quinta-feira, 28 de novembro de 2013

ONDE FICAM AS FRONTEIRAS DO ETÉREO?



Quando a folha vazia ameaçava, mais uma vez, vencer a misteriosa habilidade do escritor, eis que da sua caneta começaram a dançar letras azuis que se ordenavam em palavras nas linhas do caderno onde as guardava. As histórias escolheram-no, era ele quem as teria de divulgar custasse o que custasse. Rui teria de saber organizar-se para criar rotinas, teria de melhor escutar para melhor escrever. O que mais lhe dificultava a tarefa era a existência desse caos aleatório que o rasteirava a cada tentativa de fazer avançar a escrita. As palavras escolheram-no sem avisar. De um momento para o outro começou a escrever aquela primeira história que sozinha cresceu e passou a fazer parte de si. Rui nunca mais parou, nunca mais deixou de fazer esse exercício estranho. Não se sentia dono das histórias que construía, apenas um obreiro, apenas o artífice que escutava e transcrevia, um artesão que ouvia e depois moldava tudo o que lhe foi contado.
O caos, as rotinas e o tempo mantêm-se tão iguais e tão constantes como dessa primeira vez, mas Rui sente-se abandonado. O que se terá alterado para ele se sentir assim, logo agora que a fama dos seus romances exige que se alimente a vontade dos leitores? Para quando a conclusão da nova obra? Para quando? As palavras não aparecem, e a merda da editora só sabe pressionar como se neste jogo existissem regras ou processos estanques, e os caminhos fossem sempre iguais para a obtenção dos resultados pretendidos. Não! Desta vez está por sua conta e risco a criar algo verdadeiramente seu, só seu, por mais perturbador e solitário que isso lhe pareça. Desta vez a obra será sua do princípio ao fim, demorará o tempo necessário, custar-lhe-á muito mais do que as anteriores, e o resultado final pode ser mais pobre, mais inconsistente e confrangedor, mas as palavras da obra serão todas de sua autoria.
O Alves está farto de ligar mas como resposta recebe apenas a mensagem do voice-mail a informá-lo que, de momento, Rui não se encontra disponível. Há mais de seis dias que é assim, há quase uma semana que a resposta é sempre igual e monocórdica. O editor pensa que alguma coisa de ruim se terá passado para que ele não lhe responda. Isto não é normal, e mesmo naqueles momentos em que o escritor se sentia mais desinspirado e mazombo, dois ou três dias bastavam para que recebesse uma mensagem do amigo a tranquilizá-lo, dizendo que nada de grave lhe acontecera, que era apenas a sua terrível falta de inspiração ou aquela necessidade sazonal que o obrigava a ausentar-se. Os últimos dias têm estado tão bonitos, o sol caminha desde que nasce até que se despede somente com o azul do céu por companhia. Estes são os dias preferidos do escritor, e isso faz com que tanto tempo sem dar notícias não seja um bom augúrio. Terá ele cometido uma loucura? Sabe-se lá do que é capaz a mente de um homem solitário. Merda de vida esta que tanto se delicia a atormentar as almas dos iluminados. O Afonso ficou arrepiado ao ter-lhe passado este pensamento pela ideia.

Helen despe-se. A hora do banho acalma-a e inspira-a. Antes de mergulhar na água perfumada, aproxima-se da janela para escutar o pôr do sol.
Rui preferiu ficar a trabalhar na conclusão do romance, estava quase a terminar e assim teria de ser. A irlandesa nem insistiu, pois se era isso que ele pretendia, e não lhe disse que não era isso que dele esperava. O Guincho ficou só para ela. O mar falou consigo como naqueles dias felizes em que brincava com Deidre junto às falésias de Summercove. Essa melodia guardou-a o tempo apenas para si, era assim que estava escrito e assim aconteceu. Rui preferiu a companhia das palavras. Ela sorriu, despediu-se sem o beijar, despediu-se para sempre. Assim é a irlandesa em tudo o que faz e com tudo o que faz. Sábia como as deusas celtas que povoaram a bela ilha esmeralda que a viu nascer.
A onda vem beijar-lhe os pés, fria onda, gelado o vento cortante que ela adora sentir. O vento beija como ninguém. Helen sorri ao olhar o mar. Alguns surfistas aventuram-se nestas águas gélidas pois gozam da proteção dos seus fatos. Helen sorri ao olhar o mar e abandona a roupa na areia húmida mais escura e gelada. Helen sorri ao entrar no mar como quem se abriga, como se a espuma a aquecesse ou lhe viesse trazer as notas que faltam na sua bela melodia. Esta é a obra que Helen mais gosta de escutar. Nua, em comunhão com o vento e com as marés e com as ondas, com o céu o mar as gaivotas, e com a espuma, escuta todos os silêncios antes de mergulhar. Helen sorri ao sair do mar, está tão gelada como pode estar alguém que em janeiro resolve abraçar as ondas no Guincho feroz. Está nua, gelada, e feliz como naquele dia em que correu descalça com a irmã pela baía verde de Summercove. A sua obra ganhará suaves contornos, tão suaves como as memórias de infância. Adicionar-lhe-á a sua alegria pela vida, a paixão pelo mar e pelas estrelas, e tudo isto no dia em que o amor, mais uma vez, ficou paralisado ao enfrentar a força invisível do caos silencioso que ela tão bem sabe escutar.

As coisas aconteceram, mas não foram planeadas. Nada foi pensado, como tantas coisas na vida. Agora dói ter de ir-se embora.
Para Afonso era simplesmente impossível manter-se indiferente a Susana, à sua voz e ao seu sorriso de menina. Perto dela tudo parecia fazer mais sentido, tudo se tornava mais leve, doce e colorido, até que aquela segunda-feira lhe fez a emboscada perfeita. Susana convidou-o para subir e ele aceitou. Tudo nela o atraia pois as coisas são aquilo que são. Nesse dia esqueceram as suas profissões e foram somente um homem e uma mulher que o caos resolveu juntar. Esqueceram todos os erros existentes naqueles beijos e abraços, e os seus corpos avançaram quentes um contra o outro sem peso nem memória. Ali estava o infinito, o princípio e o fim. Nada mais interessava, e agora o caos ria-se da sua criação. Fora daquele apartamento ficava o imenso nada, e universo contraiu-se todo para lá dentro se anichar. Destes fogos se criaram estátuas, destes sumos nasceram tempestades, antes viver assim um só instante do que cem anos de vida sem o sentir. Os amantes passaram as fronteiras do etéreo, sentiram-se tão deuses como a um humano é permitido sentir, e regressaram ao mesmo palco por entre avanços e recuos, abraços, carinhos, colos, seios, suores, queixumes. Regressaram ao prazer ímpar que a eles, só a eles foi dado a conhecer, e assim permaneceram até ao fim da tarde, quase noitinha. Foi só aí que Afonso se lembrou que um outro caos estaria para acontecer. Susana sorria, nua, espreguiçada na cama reconstruída pelos gestos partilhados.
Afonso era feliz quando a olhava. Ali, enquanto a olhava, ele foi feliz.
Ao chegar junto ao carro na rua, já de escuro a tarde se pintara. Encarou a chave com um sentimento que nunca experimentara, e as palavras rasgaram o silêncio com brusquidão:
- Foda-se! Estou tão fodido se a Sofia vier a imaginar o que acaba de acontecer.
Entrou no Alfa Romeu, agarrou-se ao volante com as forças que encontrou e encostou-lhe a testa transpirada. Encolheu-se, fechou os olhos e repetiu:
- Foda-se! Puta de vida a minha! Estou tão fodido...

O relógio pouco passa das onze e meia quando a ambulância dá entrada nas urgências do hospital. Está uma confusão como nunca por ali se tinha visto. Bombeiros, enfermeiros, ambulâncias que chegam e partem, médicos, auxiliares e mais de uma centena e meia de pacientes deambulam por entre os familiares e demais gente anónima que procura obter informações, marcar consultas, ser atendida ou simplesmente aguarda por alguém que a venha tratar. A maca onde Sofia é transportada foi impedida de entrar no átrio que dá acesso às urgências do Garcia de Orta por um dos seguranças.
- Não pode ser! - exclama o homem. - É impossível não lhe ter chegado a informação de que esta urgência não pode receber mais doentes. A senhora terá de seguir para o hospital distrital do Barreiro, ou então para o Santa Maria em Lisboa. As minhas ordens são estas, vão ter de levar a senhora para um outro serviço.
Os lábios rosados de Sofia esboçaram um sorriso que depressa se transformou em gargalhada. Queria fugir dali para fora, quis desaparecer, mas um acaso não o permitiu. É isto que acontece sempre que o caos resolve tomar conta dos acontecimentos. O seu vizinho da frente gosta imenso de falar destas coisas, e conhece estranhas teorias acerca destes assuntos. Ela recorda o início da manhã em que, por qualquer razão misteriosa, imaginou o galante José a agarrá-la pela mão, a pegá-la ao colo e a levá-la até ao quarto para se amarem o resto do dia.
Talvez não seja de todo descabido dar mais atenção àquilo que ele terá para lhe dizer.

Helen mergulha na água quente da grande banheira branca na companhia das notas que acabou de compor. Este é um daqueles dias em que tudo mudou. Muito do que aconteceu não foi como estava estabelecido. A música da irlandesa vibra, agora, com os acordes dessa evidência. Esta é a sua forma de criação. É assim que Helen deixará, para sempre, a sua marca na obra.


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