sexta-feira, 8 de novembro de 2013

A VISITA DOS DEUSES DO OESTE




Rui tem de escrever sem rede pela primeira vez em toda a sua vida. É nas entranhas da memória que as palavras ficarão gravadas, não em papel, e nem com a pena com que se acostumou a escrever. O corpo estremeceu mais de mil vezes, os olhos viram o que jamais imaginou ser possível, o mesmo acontece com todos os sentidos. Deus dormiu uma sesta e permitiu assim que o homem se transformasse e passasse a conhecer quais as matérias que constituem as suas entranhas.
- Tenho frio, tenho muito frio! - pensa o escritor.
O animal humano que aqui se encontra enclausurado aconchega-se, aperta-se, enlaça-se como consegue para aliviar o sofrimento causado pelo frio e o pavor. É impossível descrever o cheiro, é impossível descrever o que se passa aqui pois não existem palavras que o consigam.
Helen trazia um vestido negro, uns leggings rosa choque e uns botins pretos quando o Rui a viu pela primeira vez. O cabelo ruivo da irlandesa e os seus olhos grandes e luminosos apareceram-lhe agora, vindos do nada, e contrastam com a escuridão da camarata 72. O som do piano acompanha esta memória quente e por instantes o escritor consegue fechar os olhos e adormecer. O sorriso da pianista regressa para lhe fazer companhia, as suas mãos brancas mexem no cabelo enquanto ensaiam notas em teclas invisíveis que só ela consegue vislumbrar.
- Say yes! Why don´t you? We have nothing to lose, absolutely nothing. Come with me, there is no place like it, I can assure you. Come on, say yes, Rui, please. You can write some other time.
Como seria bom se ele pudesse dizer-lhe que sim. Na cidade a preto-e-branco apenas este sonho, este querer, lhe surge colorido e perfumado, mas não real. Estas mesmas palavras foram as que ele acabou por não satisfazer, e para sempre se arrependeu. Nesse quase perfeito dia de primavera, Rui estava muito perto de acabar o seu último trabalho que já devia ter sido entregue à editora, e recusou a proposta da irlandesa. Faltava pouco, mesmo muito pouco, duas ou três páginas de texto e a obra ficaria concluída. Duas ou três passaram a seis, a dez, a dúzia e meia de folhas carregadas com o resto das viagens, encontros, desencontros, diálogos, afetos, sombras, rostos, um trágico final e, finalmente, terminou o romance. Nesse dia trabalhou até a madrugada ser de novo beijada pelo amanhecer. A luz do quarto onde Helen recebia os primeiros raios de sol encontrava-se fechada. O silêncio era a resposta que lhe chegava ao ligar-lhe, o Lopes ficou radiante com a notícia que já tardava.
Não conseguiu descansar mais do que um quarto-de-hora. Acha mesmo que nem sequer adormeceu. A voz doce da irlandesa vai cantarolando uma antiga melodia gaélica da ilha esmeralda. Rui deixa-se levar pela memória e tenta de novo adormecer. Esquece momentaneamente o frio, os cheiros, o horror, os negros e os cinzas, esquece a vida que aqui se desrespeita, esquece-se de quem é e de quem foi. Segue o trilho das palavras gaélicas da lenda contada nesta canção. Acompanhada pela tradicional harpa, Helen toca ao piano a música de Turlough O'Carolan que vem da era dos Filidh. Ele imagina-se as palavras que contam a lenda e deram origem à canção. Só assim consegue adormecer. Nela se dão a conhecer os mais importantes deuses celtas irlandeses que chegaram do oeste, da direção do outro mundo, em mágicos navios envoltos em neblina. Nela se desvendam as terríveis batalhas travadas com os Fir Bolg em Moytura, e com os Fomorianos, já sob a liderança de Lug Lamfhóta.
No interior da apinhada camarata onde poucos descansam, a balada celta ecoa por breves instantes transformando o sono de Rui numa experiência ainda mais irreal.

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