quinta-feira, 16 de maio de 2013

UM MUNDO DE PERNAS PARA O AR




Rogério gostaria que alguém lhe explicasse o que se está a passar. Ele deu instruções muito claras para que os doentes fossem encaminhados para as urgências de outros hospitais, mas lá fora a fila de ambulâncias não para de aumentar.
Hoje é um daqueles dias em que só lhe apetece desaparecer.
Madalena entra de rompante no gabinete do marido, que fica visivelmente perturbado com a situação.
- Credo, mulher! Estás parva ou quê? Mas será que hoje toda a gente resolveu endoidecer?
- Só se fores tu! Ninguém tem culpa que não consigas recusar os convites que te fazem. Como se já não bastasse o trabalho que tens acumulado, ainda aceitaste fazer parte da organização do colóquio e participar nessas conferências que tanto te aborrecem. Será possível que ainda não saibas o que aconteceu? Andas mesmo muitíssimo ocupado, Rogério!
O mundo hoje resolveu virar-se de pernas para o ar. O que será que Madalena está a insinuar? O médico não entende as palavras da mulher, e pede-lhe uma explicação.
- Ó Rogério, com franqueza! Ninguém fala noutra coisa! Um carro explodiu em frente ao nosso prédio. Acabei agora mesmo de telefonar à Fátima, que me disse que fecharam a rua e que há muitos edifícios com as janelas todas estilhaçadas. As autoridades suspeitam de um atentado terrorista. Os noticiários estão a passar as imagens em direto, mas tu não sabes de nada! Estás sempre tão atarefado! E olha que mais logo vai ter de ser um de nós a ir buscar os miúdos à escola. A Fátima está com os nervos em franja. Tinha acabado de chegar da rua com o Einstein quando o carro foi pelos ares. Foi por pouco que escaparam à explosão.
Rogério continua com a cabeça de tal maneira sobrecarregada com os assuntos do hospital, que a voz de Madalena soa-lhe distante e distorcida. Este é mesmo um daqueles dias em que gostaria de desaparecer. Necessitaria de um dia com quarenta e oito horas para conseguir colocar em ordem todas as tarefas e os mil e um documentos que se acumulam em cima da secretária do gabinete.
Madalena envelheceu, ele próprio sente-se mais velho.
Esta história parece saída de um filme com um péssimo enredo.
O computador deixa de funcionar. Comunica-lhe uma série de erros através de umas letras brancas num fundo azul que embeleza o ecrã. Que bela altura para fazer um intervalo.
- Mas que raio de história é essa?! Uma explosão? Por causa de um atentado? E foi mesmo em frente ao prédio? Aconteceu alguma coisa ao nosso apartamento?
Madalena sente-se muito mais velha, mas o Rogério parece ter envelhecido uns cinco ou seis anos neste ano que passou. Responsabilidade, inquietações, preocupações, excesso de trabalho, falta de descanso, falta de férias, e tudo isso, para quê? O rosto do marido atraiçoa-o, já não consegue esconder as pavorosas marcas da malfadada rotina, que não mata mas mói! Terá sido por isso que ela recordou os seus dias de infância na Beira, quando o pai a abraçava e com ela dançava pelo salão do hotel como se o mundo ficasse para todo o sempre eternizado na magia daquele instante? Foi ontem que aconteceu. Ontem, só ontem. Assim volta a jurar!
- Porque não vamos passar uma semana de férias com os miúdos a Florença, Rogério? O que me dizes a descansar uns dias, e abalarmos daqui para fora? Estamos cansados, tu estás exausto, e o pior de tudo é que nem dás conta disso. Então, o que achas da minha ideia?
Definitivamente, este dia não amanheceu igual aos outros. Uma qualquer estranha confluência dos astros, como diria o irmão, está a transformá-lo nesta irreal sucessão de acontecimentos.
- Tens cada uma, mulher! A sério? Só mesmo tu para falares de férias numa altura destas. Florença, e porque não o Cairo, Banguecoque, Miami ou Sidney?
Onde está o sentido de humor e de aventura do marido? Madalena sente a falta desses seus predicados, e do sorriso rasgado com que costumava iluminar todas as conversas. Para onde terão eles desaparecido?

Jorge sente um pequeno aperto no peito. Alguns carros buzinam ao passarem perto de si. O menino continua intrigado com os sapatos que ali encontrou, e com as meias bem dobradas e assim guardadas lá dentro. Porque terá o homem largado o bonito chapéu da seleção nacional? Gostaria de conhecê-lo para lhe perguntar porque abandonou estas peças de vestuário. Talvez o senhor não esteja lá muito bom da cabeça. Uma pessoa, quando está triste, é capaz de fazer coisas muito estranhas. Pelo menos é isso que acontece quase sempre com a sua mãe. E para onde terá fugido este homem misterioso?

- Sabes, Rogério, li num artigo que a maior parte das pessoas não tem coragem para romper com as rotinas. O curioso da situação, é que conseguem, em média, ter três ou quatro excelentes ideias de como o poderiam fazer. Acho que seria muito bom para nós se conseguíssemos tomar uma decisão que fosse acerca do que nos está a acontecer, ao invés de assumirmos esta postura de trampa que nos tem vindo a sufocar nestes últimos meses! Mas preferiste ter uma atitude de merda e gozaste com a minha proposta! Estás a ficar cada vez mais idiota à medida que o tempo passa, e quanto aos miúdos, não te incomodes que eu passarei pela escola para os ir buscar!

Jorge não resiste, e coloca o chapéu na cabeça.
Que vista tão bonita se tem daqui de cima.
Este está a ser um dia verdadeiramente especial.

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