terça-feira, 18 de junho de 2013

A TEORIA DO CAOS


Eis a teoria do caos que a tudo se sobrepõe, nuvem aleatória de fragmentos insensatos que nenhuma equação esclarece.
Onde o sonho faz falta, a mente determina.
Onde a mente determina, a dor passeia.
Onde a dor passeia, como um verme, a indulgência esvai-se.
Onde a indulgência se esvai, cresce o medo e a obra esmorece.

- Quem te viu e quem te vê, homem! Estás pela metade do que já foste! Como conseguiste emagrecer assim tanto?
- Tu sonhas Etelvina… onde é que eu emagreci? Estarás a ver um outro que não eu?
O tempo custava a passar. O relógio da torre da igreja, lá na aldeia, contava as horas ao som das Ave-Marias. Num outro século, num outro tempo, os perfumes do campo adocicavam o avanço dos dias, que se espreguiçavam, lânguidos, pelos planaltos de terras xistosas.
- Etelvina, mantém-te atenta, de todos os lados se escutam as vozes mesquinhas e venenosas de quem não te aceita, nem aos teus atos. As mulheres, todas as mulheres, falam de ti, desse teu ardor. Têm inveja do teu corpo e da maneira como lhe dás uso, como se explorasses o universo. Antes da missa já a aldeia toda sabe o que fizeste e o que não fizeste durante a semana, seja verdade ou mentira. Se elas o dizem, da verdade se trata. Cobiçam o teu sorriso e a maneira como os homens olham para ti. Tu pareces ser de um outro tempo e pertencer a outro lugar.

Porque lhe apareceu hoje à memória, logo hoje, quando nada o faria supor? Lembrou-se de Etelvina desde que avião levantou voo de Paris, e as recordações ainda agora o perseguem. Não precisava de falar, os seus gestos e meneios diziam tudo, e enfeitiçavam. A relva era o céu, o seu corpo era o de Augusto, e as nuvens divertiam-se com eles. As roupas ficavam esquecidas, espalhadas pela mata. No lago se beijaram e amaram uma dezena de vezes. Viram as sombras a bailar por entre os troncos e ramos das árvores, sentiram a brisa e o vento mais ousado nos corpos molhados, nas tardes quase noites.
Voar mete respeito. O medo que o avião pudesse cair fez Augusto voltar até esse tempo em que, descomedidos, ele e Etelvina se amaram. Rolaram pelos campos, por sobre as ervas e o mato, pela terra húmida, seca e gretada, pela terra mais turva, escura e xistosa. Foram a própria terra, as raízes, folhas, flores, sombras e luz que os esculpia.
A hospedeira trouxe-lhe comida e bebidas, mas no céu ninguém o devia fazer. Por alguma razão as asas não crescem aos homens. Uma cerveja bem gelada ajudou Augusto a fazer de conta que o pânico tinha desaparecido.
Recordou o que aconteceu e o que fizeram antes de os terem descoberto, nus e adormecidos, perto das terras do Xico Penedas. As mãos de Etelvina faziam dele tudo o que queriam. Deixou-se levar pela sabedoria daqueles gestos, e o que ela lhe fez sentir naquele dia jamais voltou a acontecer. Um homem não precisa de ter asas para voar, mas precisa de uma mulher que o saiba fazer voar.
Etelvina sabia bem o que fazia, e Augusto demorava dias até sentir, de novo, o efeito da gravidade. Não era difícil compreender porque é que as mulheres da aldeia lhe tinham um ódio de morte. Etelvina ensinava quase todos os homens a voar sem asas, até mesmo o Xico Penedas, que era um dos maiores cabrões que por ali tinha nascido. O grosseirão ficou ainda pior depois de Etelvina o ter enfeitiçado.
A bordo não serviam cervejas nacionais, só estrangeiras. Augusto pediu a mais gelada que a hospedeira conseguiu encontrar, e a menina serviu-a com um sorriso televisivo.
Augusto receava que alguém os encontrasse, pois Etelvina vivia cada instante como se fosse o último. Naquela tarde, como em todas as outras, encontraram-se e ela começou a despi-lo. Tirou-lhe toda a roupa com desenvoltura, e ele aprovou. A rapariga olhava-o sempre nos olhos enquanto o fazia, depois beijava-o, depois tocava-lhe e beijava-o onde lhe tocava, até que tudo deixava de ter peso, cor, cheiro ou sabor. Depois despiu-se, pegou nas mãos do amante e ensinou-lhe onde as devia colocar para que tudo, finalmente, pudesse deixar de existir. Diziam que era louca, mas de louca nada tinha. Diziam que era uma puta do demónio, a maior puta que alguma vez existiu, mas os seus olhos davam vontade aos homens que os viam, uma irrefreável vontade de com ela aprenderem a voar.
- Nós devíamos ter ido pela ponte Vasco da Gama. Olha para este trânsito! Nem às duas da tarde vamos chegar a casa… - exclama o Augusto. Mas porque raio tinha ele de voltar a tocar no assunto, e repetir aquela conversa de merda? A filha podia lá adivinhar que a segunda circular ia ficar um inferno. E também não tem culpa nenhuma dele se sentir cada vez mais exausto, mais farto de tudo e de todos. Se ao menos pudesse conseguir voltar a voar com as asas que a Etelvina lhe destinou.
- Desculpa! Tu não tens culpa nenhuma, eu é que estou a ficar cada vez mais velho e mais chato…, um tolo que não sabe quando deve ficar calado.
Etelvina sabia muito bem o que fazia com o seu corpo e com o corpo dos homens, e a aldeia estava quase a cair-lhe em cima. Era livre como o vento e leve como o ar que respiravam, e só fazia o que muito bem lhe apetecia com quem muito bem lhe apetecia. Ensinou os homens da aldeia a voar sem que lhes tivessem nascido asas nas costas.
O vento soprava forte, mas Augusto não escutou nenhum ruído. Quando acordou, Etelvina estava desmaiada e era arrastada pelo cabrão do Xico Penedas, que agia possuído pelo ciúme. Augusto quase o matou! A cara do Penedas ficou uma papa quando ele acabou de o massacrar. Os nós dos dedos ficaram vermelho vivo e o corpo desnudado ganhou um universo de galáxias e de estrelas rubras.
Etelvina recuperou os sentidos e ficou sem saber o que fazer. Apanhou as roupas e cambaleou para parte incerta. Regressou passado um breve instante. Olhou Augusto olhos nos olhos, acariciou-lhe o rosto com as mãos e beijou-o, com o corpo colado ao seu, dizendo:
- Vai chamar o doutor à vila. Vai, vai depressa, antes que o Penedas acabe por morrer. Vai, não desgraces a tua vida por causa disto.
O sino tocou, deu o toque das seis da tarde antes que Etelvina se despedisse dele sem mais palavras.
O chão estava duro e seco.
Várias gotas vermelhas caíram nos pés sujos do homem voador.
Era o Penedas ou a Etelvina.

Se Augusto não tivesse acordado a tempo e não lhe tivesse dado cabo dos cornos, a rapariga teria sido assassinada.

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