quinta-feira, 21 de novembro de 2013

O QUE É O PENSAMENTO?


Este local, este limbo onde Rui se encontra custou-lhe a possível destruição da sua obra. Os rostos destes homens trazem olheiras tão marcadas e profundas que se assemelham a defuntos. Escutar a voz do invisível seria, agora, uma benesse. O escritor daria tudo para poder conversar com o companheiro improvável. O pesadelo a preto-e-branco onde se encontra não pode ser autêntico. Será um holograma gigantesco, uma criação dantesca parida por um buraco negro cujo único propósito é o de fazer perpetuar o caos onde tudo fervilha. Nos últimos anos tem escutado vozes, foram elas que lhe contaram as histórias que ele passou a romances, a contos e a poemas. O calor proporcionado por essas viagens é bem diferente do calor dos dias de verão, do calor da voz de Helen ou do calor da fogueira que o pai se entretinha a alimentar mal chegavam à casa dos avós lá na aldeia. E aqui, nesta cidade, nada se compara àquilo que conhece. O que vê e sente é um frio tremendo, muito distinto do calor que experimenta ao desenhar as suas histórias. O que aqui se passa é um outro projeto, uma outra obra, um desarranjo, um equívoco, uma demência.
As palavras saltam, pulam e correm desenfreadas, sem nexo, sem rumo, sem rigor, sem sentido. Mesmo que ele pudesse escrever, construiria um nada ininteligível e sem calor.
- Onde te escondeste companheiro invisível? Revelaste-me este sonho de maneira cruel. Não me escutas? Eu sei que me escutas mas não respondes. Todos os que aqui se encontram sabem o que lhes vai acontecer. Falta apenas conhecerem as cores, os odores e os sons dessa derradeira viagem. As portas que ligam estes dois mundos são surdas e mudas, mas tu sabes como funcionam. Disseste-me que já por lá passaste. Se és tu quem escolhe as cidades que surgem na minha janela, não entendo que mal terei feito para me teres trazido até este lugar. E que mal terão feito estes milhares que aqui se vão amontoando como animais. Esta é uma cidade incapaz de ser descrita, e isso até nem interessa porque não lhe sobreviverei. Deixarei de pensar, vou tentar serenar as minhas vozes pois nada do que dizem faz qualquer sentido. Navegam à deriva pelas minhas ligações nervosas, são neurónios a comunicar aleatoriamente e a promover associações bizarras que em nada beneficiam a obra. Este projecto está tão alterado e adulterado que o melhor é acreditar que nunca se iniciou. Nada do que aqui se conta existe, existiu ou existirá. Tal como um holograma ficcional parido por uma excrescência cósmica muito afastada e poderosa que muda de humor a todo o instante, assim é esta obra que nunca principiou. Sei que me escutas mas não desejas responder. Ingrato! Vieste ter comigo supostamente para me ajudares a edificá-la, contudo, o que aqui se passa nem mesmo tu consegues explicar. Estás morto, és uma alma perdida e abandonada que ninguém desejou eternizar. Com que autoridade me trouxeste até aqui? Quem te permitiu escolher este destino atroz que, supostamente, me ensinaria a melhor julgar? Estarei errado ao afirmar que te encontras tão perdido quanto eu? Fazes parte do mesmo holograma, da mesma imagem que se repete e eterniza e que é hoje tão mentirosa como sempre foi. Serás capaz de me transportar de volta ao meu refúgio de escritor? Duvido! Essa será uma decisão que já não te compete. Talvez nos voltemos a encontrar mais cedo do que esses sete dias e sete noites que referiste. Pelo alarido e algazarra que escuto lá fora, é bem provável que nos encontremos muito mais cedo do que isso…

Ao iniciarem a travessia da ponte em direcção a Almada, os olhos de Augusto descansam no horizonte onde o mar desenha a linha. Nunca foi sua vontade conhecer o mundo para lá daquele limite. Nunca foi pessoa para grandes viagens, e o tempo passou, e a vida desapareceu, e os filhos cresceram, e os netos chegaram, e a puta da vida deu-lhe cabo da saúde e levou-lhe a Armanda, e agora trouxe-lhe a memória da Etelvina e daquele cabrão do Penedas a quem quase tirou a vida naquele fim de dia já tão distante.
Os olhos de Augusto observam o horizonte onde o mar desenha a linha quando dão conta da silhueta de um menino de chapéu de pala a caminhar sozinho pela ponte em direcção a Alcântara. O rapaz segue numa passada segura e a bom ritmo, de mochila às costas, sorridente como se o mundo lhe tivesse acabado de proporcionar uma imensa alegria. O que andará o moço a fazer por ali? Talvez esteja simplesmente a sentir-se feliz ao caminhar por onde mais ninguém o faz. Atravessar a ponte a pé, olhar o Tejo aqui de cima, sentir a chuva miudinha, escutar o ruído do grande rio, das gaivotas, do vento ligeiro, e a ousadia de se ter atrevido a passear pela ponte sabendo que isso é proibido. O gaiato é nobre e corajoso. Se nada de mal lhe vier a acontecer, será um grande homem no futuro.

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