- Perdi-me na tua cidade. Passou-se um mês
e a obra ficou parada. Lembro-me apenas de alguns fragmentos do que escrevi. Tinhas-me
dito um mês, mas foram mais de trinta os dias que aqui passámos. Tenho de
recuperar o tempo perdido. O que mais me incomoda é ter ficado com pouquíssimas
recordações. O que viemos nós aqui fazer? As tuas bailarinas do prazer
desapareceram. Guardo algumas memórias dos seus cheiros, mas são escassas para
tantos dias.
- O universo alinhou-se durante este
período. Era necessário que assim acontecesse. Tinhas de experimentar esta
sensação de vazio. O tempo passou por ti, os ritmos de todas as coisas
mantiveram-se imperturbáveis. Estiveste hibernado e só agora recuperaste a
consciência. Andaram por aqui alguns mendigos. Os seguranças desta cidade
convidaram-nos a sair para que se restabelecesse o fluxo temporal tal como tu o
concebes. Os idosos estão de regresso às mesas do café e às conversas banais.
Alguns estão sozinhos, sentados de pernas cruzadas, a observar as vidas dos
outros. Outros resguardam-se nas leituras. Um pai adormece a sua filha. Escutas
as mesmas músicas que estás cansado de ouvir, sons que te são familiares mas
sem os quais não conseguirás criar. Um velho senta-se para tomar o café da
manhã, duas mulheres e um homem conversam. Estás a acordar? És bem capaz de
permanecer neste estado por mais um par de dias, até que a normalidade se
restabeleça. A tua falta de inspiração devia-se ao tremendo cansaço que foste acumulando
ao longo dos últimos anos. Deixaste que as tuas histórias tomassem conta de ti
ao ponto de já não conseguires raciocinar. Escrevias de forma automática,
obedecias às instruções do teu agente que satisfazia os interesses da editora e
o teu gosto deixou de imperar. Há muito tempo que escrevias acerca de assuntos
que já não eram teus. Foi por isso que me chamaste. Querias a minha ajuda,
mesmo que afirmes o contrário.
Rui ainda mal acordou. As palavras do invisível conseguiram irritá-lo. Segundo
esta estranha teoria, todo o tempo que esteve sem trabalhar serviu para que o
universo se alinhasse e para que a sua inspiração se pudesse regenerar.
Balelas, um completo disparate! Um mês, ou melhor, trinta e quatro dias
passados a dormir, a hibernar na misteriosa cidade do prazer. Ora aí está uma
façanha que não deseja ver acrescentada ao seu currículo. A obra esteve parada
durante este longo período. O prazo para a entrega do texto encurtou-se e
tornou a tarefa quase impossível.
- Queres-me fazer acreditar que daqui para
a frente vou ganhar uma súbita inspiração que me fará escrever como nunca e a
uma velocidade estonteante? – pergunta o escritor.
- Sim! – responde o amigo improvável de forma lacónica.
- Sim? Mas sim, como? Regresso ao meu
apartamento, sento-me à mesa da sala, coloco as folhas vazias à minha frente e,
sem mais nem menos, a obra surgirá. É assim que tudo irá acontecer?
- Sim! Tal e qual. – renova o invisível. – Tu talvez não te recordes,
mas as baladas da compositora irlandesa protegeram a tua hibernação. Sofrerás o
efeito dessas melodias quando escreveres.
Rui prefere não colocar mais questões. O
tempo urge. Se a inspiração estiver de regresso, como lhe foi comunicado, o
melhor mesmo é aproveitar.
Helen é uma personagem da sua história.
Helen vive nesta cópia de Lisboa, num prédio onde bailarinas nuas dançam nas
montras. A mulher que vive no prédio em frente ao do escritor não se chama
Helen. A mulher que mora no prédio em frente ao seu, e que aparece nua à janela,
não tem nome. Rui usou-a para criar a pianista da sua história e Helen foi o
nome com que a batizou. Ele sabe que tem de regressar. A mão recomeçará a sua
arte, as palavras irão surgir pois é urgente que a obra esteja concluída antes
que o Lopes o mate.
- Não tenhas pressa. Tudo aquilo que tens
para contar será contado. Mais importante do que os prazos, do que os temas, as
modas ou as determinações da editora, mais importante do que tudo isso está o
teu querer. Não cedas! Escreve acerca do que escutas. Se assim o fizeres,
acabarás as tuas obras dentro dos prazos.
O escritor recebeu o conselho com bastante
ceticismo.
- Estou para ver se as coisas vão mesmo
acontecer como me estás a dizer. Benditos trinta e quatro dias, se assim for.
A cidade esfuma-se enquanto o escritor
sobe os últimos degraus que dão acesso ao piso onde mora. Esta Lisboa que o viu
descansar, não existe mais.
O invisível
sorri.
Rui sabe bem o quanto precisa de uma boa
história. Vai ter de se concentrar para escutar melhor as vozes que a contam.
A cadeira encontra-se no mesmo sítio de
sempre, junto à janela que dá para a cidade. Rui mentiu ao afirmar que se tinha
inspirado na mulher que mora no prédio em frente ao seu e que, por vezes, surgia
nua à janela. Mentiu porque não existe nenhum prédio em frente ao seu. Da sua
janela apenas vê as ruas e as avenidas de Lisboa.
- O sol está radioso. Tínhamos saudades de
um dia assim. Recomeça a escrever, Rui. De agora em diante vais ter a nossa
companhia todos os dias. É quase meio-dia. Estiveste um mês a descansar, mas
ainda bem que assim aconteceu. Daqui para a frente a tua obra irá crescer. Só
terás de anotar aquilo que nós, as “vozes“, temos para contar.
Rui está sentado e olha para trás, por instinto.
A jovem irlandesa estava ali a fitá-lo. Foi só por um breve instante, mas viu-a
com clareza. A pianista vestia umas calças de cabedal negras, uma blusa branca e
um casaco azul-escuro de ganga. Trazia uma bolsa e umas botas pretas, e os longos
cabelos alaranjados dançavam ao vento. De headphones colocados, como era seu hábito,
observou-o e desapareceu como num sonho. Ressurgiu, pouco depois, com a sobrinha
ao colo, a sorrir.
Na estante brilha um pequeno CD com músicas
de Alexandre Desplat. Rui coloca-o na aparelhagem antes de recomeçar a escrever,
e a melodia toma conta do salão.
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