quarta-feira, 24 de abril de 2013

OS CAMINHOS ESFORÇADOS DA ESCRITA



Carla não faz a mais pálida ideia de como tudo aconteceu. Não consegue falar, mal consegue pensar. As lágrimas amparam-na naquela escuridão onde se abrigou, um abrigo sem som, sem luz, sem tempo, e sem imagens. A morte chegou para o Armando, e ela quase que morria também. Vai explicando aos anjos, baixinho, que não teve nada a ver com o atentado. Cerra ainda mais os olhos no escuro, debaixo dos lençóis da cama, para esquecer o que viu, para tentar desaparecer, mas o Audi vermelho não para de explodir-lhe na cabeça. Uma estranha justiça, com regras de ofídia, ordenou esta sentença. Um grande alívio, recheado com medo e alegria, uma mistura ingrata de regozijo e desconfiança, tudo motivado por esta inesperada condenação.

Rui escreve apenas o que escuta.
Acrescenta, com lentidão, mais uma linha a um novo parágrafo.
A obra cresce, fragmentada, com grande dificuldade.
Cada página é uma nova porta que se vai entreabrindo. Necessita, por isso, de ter a janela da sala sempre aberta.
As vozes resolveram pregar-lhe um pequeno susto, e o escritor julga que elas vão, de novo, desaparecer. As letras pesam mais que meteoritos, e atormentam-lhe as noites.
- Atira as palavras pela janela! – diz-lhe o companheiro invisível. – Lança-as aos ventos e espera que se espalhem no asfalto. Deixa-as caídas no chão, junto à sarjeta. Faz-lhes essa maldade. O universo não é teu camarada e tem-se andado a divertir às tuas custas. Está será apenas uma pequena vingança. Os dias, depois, ficarão mais tranquilos.
- Merda para isto! Nada do que hoje escrevi faz algum sentido. Hibernei, disseram-me que estive hibernado, mas as vozes permanecem escondidas. Não sei o que fazer para conseguir alterar este estado de coisas.
As letras custam a sair.
A noite chegou, e a obra tarda.
Amanhã o escritor regressará aos caminhos esforçados da escrita.


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