecrã plano passavam, em silêncio, as imagens com as notícias de dois diferentes canais de informação. Quatro homens entraram, sentaram-se e pediram cervejas, num tom de voz desagradável e autoritário, à empregada que limpava as mesas vazias. O homem do telemóvel continuava a gritar, talvez com receio que a sua voz não chegasse ao outro lado da chamada.
O senhor Abílio, empregado de longa duração deste café-restaurante da baixa, já preparava as mesas para o almoço. O estabelecimento esteve quase para fechar pois a concorrência era cada vez mais feroz. Os donos conseguiram revitalizar o negócio com algumas modernices e uma adequada estratégia de preços para estes tempos difíceis.
Os nossos olhares cruzaram-se uma vez mais.
Admirei a beleza da jovem, que esboçou um pequeno sorriso.
- Quem és tu? – pensei sem verbalizar. – Porque olhas para mim? O que fazes tu no “meu” café?
Pedi uma bica ao senhor Abílio, e quando os meus olhos tentaram redescobrir os olhos da rapariga, ela tinha desaparecido. Levantou-se da mesa durante esse instante, e foi-se embora sem que eu me tivesse apercebido. Descobri-a na rua, a passar em frente à grande vidraça que está virada para a praça da avenida. Seguia de mochila às costas e com uns grandes auriculares nas orelhas. Antes que ela desaparecesse para sempre, fui atrás dela com o firme propósito de a conhecer. Que mal poderia acontecer? Quanto muito, chamar-me-ia de parvo, ou um qualquer outro nome. Nada disso sucedeu. A rapariga era uma pianista irlandesa que se encontrava a estudar em Lisboa ao abrigo do programa Erasmus. Era muito simpática e linda de morrer.

A obra não cresce.
A pressão do tempo é enorme.
As personagens estão enclausuradas numa imensa teia invisível que Rui não consegue derrotar.
O enredo não se desenvolve.

Nessa noite, transformada em madrugada, a bela irlandesa mostrou-me como as suas mãos brancas de dedos ágeis viajavam pelas teclas do piano mágico, e redefiniu a minha conceção de genialidade.
Avançou para mim depois de terminar de tocar.
O chão do apartamento recebeu os nossos corpos desnudados, foi a nossa cama e os nossos lençóis.
Ainda hoje não faço a mais pequena ideia de como ali chegámos com tanta rapidez.


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