Helen esfrega as mãos e os dedos antes de
regressar às teclas do piano. O longo banho inspirou-a, a caminhada pela praia
e a luz de Lisboa fizeram o resto. Os seus dedos bailarinos revisitam, a cada
nota, as paisagens invisíveis que ela traduz em melodias. Passam horas, o
instrumento vibra e a estrutura da obra vai crescendo.
É assim que tudo passa a fazer sentido,
como o nascimento de uma criança, como um menino que brinca e explora, como o
sol aquece e a lua peregrina o acompanha. O silêncio transfigura-se nestas
ondas de pura magia com que a pianista inunda o seu refúgio citadino.
É assim que tudo faz sentido, caso
contrário seria impensável sobreviver à dor causada pela realidade do campo de
concentração onde o invisível deixou o companheiro escritor. Rui adormeceu,
depois acordou, e regressou por mais alguns instantes ao sono agitado. Na
camarata 72 deviam estar cerca de duzentos homens, mas nela coabitam agora
setecentas e oitenta e quatro almas que lutam, em desespero, por uma parcela de
espaço.
A música é tão verde como a ilha da
compositora, é da cor do mar, das marés, é da cor da esperança que vai mantendo
vivas e em alerta as almas dos que aqui se comprimem. Este horror não faz
sentido e aniquila as memórias de tudo o que de bom lhes possa ter acontecido.
É um vazio, um buraco negro criado para esvaziar o próprio sentido da
existência. Aqui os homens funcionam como sombras, escondem-se por detrás uns
dos outros, escondem-se dos outros e deles próprios. Aqueles que o conseguem
preferem tentar recordar quem já foram, tentam encontrar um qualquer refúgio
nesse seu passado, mas até o pensamento é doloroso. A dor aqui é tudo o que se
vê e o que se sente. Respirar é doloroso, praticar o mais pequeno movimento é
doloroso e reviver as imagens nebulosas do passado é doloroso. Como foi
possível o universo ter transformado estes homens em parceiros de um mesmo
destino?
A lembrança da dança dos dedos brancos da
irlandesa chega do passado ondulante, avança pela cidade negra, cinzenta, e
invade a camarata 72. Faz parte das memórias dolorosas do escritor. Será ele o
inventor desta história? Terá sido ele o criador da personagem invisível com
quem discute nos longos intervalos em que não escreve? Como foi possível ter sido
colocado nesta ingrata situação? Porquê ele e não um outro qualquer sonhador
desinspirado a quem o amor não assistiu? Será que ele é também esse outro
sonhador desinspirado a quem o amor não assistiu?
O invisível atraiçoou-o!
A obra vai morrer sem ter visto a luz do
dia. Está tão moribunda como a sua vontade em criar.
O invisível secou-lhe a criatividade com
a mesma naturalidade com que os dias nascem e com que o planeta gira e baila à
volta do sol.
O amor não lhe assiste, Helen deixou-o.
Helen enfeitiçou-o, amou-o e deixou de o amar. Rui não cabia na obra que ela
tinha para criar. Essa obra era só dela, um sonho irrealizável que a irlandesa
procurava alcançar.
- É assim que tudo faz sentido! Um frio
de rachar, um frio que faz estalar os ossos, seca a pele e as ideias. Eu amo-te
Helen, seja lá o que isso for. Vejo-te em todo o lado, estás em mim e fora de
mim. Escuto a tua música, a tua voz, os teus poemas. Passeio pelo teu corpo,
imagino-te a lua e as estrelas, vou atrás de ti como daquela primeira vez em
que te vi e te apressaste a convidar-me para descobrir o mundo em que vivias,
em que criavas e onde navegavas. A tua liberdade faz todo o sentido, a minha
liberdade deixou de fazer sentido no momento em que nos amámos e unimos e
contámos histórias e bebemos vinho, e somámos vitórias em cada passeio, em cada
beijo, em cada fantasia tola que dizíamos um ao outro. Na cidade desta camarata
vou deixar de existir. Aqui nada faz sentido. O mundo afundou-se nesta miséria
criada pelo homem. A tua música chegou para apaziguar a minha raiva, a minha
amargura, tristeza e desilusão. A tua música é a única forma de eu me manter do
lado certo da razão. Aqui não há razão, só a que me chega através da tua obra,
a tua música devolve-me a recordação da tua pele cândida, doce, salgada… onde
estás Helen?. Consegues navegar por esse imenso oceano que te inspira?
Consegues chegar até mim para me salvar? As minhas personagens morrerão se eu
aqui permanecer os dias e as noites que me destinaram. Os oficiais alemães vão
enviar-nos para as câmaras de gás mal nasça o dia. É só nisso que acredito. É
melhor assim, é mais útil para todos se assim vier a acontecer. Amo-te Helen,
sempre te amei, soube-o assim que te vi, ou te revi. Amar-te-ei para sempre,
amo-te agora, pois só assim as coisas fazem sentido. Só assim as coisas
continuam a fazer sentido.
Helen toca o piano pela
madrugada. Do outro lado da avenida poucos são os prédios com luzes acesas. A
pianista prepara-se para dizer bom-dia ao sol que está prestes a nascer, e a
cidade acorda vagarosamente neste sábado primaveril, acorda sem pressa e sem
vontade. Com as janelas abertas, Helen recebe o momento e toca durante mais uma
hora dando a conhecer a obra à cidade que tão bem a acolheu.
O pequeno Jorge conseguiu fazer o
percurso de regresso à escola ainda a tempo da última aula da manhã. Os seus
colegas nunca assistiram a uma coisa assim. É a primeira vez que o “Jojó” falta
às aulas. E que parvoeira lhe terá dado para ele entrar na sala com um chapéu
da selecção na cabeça?
- Ó “stora”, já viu o “Jojó”? – pergunta
o Vicente, sempre pronto e de língua afiada. – O puto deve mesmo estar doente.
Baldou-se às aulas, o ranhoso, e agora entra para a sala com uma “boina na
carola”! A “stora” vai ter de o mandar para a rua, é proibido entrar nas salas
com chapéus! Eu sei, eu sei porque a “stora” mandou-me para a rua quando eu
entrei com o gorro do Gustavinho. Lembra-se “stora”, foi no fim do primeiro
período! A “stora” até quase me bateu! Olhe que agora lá por ser o”Jojó”…
A professora interrompe o Vicente com um
CALUDA que faz estremecer a turma. Antes que o miúdo reaja, manda-o sentar e
sai com Jorge para o corredor para poder conversar com ele.
- Então Jorginho, o que se passa? O
Vicente, apesar de ser meio apalermado, tem razão quanto ao chapéu. Vocês sabem
que é falta de respeito entrar nas salas de boina, chapéu ou gorro na cabeça.
Essa é uma regra que todos têm de cumprir.
- Eu sei, “stora”, mas hoje tem de ser!
Este chapéu pertencia a um homem que se atirou da ponte abaixo. Ele pediu-me para
que não o tirasse durante o resto do dia, só até a sua alma encontrar um lugar
tranquilo onde se possa abrigar.
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