Como de costume, Sofia preparava-se para
levar o Tiago à escola antes do seu mundo ruir. Um vazio profundo e um nevoeiro
denso tomaram conta de si. O menino tem a mochila preparada junto à porta de
casa, uma escultura de lona vermelha e azul, com desenhos do homem-aranha a
esvoaçar por entre arranha-céus.
Sofia chora, em silêncio. Tiago continua
de pé, a olhar a mãe, sem saber o que dizer. Os pais vão mesmo separar-se. A
discussão desta manhã foi a prova de que entre eles tudo acabou. Ao que parece,
o pai gosta de outra mulher.
A mãe mexe e remexe no telemóvel como se
nele existissem coisas muito importantes. No meio da névoa, Sofia olha para o
filho e pede-lhe que vá acabar de arrumar o quarto. Hesita um milhão de vezes
antes de ligar ao Afonso. Menos nervosa, resolve fazer a chamada. O estúpido
tinha logo que se ter enfiado na cama com outra. Parvalhão! Cabrão de merda!
Ao contrário do que imaginou, o Afonso
atende.
- Sim, diz lá o que é que queres. Olha que
não posso demorar muito, acabei de ter um acidente. Não, não foi grave, eu
vinha distraído e bati na traseira do carro que seguia à minha frente. Foi uma tolice.
- Então, ligo-te mais tarde. Precisamos
mesmo de conversar, eu e tu.
Tiago regressa do quarto. Não fez a cama,
não conseguiu, ou melhor, não estava com vontade nenhuma de a fazer. Escutou as
últimas palavras de Sofia, e pergunta-lhe:
- Quem era, mãe? Estavas a falar com o
pai?
Ela diz-lhe que sim através de um rio de
lágrimas que não consegue evitar.
Toca a campainha da porta.
Quem poderá ser a esta hora da manhã?
A campainha volta a tocar.
Sofia espreita e vê que é o vizinho do
lado. O que quererá ele?
- Olá, bom-dia. Peço desculpa, Sofia, não
a vou incomodar por muito tempo.
Tiago aproxima-se da porta e coloca-se ao
lado da mãe.
- Olá, Tiago, estás bom? – cumprimenta o
vizinho.
- Olá, senhor José! – responde o menino.
Um silêncio estranho e incómodo instala-se
por segundos, até que o homem começa a falar:
- Sabe, Sofia, ontem, pela noitinha,
aconteceu-me uma coisa completamente absurda. Eu estava junto à janela da sala a
ler um livro que o meu irmão me ofereceu pelo Natal quando, sem querer, ele escorregou
das minhas mãos. Caiu da janela abaixo! O pior é que aterrou mesmo em cima do
vosso carro e fez disparar o alarme. Quando olhei, vi que muitos vizinhos já
estavam na rua a tentar compreender o que se tinha passado. Foi por isso que só
hoje decidi vir apresentar as minhas sinceras desculpas pelo ocorrido. Se o
carro estiver danificado, eu pago todos os danos causados pelo incidente. Uma
coisa destas nunca me tinha acontecido, até me sinto envergonhado…
Sofia não estava à espera disto. O vizinho
é, e sempre foi, muitíssimo educado, e algo misterioso também. O Tiago acha-lhe
imensa graça. É uma pena que um homem assim tão bonito tenha quase sempre uma
expressão entristecida.
- Não se preocupe, Zé Paulo, a sério. Não
merece a pena. Essa é mesma a última coisa com que se deve preocupar.
O Tiago achou piada à história do livro.
Será que a sua playstation também
aterrou em cima de algum automóvel? Isso teria sido uma coisa “bué da fixe”!
- Não? Olhe que eu faço questão em pagar
os danos que vos tenha causado. Nem ficaria de bem com a minha consciência se
isso não vier a acontecer. – insiste Zé Paulo.
Por qualquer razão misteriosa, Sofia
imagina o galante José a segurá-la pela mão, a pegar-lhe ao colo, a beijá-la
com ardor, e a levá-la até ao seu quarto para fazerem amor o resto do dia.
Por qualquer razão misteriosa, este
pensamento foi de curtíssima duração. O Tiago trouxe-a de volta à realidade.
- Então, mãe, como vai ser? Hoje não me
levas à escola?
Zé Paulo sorri. Pela primeira vez Sofia
descobre a beleza singular do sorriso do vizinho.
- Tens razão, Tiago. A culpa é toda minha!
Estou a atrasar-vos. Vou-me já embora. Sofia, não se esqueça. Se houver algum
dano no carro, diga-me imediatamente. Olhe que ficarei zangado se não o fizer.
Por qualquer razão misteriosa, Sofia
também sorri. De verdade. Um sorriso. Quem diria? Depois de tudo aquilo por que
já passou neste dia de merda.
- Anda, Tiago, vamos lá. Eu levo-te à
escola. Vamos fazer de conta que este é um dia tão normal como qualquer outro.
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