Carla não faz a mais pálida ideia de como
tudo aconteceu. Não consegue falar, mal consegue pensar. As lágrimas amparam-na
naquela escuridão onde se abrigou, um abrigo sem som, sem luz, sem tempo, e sem
imagens. A morte chegou para o Armando, e ela quase que morria também. Vai
explicando aos anjos, baixinho, que não teve nada a ver com o atentado. Cerra
ainda mais os olhos no escuro, debaixo dos lençóis da cama, para esquecer o que
viu, para tentar desaparecer, mas o Audi vermelho não para de explodir-lhe na
cabeça. Uma estranha justiça, com regras de ofídia, ordenou esta sentença. Um
grande alívio, recheado com medo e alegria, uma mistura ingrata de regozijo e
desconfiança, tudo motivado por esta inesperada condenação.
Rui escreve apenas o que escuta.
Acrescenta, com lentidão, mais uma linha a
um novo parágrafo.
A obra cresce, fragmentada, com grande
dificuldade.
Cada página é uma nova porta que se vai
entreabrindo. Necessita, por isso, de ter a janela da sala sempre aberta.
As vozes resolveram pregar-lhe um pequeno
susto, e o escritor julga que elas vão, de novo, desaparecer. As letras pesam
mais que meteoritos, e atormentam-lhe as noites.
- Atira as palavras pela janela! – diz-lhe
o companheiro invisível. – Lança-as aos ventos e espera que se espalhem no
asfalto. Deixa-as caídas no chão, junto à sarjeta. Faz-lhes essa maldade. O
universo não é teu camarada e tem-se andado a divertir às tuas custas. Está
será apenas uma pequena vingança. Os dias, depois, ficarão mais tranquilos.
- Merda para isto! Nada do que hoje
escrevi faz algum sentido. Hibernei, disseram-me que estive hibernado, mas as
vozes permanecem escondidas. Não sei o que fazer para conseguir alterar este
estado de coisas.
As letras custam a sair.
A noite chegou, e a obra tarda.
Amanhã o escritor regressará aos caminhos
esforçados da escrita.
Sem comentários:
Enviar um comentário