O céu estava cinzento. Por entre as nuvens descobriam-se tonalidades azuis
e acobreadas tendo o Tejo como fundo. A sé apoderava-se do dorso da colina e da
janela via-se ainda o castelo e a geometria das ruas pombalinas. As
águas-furtadas dos telhados da cidade dançavam por entre chaminés brancas.
- O manuscrito já está na editora, e está em boas mãos. – explicou o Lopes.
– Acalma-te Rui, por favor. Era necessário que alguém começasse a passar o teu
texto. As coisas estão muito atrasadas, muito atrasadas mesmo.
O manuscrito era composto por folhas de várias proveniências. Era assim que
o escritor trabalhava, e qualquer folha lhe servia. O início da obra parecia
interessante, mas era um tanto ou quanto frívolo, isto segundo a opinião de um
dos revisores. Nada disto interessava às casas brancas e rosadas que espraiadas
pelas colinas recebiam a luz daquele fim de tarde lisboeta. A torre de menagem
e as muralhas do castelo de São Jorge espreitam, lá do alto, por entre o
arvoredo que dentro delas coabita.
- Que melhor cidade para se beber e saborear um bom copo de vinho, senhor
Rui! – exclama o empregado Abílio. – A nossa velha cidade, a nossa Lisboa… mas
deixe-se estar, deixe-se estar, trago-lhe já a bica escaldada e o jornal da
manhã. Queira desculpar-me, quase me esquecia. A rapariga com quem costuma
almoçar deixou-me anteontem uma carta para si. Vou buscá-la, é só um
instantinho…
- Uma carta? Porque razão lhe terá Helen deixado uma carta no café? Estaria
a pregar-lhe uma partida? Rui ainda mal a conhece, ainda mal teve tempo para a
conhecer, contudo sabe muito bem o que sentiu quando a viu pela primeira vez há
dois meses atrás. Ficou naquele despropósito e passou a acreditar em amor à
primeira vista. Não queria admitir, e logo ele que até do amor duvidava. Era
como um sonho, uma esperança, a sua esperança, e teria de a atrair com
convicção. Quando pensa nisso ainda mal o crê. Uma qualquer razão estranha
juntou-os aos dois naquele café. Ela fixou os olhos nele e ele nos dela, ou
terá sido o contrário, não se recorda bem, mas lembra-se do seu coração ter
batido desassossegado.
Rui vive de escrever mentiras, ele mesmo é uma mentira, e essa é a grande
verdade. Helen estava ali, verdadeira, à sua frente. Se o escritor um dia chegar
a herói de uma das suas histórias mentirosas, então talvez nesse dia ele possa
afirmar, finalmente, que criou uma obra verídica.
- Aqui tem, senhor Rui! Esta é a carta que a senhora estrangeira me pediu para
lhe entregar. E aqui tem a sua bica e o jornal de hoje. – afirma Abílio numa
voz rouca.
Ali estava desenhada a letra de Helen. O escritor não possuía uma
caligrafia assim tão cativante. No envelope sentia-se o perfume do mar, dos
becos e das ruelas estreitas da Alfama, das paredes gastas com janelas cansadas
onde a roupa repousa perto dos telhados remendados.
Rui preferiu não abrir a carta no café. Bebeu a bica, vagueou pelas
notícias banais que povoam as páginas do matutino, levantou-se e seguiu para o apartamento.
Evitou tentar adivinhar as palavras que ali estavam guardadas. Isso era o que ansiava,
mas algumas hipóteses, das quais não se recorda, acabaram por acontecer. O
elétrico seguiu a rua das escolas gerais e virou à esquerda em direção à Graça.
O céu era agora mais azul, menos cinzento, e cada vez mais janelas se
descobriam para deixar entrar a luz. Da janela da sala, já na companhia da
assombrosa vista do seu velho apartamento, a cidade fria regressou e insistiu
em desorganizar-lhe os pensamentos e ideias.
Nesta camarata 72 não há lugar para recordações. Aqui, neste palco, o coro
de vozes desafinadas continua a entoar a mesma canção. A neve que caía
transformou-se numa chuva gelada. Tudo é sinónimo de morte e desilusão. O
escritor desconhece a melodia que os companheiros de infortúnio sabem de cor e
entoam bem alto pelo ar. As informações que todos aguardam não chegam, e
ninguém faz ideia do que se passa fora destas paredes e para lá deste campo de
morte.
Que motivo terá tido Helen para lhe ter escrito aquela carta? E porque
razão a terá deixado no café onde Rui gosta de se perder pela escrita? Como
ele gostaria de poder voltar a ver
Lisboa da sua janela. Isso seria fantástico, seria verdadeiramente espantoso,
mas talvez não venha mais a acontecer. Desta camarata não se vê o rio nem o mar
que o recebe de braços abertos, não se veem pontes nem a outra margem nem a
luminosidade indescritível da capital.
O escritor julga ver de novo o rosto de Helen como se fosse esta a primeira
vez. Ela olha para si, e ele para ela.
- Como foi que me reconheceste? – pergunta a irlandesa antes dele se
apresentar. – Olha como chove. Está um dia triste, frio e chuvoso, mas no teu
coração o sol devia brilhar como num radioso dia de verão. Vamos almoçar? Vem,
vem almoçar comigo, mas primeiro necessito passar numa loja para comprar uns
sapatos que me ficaram de arranjar. O meu nome é Helen, sou de Cork e sou
pianista.
- Sapatos? Almoço!? – exclama Rui surpreendido.
- Anda, vem comigo, escuta a música que tens dentro de ti e tudo o resto
deixará de ter importância. – insistiu a belíssima irlandesa.
- A última coisa que desejaria agora era ter de discutir com uma mulher tão
linda como tu…, o meu nome é Rui e sou escritor. Gostava muito de poder mostrar-te
a minha Lisboa antes de ir contigo almoçar.
- Isso agora não é nada oportuno! – responde Helen. – Se quiseres, dou-te o
meu contacto para mais tarde me ligares, se é isso que preferes. Talvez me
ligues mais logo, talvez nunca me ligues, mas jamais saberás como teria sido o
teu dia se tivesses aceite o meu convite para almoçar.
- Não é oportuno? E convidar um estranho para almoçar é uma coisa oportuna?
– pergunta o escritor incrédulo.
Helen sorri. Adivinhou e antecipou o espanto que causaria no escritor. Ele
talvez fique a pensar que este encontro terá acontecido por uma qualquer divina
intervenção. Gosta dele, gosta muito da maneira como ele fica alheio a tudo em
seu redor quando rabisca. Acha-o encantador, e a sua voz revela uma fascinante
e sedutora timidez.
- Perturbo-te? Que mal tem se aceitares o meu convite? Afinal de contas,
foste tu quem veio atrás de mim, não é verdade?
Rui só agora fica a saber porque foi convidado a segui-la. Quem é esta
mulher? Quem é ela? Gostará de cinema, de literatura, da sua Lisboa que tanto
ama? Tantas dúvidas merecem ser comemoradas com um almoço. O sorriso da
irlandesa rasga o céu como um meteoro, e ele apaixona-se por ela.
Helen e Rui de tudo falaram. Falaram de viagens, de trabalho, dos tempos de
infância, falaram da chuva e do sol, descreveram paisagens, falaram de livros e
dos jardins que gostam de visitar. Helen calçou os sapatos que foi buscar à
loja de uma amiga. Confessou adorar Bach e Chopin, amar o mar e as estrelas.
São eles quem verdadeiramente a compreendem e a sabem escutar. Rui afirmou
gostar de Sakamoto, de Clint Mansell, de Mozart, dos filmes de Hitchcock e de Godard.
Na camarata 72 a esperança é ilusão. Ninguém está seguro, ninguém consegue
sorrir ou amar, tudo é uma imensa mentira. Aqui ninguém é quem diz ser, todos
são outros e não estão aqui, nem agora. Nunca tantos estiveram tão sós. As
vistas destas janelas são escuras, frias, húmidas, confusas, e ninguém sabe se
sairá com vida do novo dia que se adivinha. É bom acreditar que todos lhe
conseguirão sobreviver, mesmo que muitos deles desejem o contrário.
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