sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

AS VIAGENS DA MEMÓRIA


O pensamento de Rui deixou de fazer sentido. As suas ideias estão tão geladas como a temperatura que se faz sentir na camarata. Ele preferia não ter de pensar, seria bem mais cómodo se o cérebro se desligasse. Há quase trinta horas que o escritor não dorme e as imagens já começaram a bailar, os sons a cavalgar e o chão a rodopiar. O teto e as paredes desintegraram-se. Tudo isto acontece para que ele se mantenha acordado e vigilante pois tem receio de não acordar, se por algum acaso adormecer. Tem medo, um medo frio e tormentoso que o debilita e impede de raciocinar, um medo que lhe tolda a razão e mata a esperança.
O amigo invisível sentiu o mesmo e decidiu voar da ponte sem asas nem rede. A ponte foi uma escolha natural, mas elas não existem por aqui. Rui volta a escutar a voz de Helen e desta vez não entende uma única palavra do que ela lhe diz. Recebe-a como uma dádiva, neste lugar tudo são dádivas e as recordações são as mais valiosas porque só elas conseguem escapar ilesas à fúria dos soldados nazis. As memórias apoderam-se das camaratas para aquecer os corações dos prisioneiros. Rui não é exceção e as suas recordações atravessam o tempo e o espaço, galgam todas as  distâncias e vencem todas as barreiras. São diligentes e inquebráveis.
Pouco depois de ter iniciado a nova obra, Rui começou a sentir a vida de uma outra forma e o tempo transformou-se em inimigo. Se ao menos o invisível não tivesse desaparecido. É que aqui, nesta cidade, é impossível prestar atenção às palavras, elas marcam e magoam como em nenhum outro lugar. As horas e os minutos estão tão congelados como o ar que se respira, e tudo é caótico e incongruente.
Onde se terá escondido o seu amigo improvável?
O tempo não avança, estes sete dias e sete noites nunca mais chegam ao fim.
Na camarata 72 o pensamento deixou de fazer sentido.
Rui preferia estar cego e surdo para melhor poder suportar tudo o que se passa nesta cidade turva e perturbadora. O romance não irá acontecer porque lhe é impossível fazer avançar a obra enquanto aqui permanecer. O escritor encolhe-se cada vez mais no meio dos seus companheiros de infortúnio, e quanto mais apertado está, mais abandonado se sente. A imagem de uma Helen mais velha apareceu para o atormentar, e ele acaba por desabafar:
- Nada disto faz sentido! O que aqui se passa não faz parte da obra. Vou limpar estes pensamentos e apagar estas últimas palavras. São caóticas. O mais provável é que o mundo acabe antes de eu conseguir terminar o romance. Escrever deixou de ser a minha prioridade, sobreviver passou a ser a única prioridade, é só isso que interessa. Necessito manter-me atento aos detalhes agora que a minha inspiração acabou. Foi por isso que a obra deixou de avançar, e agora esta cidade e este tempo mataram as personagens, destruíram o que restava dos palcos dessa história, aniquilaram os enredos e calaram de vez as vozes que eu escutava.

Os campos transmontanos receberam o sangue do Penedas como se fosse adubo. Naquele dia, a razão de Augusto ficou toldada. Um súbito ataque de fúria fez com que os seus punhos partissem a cara ao desgraçado. Nunca soube de onde lhe chegou a força com que lhe esmorrou os cornos. O Xico ficou com o rosto feito em papa, os maxilares deslocados, os sobrolhos abertos e quatro dentes partidos. Se Etelvina não tem chegado a tempo para pôr um travão à loucura, a desgraça teria sido completa.
A rapariga tinha uns perfeitos lábios rosados, quentes e grossos, e os olhos grandes e penetrantes suplicaram-lhe para que parasse antes que fosse tarde demais. O cabrão do Penedas precisava de aprender aquela lição, e o Augusto ainda lhe bateu e o pontapeou por duas vezes mesmo depois de desmaiado. Estava possuído por um demónio qualquer, e só os gritos desesperados da amante o trouxeram de volta à realidade.
- PARA, PARA AUGUSTO! Para, senão ainda o matas! O que vai ser de nós se acabares com a vida do desgraçado? Para de lhe bater, já chega, para! PARA! Ouve o que eu te digo!
Etelvina colocou-se à frente de Augusto, encarou-o olhos nos olhos, e foi assim que ele regressou do seu profundo estado de loucura.

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