sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

UM PRESENTE CAÍDO DO CÉU



São três e meia da manhã e Carla levanta-se.
O dia anterior mudou-lhe a vida para sempre, ou será que tudo mais não foi que um simples sonho, um súbito ataque de loucura?
A cama, vazia de homem, é um presente que não esperava receber. A cama, vazia daquele homem, ainda lhe parece uma perigosa ilusão.
Há quanto tempo ela não gozava uma noite assim tão tranquila?
A única pessoa a quem teve coragem de ligar durante a louca manhã de ontem foi a sua amiga Filipa. Por sete vezes o fez, mas sem sucesso. O que estaria ela a fazer de tão importante para não lhe ter respondido?
Assim que o carro vermelho irrompeu em chamas o universo estremeceu, mudou de cor uma centena de vezes, apagou-se, rugiu, espreguiçou-se, até que, finalmente, de novo emudeceu.
Um silêncio de morte tomou conta da varanda onde Carla observava a rua onde o caos se instalara.
Agora são três e meia da manhã e o mais certo é que tudo não tenha passado de um sonho bom, um em que o universo resolveu fazer-lhe a vontade, um em que ela podia voltar a ser feliz.
Carla caminha para fora do quarto, segue pelo pequeno hall até à sala, atravessa-a e entra na varanda. Cola o rosto e as mãos às vidraças frias e fecha os olhos por um instante. Deseja que este presente não seja uma mentira, uma partida fria que o universo lhe resolveu pregar. Deseja que tudo tenha realmente acontecido.
Abre os olhos e olha em frente para o Tejo escuro que, lá longe, avança decidido até ao mar. As luzes dos prédios na zona da expo brilham como em todas as noites. Uma lua luminosa cortada pela metade aquece-lhe a esperança e o coração.
O rosto de Armando está refletido na janela, grande, redondo, de olhos pequenos numa cara marcada pelo sol, de cabelo curtíssimo e barba desarrumada.
O rosto de Armando está refletido na sua alma até ao fim dos seus dias pois o animal disso mesmo se encarregou com a perícia de um carrasco
O rosto de Armando ficou de tal maneira carbonizado que nem à entrada do inferno o conseguirão reconhecer. Filho de uma grande puta, um brutamontes insensível e cruel que o universo se encarregou de fazer desaparecer.
- Mas como, como é que tal coisa foi acontecer? – questiona uma Carla corajosa a enfrentar o reflexo do sujeito. – Como foi possível teres-me enganado tanto e teres-me feito tanto mal? Como é possível que o universo deixe nascer animais da tua espécie?
A luz da meia-lua afugenta a miragem do homem e Carla consegue finalmente olhar para o local onde o Audi explodiu. O coração estremece, o rosto muda de cor uma centena de vezes, apaga-se e ilumina-se ao confrontar-se com a realidade.
Lá em baixo na avenida, o que resta do automóvel está a ser vigiado por dois agentes que estão em pé junto a um reboque da polícia.
O Armando morreu, teve aquilo que merecia!
Carla avista os outros prédios, outros casulos iguais ao seu, a avenida e o que resta do carro vistoso. Então não é que alguém se lembrou de armadilhar a viatura vermelha e tudo aconteceu tal e qual como naquele episódio da sua série favorita.
Agora já sabe.
Alguém se lembrou mesmo de o fazer.

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