Eis a teoria do caos que a tudo se
sobrepõe, nuvem aleatória de fragmentos insensatos que nenhuma equação
esclarece.
Onde o sonho faz falta, a mente determina.
Onde a mente determina, a dor passeia.
Onde a dor passeia, como um verme, a
indulgência esvai-se.
Onde a indulgência se esvai, cresce o medo
e a obra esmorece.
- Quem te viu e quem te vê, homem! Estás
pela metade do que já foste! Como conseguiste emagrecer assim tanto?
- Tu sonhas Etelvina… onde é que eu
emagreci? Estarás a ver um outro que não eu?
O tempo custava a passar. O relógio da
torre da igreja, lá na aldeia, contava as horas ao som das Ave-Marias. Num outro
século, num outro tempo, os perfumes do campo adocicavam o avanço dos dias, que
se espreguiçavam, lânguidos, pelos planaltos de terras xistosas.
- Etelvina, mantém-te atenta, de todos os
lados se escutam as vozes mesquinhas e venenosas de quem não te aceita, nem aos
teus atos. As mulheres, todas as mulheres, falam de ti, desse teu ardor. Têm
inveja do teu corpo e da maneira como lhe dás uso, como se explorasses o
universo. Antes da missa já a aldeia toda sabe o que fizeste e o que não
fizeste durante a semana, seja verdade ou mentira. Se elas o dizem, da verdade
se trata. Cobiçam o teu sorriso e a maneira como os homens olham para ti. Tu
pareces ser de um outro tempo e pertencer a outro lugar.
Porque lhe apareceu hoje à memória, logo
hoje, quando nada o faria supor? Lembrou-se de Etelvina desde que avião
levantou voo de Paris, e as recordações ainda agora o perseguem. Não precisava
de falar, os seus gestos e meneios diziam tudo, e enfeitiçavam. A relva era o
céu, o seu corpo era o de Augusto, e as nuvens divertiam-se com eles. As roupas
ficavam esquecidas, espalhadas pela mata. No lago se beijaram e amaram uma
dezena de vezes. Viram as sombras a bailar por entre os troncos e ramos das
árvores, sentiram a brisa e o vento mais ousado nos corpos molhados, nas tardes
quase noites.
Voar mete respeito. O medo que o avião
pudesse cair fez Augusto voltar até esse tempo em que, descomedidos, ele e
Etelvina se amaram. Rolaram pelos campos, por sobre as ervas e o mato, pela
terra húmida, seca e gretada, pela terra mais turva, escura e xistosa. Foram a
própria terra, as raízes, folhas, flores, sombras e luz que os esculpia.
A hospedeira trouxe-lhe comida e bebidas,
mas no céu ninguém o devia fazer. Por alguma razão as asas não crescem aos
homens. Uma cerveja bem gelada ajudou Augusto a fazer de conta que o pânico
tinha desaparecido.
Recordou o que aconteceu e o que fizeram
antes de os terem descoberto, nus e adormecidos, perto das terras do Xico
Penedas. As mãos de Etelvina faziam dele tudo o que queriam. Deixou-se levar
pela sabedoria daqueles gestos, e o que ela lhe fez sentir naquele dia jamais
voltou a acontecer. Um homem não precisa de ter asas para voar, mas precisa de
uma mulher que o saiba fazer voar.
Etelvina sabia bem o que fazia, e Augusto
demorava dias até sentir, de novo, o efeito da gravidade. Não era difícil compreender
porque é que as mulheres da aldeia lhe tinham um ódio de morte. Etelvina
ensinava quase todos os homens a voar sem asas, até mesmo o Xico Penedas, que
era um dos maiores cabrões que por ali tinha nascido. O grosseirão ficou ainda
pior depois de Etelvina o ter enfeitiçado.
A bordo não serviam cervejas nacionais, só
estrangeiras. Augusto pediu a mais gelada que a hospedeira conseguiu encontrar,
e a menina serviu-a com um sorriso televisivo.
Augusto receava que alguém os encontrasse,
pois Etelvina vivia cada instante como se fosse o último. Naquela tarde, como
em todas as outras, encontraram-se e ela começou a despi-lo. Tirou-lhe toda a
roupa com desenvoltura, e ele aprovou. A rapariga olhava-o sempre nos olhos
enquanto o fazia, depois beijava-o, depois tocava-lhe e beijava-o onde lhe
tocava, até que tudo deixava de ter peso, cor, cheiro ou sabor. Depois despiu-se,
pegou nas mãos do amante e ensinou-lhe onde as devia colocar para que tudo,
finalmente, pudesse deixar de existir. Diziam que era louca, mas de louca nada
tinha. Diziam que era uma puta do demónio, a maior puta que alguma vez existiu,
mas os seus olhos davam vontade aos homens que os viam, uma irrefreável vontade
de com ela aprenderem a voar.
- Nós devíamos ter ido pela ponte Vasco da
Gama. Olha para este trânsito! Nem às duas da tarde vamos chegar a casa… -
exclama o Augusto. Mas porque raio tinha ele de voltar a tocar no assunto, e
repetir aquela conversa de merda? A filha podia lá adivinhar que a segunda
circular ia ficar um inferno. E também não tem culpa nenhuma dele se sentir
cada vez mais exausto, mais farto de tudo e de todos. Se ao menos pudesse
conseguir voltar a voar com as asas que a Etelvina lhe destinou.
- Desculpa! Tu não tens culpa nenhuma, eu
é que estou a ficar cada vez mais velho e mais chato…, um tolo que não sabe
quando deve ficar calado.
Etelvina sabia muito bem o que fazia com o
seu corpo e com o corpo dos homens, e a aldeia estava quase a cair-lhe em cima.
Era livre como o vento e leve como o ar que respiravam, e só fazia o que muito
bem lhe apetecia com quem muito bem lhe apetecia. Ensinou os homens da aldeia a
voar sem que lhes tivessem nascido asas nas costas.
O vento soprava forte, mas Augusto não
escutou nenhum ruído. Quando acordou, Etelvina estava desmaiada e era arrastada
pelo cabrão do Xico Penedas, que agia possuído pelo ciúme. Augusto quase o
matou! A cara do Penedas ficou uma papa quando ele acabou de o massacrar. Os
nós dos dedos ficaram vermelho vivo e o corpo desnudado ganhou um universo de
galáxias e de estrelas rubras.
Etelvina recuperou os sentidos e ficou sem
saber o que fazer. Apanhou as roupas e cambaleou para parte incerta. Regressou
passado um breve instante. Olhou Augusto olhos nos olhos, acariciou-lhe o rosto
com as mãos e beijou-o, com o corpo colado ao seu, dizendo:
- Vai chamar o doutor à vila. Vai, vai
depressa, antes que o Penedas acabe por morrer. Vai, não desgraces a tua vida
por causa disto.
O sino tocou, deu o toque das seis da
tarde antes que Etelvina se despedisse dele sem mais palavras.
O chão estava duro e seco.
Várias gotas vermelhas caíram nos pés
sujos do homem voador.
Era o Penedas ou a Etelvina.
Se Augusto não tivesse acordado a tempo e
não lhe tivesse dado cabo dos cornos, a rapariga teria sido assassinada.
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