quarta-feira, 24 de abril de 2013

UM VELHO CABRÃO



Susana acabou a primeira aula da manhã antes da hora. Os miúdos estiveram muito irrequietos, ou então é só ela que anda mais sensível. Hoje é sexta-feira, e o fim-de-semana está à porta. Esta turma consegue dar-lhe cabo dos nervos, e os miúdos portaram-se ainda pior do que quando não falta ninguém. Os primeiros dias de aulas do segundo período são quase sempre assim.
- “Stora”, podemos sair mais cedo? O oitavo A não teve aulas. Ainda devem estar no campo a jogar à bola, “stora”. Podemos ir lá ter com eles? – pergunta o Vicente, que conseguiu fazer os trabalhos de casa em direto no quadro, sem que a professora desconfiasse. – Vá lá “stora”, olhe que hoje até nos portámos “bué da bem”!
Faltam quatro minutos para o toque. Que mal lhes podem fazer uns minutinhos a mais no intervalo?
- Pronto, então está bem. Mas é só hoje, e não façam barulho ao sair da sala.
Os alunos parecem ter molas nos rabos. A sala fica deserta num instante. A última a sair é a Constança, como de costume. A rapariga tem sempre qualquer coisa para dizer no final de cada lição, mas hoje, estranhamente, furou essa rotina. Assoa-se a um lenço de papel, e sai sem sequer se despedir. Anda adoentada, como muitos dos seus colegas. Esta maldita gripe não há meio de acabar.
Susana tem a bateria do telemóvel quase carregada, e o visor informa que o Afonso tentou ligar-lhe por sete vezes. Deve ter acontecido alguma coisa, só pode.
- Sim, Afonso? Então, o que é que se passa? Acalma-te, não consigo entender nada do que me estás para aí a dizer. Uma quê? Uma bomba!? Ao pé do prédio? Mas tu estás parvo, ou quê? Tiveste um acidente… fala devagar, homem, credo! Mas que barafunda vem a ser essa? Estarás bom da cabeça, é mesmo verdade essa história da bomba? Sim, tive de voltar atrás porque não sabia das chaves do carro. Liguei-te e fiquei sem a bateria dentro do elevador. Nem sei como consegui chegar a tempo à escola, o trânsito estava um caos, mas lá me consegui safar. E tu, ainda estás aí parado no meio da estrada? Não, … e o carro anda! Foi tudo uma imensa chatice. E que conversa é essa da bomba, isso é mesmo verdade, não estás a brincar comigo, pois não? É que não tem graça nenhuma, Afonso! A sério, foi mesmo o carro daquele gorila que foi pelos ares? E ele estava lá dentro… o melhor é eu ir a casa no intervalo do almoço. Está a dar nas notícias, é, eu já vou ver. Não vais conseguir vir à escola esta manhã, pois não? Queres que eu vá dizer alguma coisa na direção, … já lhes ligaste, então está bem, eu não vou lá. Mas que cena mais marada, chiça, até me estou a arrepiar toda.

E se hoje fosse ele a ligar ao irmão, e não o contrário? O Rogério era capaz de ficar admirado. O livro que lhe ofereceu acabou por ser muito útil. As noites estão frias, e o voo do pássaro de papel aqueceu-lhe a última madrugada.
Não, afinal não lhe vai ligar. Deve estar muitíssimo ocupado. Desde que começou a trabalhar no hospital Garcia de Orta, a vida do irmão ficou ainda mais cinzenta. Coitado! Deixou-se enrolar na conversa fiada do velho Sepúlveda. Ele que tanto gostava de desenhar e de pintar. Pobre miúdo.
Desde que a pistola saiu da gaveta do excelentíssimo doutor Sepúlveda, a vida deles nunca mais foi a mesma. Se ao menos a mãe tivesse ficado sossegada por mais uns instantes, se ao menos ele tivesse sido um pouco mais corajoso, se ao menos o Alexandre tivesse chegado um bocadinho mais tarde, se ao menos o brilho da lua, naquela noite, não tivesse invadido o quarto dos pais com aquela tonalidade iridescente, se ao menos o Rogério não tivesse acordado, se ao menos as leis da física permitissem alterar uma destas variáveis, se ao menos o cano da pistola tivesse brilhado, se ao menos os berros da senhora dona Deolinda não tivessem acontecido, se ao menos…
O velho senhor doutor Sepúlveda até de pijama tinha um ar solene, com as suas olheiras carregadas, as sobrancelhas grossas e grisalhas, a tez morena no rosto retilíneo e anguloso. Porque terá sorrido o raio do homem, enquanto a arma lhe aquecia a mão? Porque será que o pai sorriu daquela maneira enquanto lhe apontava a arma à cabeça?
Velho cabrão! Uma infância de merda moldou-lhe aquela verdadeira alma de velho cabrão.

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