quarta-feira, 20 de novembro de 2013

NO LOCAL DO ACIDENTE


  Os dias misturam-se com as sombras e as memórias tornam-se reais. Quem sobrevive recorda, e também tenta esquecer. Antes de continuar a imaginar mais enredos o escritor terá de sobreviver à cidade cárcere. Ela chegou de um passado insuportável com gente de rostos fechados e ausentes a quem os gestos demoram a acontecer. O regresso a casa transformou-se em miragem, o próximo instante é uma miragem, chegará quando chegar pois a noite gélida aliou-se à morte mensageira que ali se instalou. Dói escutar, dói imaginar o nascer do novo dia. Será o último? Dói contar a passagem das horas e dos minutos. Serão os últimos? A camarata 72 fervilha neste latente mal-estar. Melhor seria acabar de vez com esta angústia. Ao longe escutam-se as vozes estridentes dos oficiais alemães. A luz dos holofotes volta a quebrar a escuridão e os fantasmas ganham vida própria. São pássaros negros, são corvos, são abutres, aves de rapina a esvoaçar nas paredes frágeis que parecem ter crescido para os receber. Eis que o silêncio se torna mais ensurdecedor do que a agitação frenética dos militares.

Quando Zé Paulo chegou ao local do acidente, a polícia tinha justamente acabado de tomar conta do sucedido. A ambulância do I.N.E.M. arrancara minutos antes em direção ao hospital para que Sofia pudesse ser observada. Aparentemente, tirando o choque provocado pelo aparato do acidente e alguns ferimentos ligeiros e superficiais, nada de grave lhe aconteceu.
- Olhe que a senhora teve mesmo muita sorte. Numa situação destas, o facto de não trazer cinto de segurança acabou por jogar a seu favor. Nem o air-bag a teria ajudado. – exclama a enfermeira que a acompanha ao hospital. A sirene incomoda-a mais que o carro destruído ou aquele vazio que a domina. Não tem pensamentos, o tempo volatilizou-se e apenas o sabor levemente adocicado do batom vermelho a mantém desperta.
- Ouça, é mesmo necessário levar a sirene ligada? É que me está a incomodar imenso. – exclama Sofia fazendo um esforço tremendo para arrumar a sua vontade em palavras. Está cansada, dorida, tão fatigada, e o barulho repetitivo e frenético da sirene entretém-se a enlouquecê-la. Uma merda, uma chatice de merda o raio da sirene. E que chatice de merda o raio desta vida. O carro dançou naquele lugar em que a estrada curvava, e o volante ficou direito. Ela, ao invés de travar, sentiu o pé direito a ficar ainda mais pesado. Não sabe explicar se foi por engano ou querer, não sabe, não sabe mais nada. A enfermeira entende que será melhor proporcionar-lhe sossego para o que falta da viagem, e a sirene lá se calou.

  

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