O livro voou pela janela, desgovernado,
como um pássaro ferido.
Zé Paulo aproxima-se do parapeito da
janela para melhor observar as folhas e a capa a esbracejarem. O objeto luta
contra o efeito perverso da lei da gravidade. Não voa, antes cai como um
bumerangue alvoroçado. As asas brancas de letras negras tentam resistir, mas
esta simples lei da física está a derrotá-las com facilidade.
A força gravítica do mais forte vence as
palavras que procuravam fornecer pistas para o complexo funcionamento do
universo. Zé Paulo ri-se ao vê-las cair desengonçadas.
Da Vinci analisou vários princípios e
projetou alguns aparelhos para levar de vencida esta força que tudo atrai.
Observou e estudou, como ninguém, o voo dos pássaros, a arquitetura das asas de
morcegos, os maneirismos com que se erguiam nos ares. Quantos foram os livros
atirados por ele pela janela? Quantos bumerangues descontrolados terão por ele
sido lançados ao ar? O génio cientista fazia tantas perguntas que até se
esquecia de dormir. Foi rápido a entender que teria de ser ele próprio a
encontrar as soluções.
Zé Paulo gostaria de assistir, por uma
vez, à vitória deste improvisado pássaro de papel. O universo rege-se por
princípios e leis que o homem ainda mal conhece, mas alguns conseguem preencher
dezenas de volumes com teses e teorias opulentas.
- Este vai ser o livro que vencerá a gravidade.
Perderá peso e massa, ganhará a consciência de uma borboleta monarca, e no
último instante voará majestoso para bem longe daqui. – declama à janela com um
brilhozinho nos olhos.
O livro esbraceja ainda mais nos últimos
metros da viagem e atinge, com violência, o tejadilho de um Alfa Romeu branco
que estava estacionado em cima do passeio. O alarme dispara com intenção de
acordar toda a vizinhança.
- Que merda! Ainda não foi desta! A
poderosa força gravítica do automóvel impôs-se a mais uma nobre tentativa. Só
espero que o dono da viatura aprecie mais o livro do que eu. – desabafa
enquanto vai observando as consequências do seu ato.
Na rua juntam-se alguns dos moradores do
prédio, a presumível dona do carro e mais dois ou três anónimos que por ali
passavam. Pela maneira como se movem, não suspeitam que o alarme tenha sido
disparado por causa de um insólito meteorito quadrangular formado por páginas
com teoremas excêntricos. O livro embateu no teto da viatura e ressaltou para o
meio da estrada onde foi atropelado por três vezes. Está muito mal tratado. O
universo premeditou esta humilhante estratégia de aniquilamento.
Zé Paulo liga a televisão com a janela
aberta. Pode ser que o manual tenha aprendido a lição e regresse a casa menos
altivo. A esta hora os canais não passam nada que tenha interesse. Filmes
repetidos, inenarráveis novelas que se estendem pela madrugada dentro, os
mesmos comentadores de sempre a tecerem pela milésima vez iguais considerações,
e a notícia do dia. Imagens captadas por telemóvel mostram um homem a atirar-se
do tabuleiro da ponte 25 de abril ao Tejo. Zé Paulo fica incomodado pela forma como
o homem se lançou, mais do que pelo dramatismo do ato. De costas voltadas para
o rio e para o mundo, assim se deixou ir, até que as águas o engoliram.
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