quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

FORÇAS INVISÍVEIS


O vendaval leva tudo pelos ares. Nem as ideias lhe escapam, são roubadas à sua passagem.

Quando o escritor procura as histórias, os dias ventosos ocorrem com mais frequência do que ele gostaria. Enquanto se dedica à difícil tarefa de escutar, a ventania rouba-lhe as donas das palavras, sem avisar.
- Acredita, Lopes, muitas vezes é assim que eu me sinto. Escuto, escuto com atenção, preparo-me para mais um dia dedicado à escrita, concentro-me, abro o caderno, retiro a tampa da caneta ensinada, sinto a textura do papel onde registo as palavras, e eis senão quando um ciclone ameaçador vem dar-me cabo desse instante. De um momento para o outro, o universo fica desalinhado, o caos toma conta de mim, tudo fica cinzento, nubloso, inóspito, estéril. É um verdadeiro tormento, Lopes, mas agora vou equilibrar-me e darei luta aos ventos sombrios.
- Claro que vais, Rui, sem dúvida nenhuma!

A aventura do Jorge pela ponte deixou a professora preocupada. Quando o pai souber, vai ficar zangado, mas a memória do passeio, essa, já ninguém lha pode tirar. Foi muito corajoso, não é todos os dias que se faz uma coisa assim, mas hoje os astros pediram-lhe que arriscasse, que se aventurasse, e foi isso que ele fez.
A professora Susana contou tudo ao senhor Vasco, mesmo tudo, até o pormenor do chapéu da seleção que o menino recusou tirar da cabeça, até a resposta que o Jorge lhe deu, até o brilho no olhar, o brilho de felicidade com que lhe respondeu, até isso ela lhe contou. E acrescentou, antes que o senhor ficasse ainda mais preocupado, que o Jorge está bem, está muito bem, e que nem se molhou muito apesar da chuva copiosa que caiu durante grande parte da manhã.
Daniel coloca a cabeça no ombro de Jorge.
Daniel afaga-lhe as costas.
- Foi o senhor que se atirou da ponte, stora. Diga ao meu pai que o senhor que estava na ponte saltou para o Tejo. Estavam lá as roupas, uns sapatos, e este chapéu, stora. Diga-lhe! Não era nenhum homem da manutenção, nem estava ninguém a trabalhar lá em cima. O meu pai não o viu, pensou que eu estava a mentir-lhe quando o avisei. Diga-lhe stora, por favor. Não deixe que ele se zangue comigo. A minha mãe não vai gostar nada de saber, vai ficar ainda mais triste…
Susana para, por um instante, de falar com o pai do menino. Olha para o Jorge, para aqueles olhos vivos, inteligentes, o menino de cabelos ondulados a saírem por debaixo do chapéu da seleção. Susana parou, e vieram-lhe à cabeça dezenas de pensamentos incoerentes acerca de tudo e de nada. Uma ligeira tontura turva-lhe momentaneamente a visão. E agora? O que fazer? Tem de contar ao Afonso, ou então não. Para quê importuná-lo? Problemas já ele tem de sobra, mas tem de ser, o assunto é demasiado importante para Susana decidir sozinha. Que sorte de merda! Era mesmo só isto que lhes faltava, como se as suas vidas não fossem já suficientemente atribuladas.
- Stora, stora Susana! A stora está bem? Peça ao meu pai para não contar nada à minha mãe, está bem, stora? Por favor, eu não quero que ela fique ainda mais triste por minha causa.
O cosmos adora balançar, embalado pelo silêncio. Tanto espaço, tanta matéria negra, tanto vazio sublime, quase infinito. E, de repente, um vendaval chega, sem aviso, e rouba-lhe o momento. O rodopiante e furioso buraco negro agiganta-se para o desequilibrar.
Jorge sorri. Apesar do caos causado pela situação, o menino sorri. A diretora de turma senta-se à procura das palavras, que não lhe chegam.
Daniel sorri. Estas vidas estão ganhas.
Susana vai ser mãe desta criança que cresce em si. Decidiu-o mesmo agora. Que se lixe tudo! Tem de ser desta, se assim não for, talvez nunca mais volte a acontecer. Que se dane toda a sensatez.
Jorge sorri! A bonita professora Susana acabou por aceder ao seu pedido. O pai vai castigá-lo, disso não há dúvida, mas a tristeza da mãe não crescerá com a notícia da aventura.
- Obrigado, stora, muito obrigado! Tome. Aceite este chapéu que o senhor da ponte me ofereceu. Será uma recordação desta manhã agitada.
Susana agradece o presente enquanto Daniel lhe coloca a cabeça no ombro, a sorrir.
 

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