O vendaval leva tudo pelos ares. Nem as ideias lhe escapam, são roubadas à
sua passagem.
Quando o escritor procura as histórias, os dias ventosos ocorrem com mais
frequência do que ele gostaria. Enquanto se dedica à difícil tarefa de escutar,
a ventania rouba-lhe as donas das palavras, sem avisar.
- Acredita, Lopes, muitas vezes é assim que eu me sinto. Escuto, escuto com
atenção, preparo-me para mais um dia dedicado à escrita, concentro-me, abro o
caderno, retiro a tampa da caneta ensinada, sinto a textura do papel onde
registo as palavras, e eis senão quando um ciclone ameaçador vem dar-me cabo
desse instante. De um momento para o outro, o universo fica desalinhado, o caos
toma conta de mim, tudo fica cinzento, nubloso, inóspito, estéril. É um
verdadeiro tormento, Lopes, mas agora vou equilibrar-me e darei luta aos ventos
sombrios.
- Claro que vais, Rui, sem dúvida nenhuma!
A aventura do Jorge pela ponte deixou a professora preocupada. Quando o pai
souber, vai ficar zangado, mas a memória do passeio, essa, já ninguém lha pode tirar.
Foi muito corajoso, não é todos os dias que se faz uma coisa assim, mas hoje os
astros pediram-lhe que arriscasse, que se aventurasse, e foi isso que ele fez.
A professora Susana contou tudo ao senhor Vasco, mesmo tudo, até o pormenor
do chapéu da seleção que o menino recusou tirar da cabeça, até a resposta que o
Jorge lhe deu, até o brilho no olhar, o brilho de felicidade com que lhe
respondeu, até isso ela lhe contou. E acrescentou, antes que o senhor ficasse
ainda mais preocupado, que o Jorge está bem, está muito bem, e que nem se
molhou muito apesar da chuva copiosa que caiu durante grande parte da manhã.
Daniel coloca a cabeça no ombro de Jorge.
Daniel afaga-lhe as costas.
- Foi o senhor que se atirou da ponte, stora. Diga ao meu pai que o senhor
que estava na ponte saltou para o Tejo. Estavam lá as roupas, uns sapatos, e
este chapéu, stora. Diga-lhe! Não era nenhum homem da manutenção, nem estava
ninguém a trabalhar lá em cima. O meu pai não o viu, pensou que eu estava a
mentir-lhe quando o avisei. Diga-lhe stora, por favor. Não deixe que ele se
zangue comigo. A minha mãe não vai gostar nada de saber, vai ficar ainda mais
triste…
Susana para, por um instante, de falar com o pai do menino. Olha para o
Jorge, para aqueles olhos vivos, inteligentes, o menino de cabelos ondulados a
saírem por debaixo do chapéu da seleção. Susana parou, e vieram-lhe à cabeça
dezenas de pensamentos incoerentes acerca de tudo e de nada. Uma ligeira
tontura turva-lhe momentaneamente a visão. E agora? O que fazer? Tem de contar
ao Afonso, ou então não. Para quê importuná-lo? Problemas já ele tem de sobra, mas
tem de ser, o assunto é demasiado importante para Susana decidir sozinha. Que sorte
de merda! Era mesmo só isto que lhes faltava, como se as suas vidas não fossem
já suficientemente atribuladas.
- Stora, stora Susana! A stora está bem? Peça ao meu pai para não contar
nada à minha mãe, está bem, stora? Por favor, eu não quero que ela fique ainda
mais triste por minha causa.
O cosmos adora balançar, embalado pelo silêncio. Tanto espaço, tanta
matéria negra, tanto vazio sublime, quase infinito. E, de repente, um vendaval
chega, sem aviso, e rouba-lhe o momento. O rodopiante e furioso buraco negro agiganta-se
para o desequilibrar.
Jorge sorri. Apesar do caos causado pela situação, o menino sorri. A diretora
de turma senta-se à procura das palavras, que não lhe chegam.
Daniel sorri. Estas vidas estão ganhas.
Susana vai ser mãe desta criança que cresce em si. Decidiu-o mesmo agora.
Que se lixe tudo! Tem de ser desta, se assim não for, talvez nunca mais volte a
acontecer. Que se dane toda a sensatez.
Jorge sorri! A bonita professora Susana acabou por aceder ao seu pedido. O
pai vai castigá-lo, disso não há dúvida, mas a tristeza da mãe não crescerá com
a notícia da aventura.
- Obrigado, stora, muito obrigado! Tome. Aceite este chapéu que o senhor da
ponte me ofereceu. Será uma recordação desta manhã agitada.
Susana agradece o presente enquanto Daniel lhe coloca a cabeça no ombro, a
sorrir.
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