O
pensamento de Rui deixou de fazer sentido. As suas ideias estão tão geladas
como a temperatura que se faz sentir na camarata. Ele preferia não ter de
pensar, seria bem mais cómodo se o cérebro se desligasse. Há quase trinta horas
que o escritor não dorme e as imagens já começaram a bailar, os sons a cavalgar
e o chão a rodopiar. O teto e as paredes desintegraram-se. Tudo isto acontece
para que ele se mantenha acordado e vigilante pois tem receio de não acordar,
se por algum acaso adormecer. Tem medo, um medo frio e tormentoso que o
debilita e impede de raciocinar, um medo que lhe tolda a razão e mata a
esperança.
O
amigo invisível sentiu o mesmo e decidiu voar da ponte sem asas nem rede. A
ponte foi uma escolha natural, mas elas não existem por aqui. Rui volta a escutar
a voz de Helen e desta vez não entende uma única palavra do que ela lhe diz.
Recebe-a como uma dádiva, neste lugar tudo são dádivas e as recordações são as
mais valiosas porque só elas conseguem escapar ilesas à fúria dos soldados
nazis. As memórias apoderam-se das camaratas para aquecer os corações dos
prisioneiros. Rui não é exceção e as suas recordações atravessam o tempo e o
espaço, galgam todas as distâncias e
vencem todas as barreiras. São diligentes e inquebráveis.
Pouco
depois de ter iniciado a nova obra, Rui começou a sentir a vida de uma outra
forma e o tempo transformou-se em inimigo. Se ao menos o invisível não tivesse
desaparecido. É que aqui, nesta cidade, é impossível prestar atenção às
palavras, elas marcam e magoam como em nenhum outro lugar. As horas e os minutos
estão tão congelados como o ar que se respira, e tudo é caótico e incongruente.
Onde
se terá escondido o seu amigo improvável?
O
tempo não avança, estes sete dias e sete noites nunca mais chegam ao fim.
Na
camarata 72 o pensamento deixou de fazer sentido.
Rui
preferia estar cego e surdo para melhor poder suportar tudo o que se passa
nesta cidade turva e perturbadora. O romance não irá acontecer porque lhe é
impossível fazer avançar a obra enquanto aqui permanecer. O escritor encolhe-se
cada vez mais no meio dos seus companheiros de infortúnio, e quanto mais
apertado está, mais abandonado se sente. A imagem de uma Helen mais velha
apareceu para o atormentar, e ele acaba por desabafar:
-
Nada disto faz sentido! O que aqui se passa não faz parte da obra. Vou limpar
estes pensamentos e apagar estas últimas palavras. São caóticas. O mais
provável é que o mundo acabe antes de eu conseguir terminar o romance. Escrever
deixou de ser a minha prioridade, sobreviver passou a ser a única prioridade, é
só isso que interessa. Necessito manter-me atento aos detalhes agora que a
minha inspiração acabou. Foi por isso que a obra deixou de avançar, e agora
esta cidade e este tempo mataram as personagens, destruíram o que restava dos
palcos dessa história, aniquilaram os enredos e calaram de vez as vozes que eu
escutava.
Os
campos transmontanos receberam o sangue do Penedas como se fosse adubo. Naquele
dia, a razão de Augusto ficou toldada. Um súbito ataque de fúria fez com que os
seus punhos partissem a cara ao desgraçado. Nunca soube de onde lhe chegou a
força com que lhe esmorrou os cornos. O Xico ficou com o rosto feito em papa,
os maxilares deslocados, os sobrolhos abertos e quatro dentes partidos. Se
Etelvina não tem chegado a tempo para pôr um travão à loucura, a desgraça teria
sido completa.
A
rapariga tinha uns perfeitos lábios rosados, quentes e grossos, e os olhos
grandes e penetrantes suplicaram-lhe para que parasse antes que fosse tarde
demais. O cabrão do Penedas precisava de aprender aquela lição, e o Augusto
ainda lhe bateu e o pontapeou por duas vezes mesmo depois de desmaiado. Estava
possuído por um demónio qualquer, e só os gritos desesperados da amante o
trouxeram de volta à realidade.
-
PARA, PARA AUGUSTO! Para, senão ainda o matas! O que vai ser de nós se acabares
com a vida do desgraçado? Para de lhe bater, já chega, para! PARA! Ouve o que eu
te digo!
Etelvina
colocou-se à frente de Augusto, encarou-o olhos nos olhos, e foi assim que ele regressou
do seu profundo estado de loucura.
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