sábado, 20 de abril de 2013

ELE HÁ CADA MALUCO NESTE MUNDO...



São muitos os mirones que estão junto ao local da explosão. A polícia não se cansa de dar ordens para que as pessoas circulem e não fiquem por ali paradas. Não serve de nada.
Dona Josefa sentiu o forte estrondo. O pequeno café do mercadinho ainda estava bem composto de freguesia quando a coisa se deu.
- Ai credo, valha-me Nossa Senhora! Tu ouviste isto, Manel?
Quatro bicas ficaram por pagar, mais duas torradas, duas sandes de fiambre e um chá de limão. As pessoas assustaram-se de tal maneira que nem se preocuparam em pagar.
- Aquilo não deve ter sido brincadeira nenhuma. Vai lá abaixo ver o que é que aconteceu, Manel, vai lá. Coisa boa é que não deve ter sido.
Um cliente permanece sentado a uma das mesas, sem mostrar qualquer preocupação com o sucedido. Josefa pensa que o homem deve ser algum maluquinho, ou então é surdo. Uma coisa destas põe qualquer um em sobressalto.
Mais de metade dos clientes saíram a correr, e os outros estão do lado de fora do estabelecimento, junto à entrada, a olhar para a espessa nuvem de fumo que se formou a três quarteirões de distância. Uns dizem que talvez tenha sido uma botija de gás, ou alguma fuga numa instalação que pode ter causado o acidente.
- Porra! Olha só para aquilo, foi um estouro do caraças! – exclama o invisível. – Até consigo saborear o cheiro intenso desse fumo, as labaredas do carro destruído, os outros automóveis a irem pelos ares e o pessoal todo a admirar o espetáculo.
Olha lá, nunca te disseram que é falta de educação olhar para aquilo que as outras pessoas estão a fazer? Eu não te consigo ver, mas não é simpático da tua parte aproveitares a tua situação para espiares o meu trabalho. Além do mais, isso só me atrasa. Interrompeste a minha rotina e os meus raciocínios. Que grande merda! Agora já nem sei o que estava a escrever. Belo ajudante que tu me saíste. Não sabias ter ficado calado?
- Não consegui evitar, foi mais forte do que eu. – responde o amigo improvável.
Vou ter de deixar de beber tanto café. Fico nervoso com estas coisas comezinhas, e depois arrependo-me logo das palavras. Se o invisível não conseguiu deixar de manifestar a sua opinião, é porque a história não lhe foi indiferente.
- Olha, sabes que mais, sou mesmo um parvo? Desculpa, já me arrependi do que te disse. Às vezes falo depressa demais. Estava mesmo a precisar de um intervalo.
Não faço a mais pequena ideia dos locais por onde este amigo invisível se movimenta. Até agora ainda não me disse quem é, como se chama e o que fazia na vida antes de se ter atirado ao Tejo.
- Para que queres saber quem sou e o que fazia? Isso não tem importância. Se eu aqui estou, foi porque tu me chamaste. Eu tão pouco sei o que se passa comigo. Quando o meu corpo mergulhou nas águas do rio, eu já não estava vivo. Devo ter morrido de ataque cardíaco durante a queda. Não me lembro de ter voado, só tenho uma vaga lembrança do momento em que me coloquei de costas voltadas para o rio e me deixei cair. Depois chamaram-me, numa língua desconhecida. Eu vi médicos do I.N.E.M. a colocarem o meu corpo numa maca, junto ao cais onde estava montado um aparato de todo o tamanho. Enfiaram-me dentro da ambulância que arrancou com as sirenes desligadas. Estava por lá muita gente, e alguns jornalistas também. Tive mais olhos a olharem para mim depois de morto do que em todo o meu tempo de vida. Voltaram a chamar-me, num dialeto invulgar mas que me foi fácil de entender. Deram-me esta incumbência e não me disseram mais nada. Vim parar aqui porque, segundo me explicaram, precisavas muito da minha ajuda.
- Eu?! Eu é que precisava da tua ajuda? As tuas palavras não fazem sentido. Já te perguntei tantas coisas e tu foges sempre com as respostas. Isso em nada me tem ajudado. Vou confessar-te um pequeno segredo. De vez em quando tenho sonhos tão reais que me ficam colados por dias na memória. Sabes o que faço com eles? Aproveito-os para retirar ideias para as minhas histórias. Estás a ver, é ou não é uma prova de amizade da minha parte? É um pequeno presente que te ofereço pela minha indelicadeza de há pouco.
Silêncio.
Não me responde.
Estes são os momentos em que julgo ter endoidecido de vez.
- Procuro tanto as palavras para os meus enredos que acabo por inventar ajudantes fantasma.
- Inventas mas é o caraças, ó escritor! Deixa lá de dizer disparates e aproxima-te da janela. Olha que dia maravilhoso! Hoje estás proibido de escrever coisas acerca de bombas. Deixa para outra altura essa parte da narrativa em que o Armando é morto, e a Carla fica num profundo estado de nervos. Vem cá, aproveita a vista que tens da tua sala. Respira o ar desta magnífica manhã de sol. Dificilmente encontrarás uma melhor forma de inspiração.
Resolvo aceitar a sugestão. Assim que chego à janela, toca o telefone. Não atendo, não quero que nada me distraía. Devia ser o Lopes, de novo.
O Tejo está cheio de paquetes. Lisboa está vestida com as cores da primavera. Esta não é a mesma cidade do prédio das bailarinas. O que se terá passado comigo naqueles mais de trinta dias que por lá fiquei? Lembro-me de ter subido a escadaria do edifício que cheirava à mais doce das pastelarias. A música inconfundível da irlandesa embalava-me e dizia-me para continuar a subir. Encontrei o último piso. Abri uma porta de vidro que dava acesso a um pátio octogonal com quatro portas de apartamentos. Era dali que emanavam os aromas perfumados que inundavam a construção. Por detrás de uma delas nasciam os acordes maravilhosos do piano de Helen.
Desta minha janela vejo a ponte e imagino o prédio da pianista a brotar do chão, no outro lado da rua, junto ao arvoredo. Cresce, transparente, na vertical, muito depressa. Ergue-se como uma imensa torre de cristal. No último andar ilumina-se a janela que eu descrevi. Vejo a pianista nua, sentada ao piano, a compor as suas melodias encantadoras. Ao seu lado alguém se movimenta. Uma mão masculina acaricia-lhe as costas, os ombros e o rosto. Um homem levanta-se e chega perto dela. Abraça-a por detrás, acaricia-lhe os seios, beija-lhe os ombros e o pescoço delicado. A música não para.
Recordo-me de ter subido ao último andar.
Escutei as melodias que saíam da porta com a letra B.
Não me lembro de mais nada.

- Dona Josefa, dona Josefa! Nem vai acreditar! – grita o Manel quase sem fôlego. – Foi uma bomba que explodiu, e um carro voou pelos ares. Aquilo ali ao fundo da avenida até mete medo, dona Josefa. É só carros a arder e casas com vidros partidos. Disse, quem viu, que estava um senhor dentro do carro que voou. Esse já cá não mora! Aquilo está mesmo uma coisa medonha, só lhe digo.
Um homem continua sentado, impávido e sereno, com se nada se tivesse passado. Escuta as palavras do rapaz, e pede a conta à dona Josefa.
- Queria pagar a bica e um pastel de nata, se faz favor.
A mulher estava tão perturbada com a novidade que nem escutou o pedido. O estranho cliente deixou cinco euros em cima do balcão, junto à chávena do café. Ao sair do mercadinho, pediu licença e passou entre a patroa e o empregado, despedindo-se com palavras enigmáticas:
- Então até logo, tenham um bom-dia. O universo sabe bem aquilo que faz, e hoje premeditou esta espantosa estratégia de aniquilamento.

Helen parou de tocar.
Da janela continuo a ver a ponte e o prédio transparente da pianista.
Ela permite os afetos e as carícias do desconhecido. Levanta-se, vira-se, abraça-o e beija-o apaixonadamente.
O prédio reinicia o movimento.
Apaga-se a janela do quarto onde a cena acontece.
O prédio desaparece para dentro do chão que o viu crescer.
Volto a ver a ponte, o rio, e o extenso arvoredo que habita do outro lado da rua.

- Ouviu aquilo, dona Josefa? O que é que o homem disse? Ele há cada maluco! Chiça!
- Tens razão, Manel. Ele há cada doidinho neste mundo!

Sem comentários:

Enviar um comentário